4.5.16

Floresta (15)

Beirut, “Postcards from Italy”, in https://www.youtube.com/watch?v=X61BVv6pLtw
As noites andavam bem dormidas. De dia, tinha a impressão que as coisas saíam a contento. Os bastões da angústia tinham perdido o lugar. Eram dias tomados pela sua irrepreensibilidade. Tudo parecia perfeito, dentro do que as circunstâncias admitiam como perfeição. Claro, havia os óbices, aquela matéria estrutural que tinha como impossível de transfigurar. Habituara-se a conviver com essas pedras no sapato. Elas não impediam o que entendia como os dias perfeitos quando os dias se punham a jeito da perfeição. A perfeição que descontava os contratempos que já pertenciam à moldura que era o seu território.
Ainda assim, havia interrogações que povoavam o horizonte. E hesitações, quando das interrogações sobejavam dilemas e não sabia por onde atirar a resposta. Dentro desta perfeição possível, admitia que instantes havia em que as dúvidas sopesavam no espírito, tomando-o de assalto. Por exemplo, às vezes tinha a impressão que o céu se toldava, mesmo sabendo (porque andava atento ao boletim meteorológico) que dias desses eram soalheiros, sem visitação de nuvens. Quando tal sucedia, desconfiava que um vulto se preparava para o atezanar outra vez. Depois, acalmava-se. Fora algoz do vulto e não podia acontecer que esse vulto se substanciasse noutro vulto.
O que o impressionava, sem coalhar a calma, era o desejo irreprimível de praticar a bondade. Admitia que nunca fora um predicado seu, a bondade. Se fosse lá atrás, eram tantos os episódios a resgatar para encher o baú da maldade. E sem qualquer laivo de arrependimento. Admitia que não era boa rês. O que também não importava. O mau feitio que vivia aprisionado em si fazia gala de aparecer diante dos outros como pessoa pouco recomendável. O espírito de contradição cuidava do resto. Tinha um gosto perverso pela provocação. Adorava virar as pessoas contra si. Adorava saber que as pessoas o achavam insuportável. Um módico de ira compunha o cenário.
Como se entendia a pulsão incontrolável para a bondade? De começo, suspeitou que fosse uma reincarnação da consciência. E, desta vez, por dentro de si, sem a ver, a responsável pelos insólitos atos de generosidade. Recusou a hipótese. Não queria dar vencimento à hipótese da consciência imperial, contra a qual a lucidez da sua vontade racionalizada estava destrunfada. Não podia ser a consciência a cinzelar uma transfiguração da personalidade. Nem podia ser a insidiosa consciência, de mansinho, a ditar a redenção que recusara diante das duas personificações da sua consciência que matara. Tudo se resumia à sua vontade. Em sendo assim, a interrogação voltava a rebentar na boca: como entender esta transfiguração, a súbita propensão para episódicos atos de bondade?
Talvez estivesse e ficar velho. Sempre ouviu dizer que o envelhecimento amacia as pessoas. Que ficam rijas por fora, repletas de rugas que coligem essa rijeza, mas macias por dentro. A explicação mais frequente convocava o medo da morte. As pessoas, ao envelhecerem, tomam consciência que a senhora de negro vive no seu limiar. Antes de partirem, tratam de amealhar os rudimentos da redenção. Outros teorizam de maneira diferente: a maldade, o mau feitio, as carantonhas que assustam os petizes e não só, as aleivosias diversas, o dom da contradição apenas pelo gozo da contradição – tudo envolve a fadiga que não é compatível com o avançar da idade. Não se revia em nenhuma das hipóteses. Primeiro, era ateu. A redenção como instrumento da ascensão divina não podia ser móbil. Segundo, não estava tão velho a ponto capitular perante a bondade apenas pela exaustão que tornava inacessível a maldade.
De uma coisa tinha certeza: não era confortável praticar a bondade. Parecia habitar um corpo estranho quando o eu que não conseguia domar era levado a tratar bem as outras pessoas. Habitou-se a não encetar um combate interno quando a pulsão para a generosidade subia à boca de cena. Aprendeu, das primeiras vezes que tal acontecera, que era pior lutar contra as forças sobrenaturais que domavam os instintos. Deixava fluir o pensamento quando a pulsão da bondade tomava conta do tempo. Era como se ficasse de fora de si mesmo, como espetador da bondade congeminada por si. E por mais que a parte de si dominada pela bondade em ação acenasse em tom de reprovação, procurando resgatar a outra parte que nunca fora predisposta para fazer bem aos outros, sabia que não adiantava.
A certa altura, resignado, concluiu: “a bondade não fará mal, certamente.” Inebriado, nem deu conta da transfiguração que fora ocorrendo. Talvez a metamorfose fosse tão intensa que perdera noção de si e do exterior a si. Talvez, até, nem trouxesse consigo os mínimos de lucidez para discernir que uma consciência reinventada se apoderara dele por dentro.

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