Os Velhos, “À minha alma”,
in https://www.youtube.com/watch?v=YYV5VoG_uDA
Agora, os tempos eram de atalaia. Mal dormia, convencido
que a polícia podia invadir a casa a meio da noite. Enquanto não fosse ditado o
plano de fuga, o coração andava ao pé da boca. Pesavam-lhe os olhos no rosto. Os
mais próximos não foram apanhados de surpresa pelo regresso ao que fora dantes –
impulsivo, distante, irascível, sem um afago a provar quão queridos eram os
entes queridos. Tinha medo, outra vez. Agora, o medo prosperava na floresta
urbana, dentro de edifícios avulsos que albergavam uma brigada armada atá aos
dentes para o aprisionar. E como o medo explodia na boca, secando-a, tinha
outro medo: que o medo de ser cobiçado pela justiça aplacasse a lucidez necessária
para congeminar o plano de fuga.
Tinha uma certeza: estava fora de cogitações entregar-se
à justiça. Tinha a certeza que o corpo encontrado pela polícia não podia ser o
corpo do homem em forma de consciência que decidira matar quando ambos saíam da
floresta. Não podia ser acusado de um crime que não cometera. De uma vez por
todas, não podia ser: a consubstanciação da alma de uma pessoa no corpo de
outra, a segunda fazendo-se passar pela consciência da primeira – não era possível.
O corpo achado à entrada da floresta seria outrem. Mas, e se o que julgava
impossível não habitasse o domínio das impossibilidades? E se o homem que
dormira nos seus braços, enquanto fingia estar desmaiado por causa da peleja
entre ambos, fosse a emanação da sua consciência, num fenómeno próximo das
coisas esotéricas que ele desprezava? O que quer que fosse, não admitia a
culpa. Mesmo que fosse, aos olhos da justiça dos homens, culpado pela morte
daquele homem, não tinha as polícias e os tribunais como entidades legítimas
para o levarem a julgamento. Se aquele homem, morto covardemente pelas costas
quando lhe assestou um tronco com toda a violência acima da nuca, era
personificação da sua consciência, só ele podia ser, ao mesmo tempo, réu e
juiz. Pois não é comando das pessoas dizerem que os delitos de consciência
pertencem à única pessoa que tutela uma consciência?
Não era tempo para divagações. Sabia que não tinha
serventia apresentar-se em tribunal na defesa da teoria de que o homem
assassinado não era um comum dos mortais, ou que, em o sendo, estava na
floresta com o propósito de se fazer passar por émulo da sua consciência. Não era
preciso saber muito de leis. O senso comum chegava para perceber que estava
metido em trabalhos. Precisava, e depressa, de um plano de fuga. Um plano infalível.
As primeiras dores da angústia sem freio confirmaram que
estava um homem diferente. Ao dar conta que não podia revelar as intenções, nem
sequer explicar o que ditava a fuga, intuiu mágoa por abandonar a família e os
amigos de que, entretanto, recuperara a presença. Se fosse uns tempos antes, toda
essa gente era irrelevante e fugir para um lugar distante não comportava custos
desses nem trazia a melancolia pela ausência dos mais próximos. Convenceu-se: não
podia contar a ninguém o seu plano de fuga. Podia acontecer que alguém fosse
traído pela distração e a polícia faria abortar o plano. Pior ainda: se
contasse a necessidade do exílio forçado, teria de revelar os vários delitos
que congraçaram as dores de consciência. As pessoas mais próximas acabariam por
segregar o mais veemente repúdio. Seria empurrado para o degredo das almas. Estava
nestes pensamentos, desviando tempo útil do plano de fuga, quando teve noção
que esse seria o seu fado irremediável. Se fugisse pela porta dos fundos, os
seus não perdoariam na mesma. Voltava tudo a ser como era dantes: só ele
contava. Desta vez, contudo, não era por sua vontade que percorria o caminho do
ensimesmamento.
Tinha de preparar o plano de fuga com toda a minúcia. Não
havia lugar a planos alternativos: se o plano soçobrasse, o desterro era adquirido.
Não era como nos jogos de computador (que aprendera a jogar com o filho mais
novo), quando os jogadores, tal como se diz acontecer com os gatos, têm várias
vidas para gastar. Não podia abrir o flanco. A mínima falha podia ser fatal.
Tinha de empreender a fuga por estrada. Teria de ir para
um país que não tivesse acordo de extradição com o país de que era nacional. Meteu
os olhos nos calhamaços e nas leis, à procura de uma listagem de países que
tinham celebrado acordos de extradição. A Turquia não tinha um acordo destes. Depois,
pegou num mapa das estradas para desenhar o trajeto. Pela estrada fora, o
caminho seria desimpedido ao passar por Espanha, França, Itália e Croácia. Só
teria de mostrar o passaporte na fronteira da Sérvia. E depois, para entrar na
Grécia e outra vez para sair deste país e entrar na Turquia. O plano soava bem.
Havia um imponderável: o carro estava velho e não aguentava uma viagem tão
longa. E outro imponderável: uma viagem destas exigia dinheiro que não tinha de
reserva – a almofada financeira da família ficara exaurida uns tempos antes,
quando a consorte teve de ser operada. Podia assaltar um banco. Podia pedir
emprestado a um amigo mais folgado de dinheiros, prometendo o que sabia não
poder cumprir (a paga do empréstimo, impossível a partir da consumação da
fuga). Desanimou. Não podia levar por diante este plano.
Depois de uma noite outra vez mal dormida, teve uma
quase epifania: só se podia esconder na floresta. Na mesma floresta que
desalfandegara todos os seus medos. A floresta que estivera na origem de todos
os males interiores de que se recusava a desembaraçar. Era a floresta. Ou o
suicídio.
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