Beirut,
“Postcards from Italy”, in https://www.youtube.com/watch?v=X61BVv6pLtw
As noites andavam bem dormidas. De dia, tinha a impressão
que as coisas saíam a contento. Os bastões da angústia tinham perdido o lugar.
Eram dias tomados pela sua irrepreensibilidade. Tudo parecia perfeito, dentro do
que as circunstâncias admitiam como perfeição. Claro, havia os óbices, aquela
matéria estrutural que tinha como impossível de transfigurar. Habituara-se a
conviver com essas pedras no sapato. Elas não impediam o que entendia como os
dias perfeitos quando os dias se punham a jeito da perfeição. A perfeição que descontava
os contratempos que já pertenciam à moldura que era o seu território.
Ainda assim, havia interrogações que povoavam o horizonte.
E hesitações, quando das interrogações sobejavam dilemas e não sabia por onde
atirar a resposta. Dentro desta perfeição possível, admitia que instantes havia
em que as dúvidas sopesavam no espírito, tomando-o de assalto. Por exemplo, às
vezes tinha a impressão que o céu se toldava, mesmo sabendo (porque andava
atento ao boletim meteorológico) que dias desses eram soalheiros, sem visitação
de nuvens. Quando tal sucedia, desconfiava que um vulto se preparava para o
atezanar outra vez. Depois, acalmava-se. Fora algoz do vulto e não podia
acontecer que esse vulto se substanciasse noutro vulto.
O que o impressionava, sem coalhar a calma, era o desejo
irreprimível de praticar a bondade. Admitia que nunca fora um predicado seu, a
bondade. Se fosse lá atrás, eram tantos os episódios a resgatar para encher o
baú da maldade. E sem qualquer laivo de arrependimento. Admitia que não era boa
rês. O que também não importava. O mau feitio que vivia aprisionado em si fazia
gala de aparecer diante dos outros como pessoa pouco recomendável. O espírito
de contradição cuidava do resto. Tinha um gosto perverso pela provocação. Adorava
virar as pessoas contra si. Adorava saber que as pessoas o achavam insuportável.
Um módico de ira compunha o cenário.
Como se entendia a pulsão incontrolável para a bondade?
De começo, suspeitou que fosse uma reincarnação da consciência. E, desta vez,
por dentro de si, sem a ver, a responsável pelos insólitos atos de
generosidade. Recusou a hipótese. Não queria dar vencimento à hipótese da
consciência imperial, contra a qual a lucidez da sua vontade racionalizada
estava destrunfada. Não podia ser a consciência a cinzelar uma transfiguração
da personalidade. Nem podia ser a insidiosa consciência, de mansinho, a ditar a
redenção que recusara diante das duas personificações da sua consciência que matara.
Tudo se resumia à sua vontade. Em sendo assim, a interrogação voltava a
rebentar na boca: como entender esta transfiguração, a súbita propensão para
episódicos atos de bondade?
Talvez estivesse e ficar velho. Sempre ouviu dizer que o
envelhecimento amacia as pessoas. Que ficam rijas por fora, repletas de rugas
que coligem essa rijeza, mas macias por dentro. A explicação mais frequente
convocava o medo da morte. As pessoas, ao envelhecerem, tomam consciência que a
senhora de negro vive no seu limiar. Antes de partirem, tratam de amealhar os
rudimentos da redenção. Outros teorizam de maneira diferente: a maldade, o mau
feitio, as carantonhas que assustam os petizes e não só, as aleivosias
diversas, o dom da contradição apenas pelo gozo da contradição – tudo envolve a
fadiga que não é compatível com o avançar da idade. Não se revia em nenhuma das
hipóteses. Primeiro, era ateu. A redenção como instrumento da ascensão divina não
podia ser móbil. Segundo, não estava tão velho a ponto capitular perante a
bondade apenas pela exaustão que tornava inacessível a maldade.
De uma coisa tinha certeza: não era confortável praticar
a bondade. Parecia habitar um corpo estranho quando o eu que não conseguia
domar era levado a tratar bem as outras pessoas. Habitou-se a não encetar um
combate interno quando a pulsão para a generosidade subia à boca de cena. Aprendeu,
das primeiras vezes que tal acontecera, que era pior lutar contra as forças
sobrenaturais que domavam os instintos. Deixava fluir o pensamento quando a
pulsão da bondade tomava conta do tempo. Era como se ficasse de fora de si
mesmo, como espetador da bondade congeminada por si. E por mais que a parte de
si dominada pela bondade em ação acenasse em tom de reprovação, procurando
resgatar a outra parte que nunca fora predisposta para fazer bem aos outros,
sabia que não adiantava.
A certa altura, resignado, concluiu: “a bondade não fará mal, certamente.” Inebriado,
nem deu conta da transfiguração que fora ocorrendo. Talvez a metamorfose fosse
tão intensa que perdera noção de si e do exterior a si. Talvez, até, nem trouxesse
consigo os mínimos de lucidez para discernir que uma consciência reinventada se
apoderara dele por dentro.
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