13.5.16

Floresta (22)

Wand, “There Is a Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=WQIgorNLUaY    
Epílogo
Deu por si às portas da floresta. A floresta, outra vez. Jurava que desta vez a floresta seria salvífica. Não havia lugar aos medos. Como as coisas podiam ser a antítese do que foram dantes: da outra vez, a floresta incendiara medos, uma apoplexia sufocante. Mas agora a floresta era o prometido exílio com perfume de amparo contra a montaria da polícia. Acossado, teve de abdicar de tudo. Já não tinham serventia os planos de transfiguração que vinham de dentro, possivelmente daquilo que as pessoas chamam alma, os planos que não conseguia domesticar e que pressentiam para o tempo mais tarde uma pessoa melhor. Abdicara da família que, enfim, aprendera a apreciar. Dos amigos, de quem estivera propositadamente distante e eram agora um manancial de prazer.
Caminhou pela floresta dentro. Desta vez, o tempo soalheiro acompanhava-o. Não havia as sombras que foram constante apoquentação, as sombras que por vezes se disfarçavam de personagens-vultos que adejavam sobre ele só para o mortificar. O dia estava radioso. A floresta não parecia o mesmo lugar medonho. Ouvia o chilrear dos pássaros como pano de fundo. De vez em quando, via um corço, um javali furtivo, uma lebre escapulindo-se em velocidade vertiginosa, um ou outro cavalo selvagem num pasto. Ouvia o rumorejar da água em pequenos regatos que sulcavam vales suaves que desenhavam a orografia da floresta. Folgou ao saber da existência de tanta fauna: não seria de fome que morreria no voluntário exílio.
Andou horas e horas, errando pelas veredas da floresta. Não tinha mapa nem queria estar na posse de um. Tinha de conhecer a floresta como as palmas das suas mãos. E olhou para as palmas das mãos: por acaso fazia jus ao adágio popular? Temos a certeza que conhecemos de cor as palmas das mãos? Não passava de um lugar comum entronizado pela corrompida sabedoria popular. As pessoas não deitam os olhos nas palmas das mãos tempo que chegue para desenharem um mapa detalhado do que vêm. Foi a conclusão a que chegou, depois de observar as palmas das mãos com alguma demora, enquanto se sentou recolhido sob a copa de uma vetusta árvore centrípeta. Se fosse uma metáfora, dir-se-ia que nunca somos conhecedores a fundo da pessoa que somos.
Era o terceiro dia de exílio na floresta. Não vira vivalma. Era bom sinal. Tinha de se convencer da sua eremita condição. As provações tinham uma recompensa: não ser capturado pela polícia e não ser levado a julgamento num tribunal onde os juízes estariam sedentos de atuar como zeladores da consciência social, no fundo o papel que desempenham ao aplicarem as leis que – diz-se – escoram as fundações de uma sociedade exemplar. Não tinha fome. Não tinha falta de banho, tantos os pequenos cursos de água onde se podia banhar. E até a roupa não era problema: as mudas que trouxera eram bastantes para ir revezando indumentária, enquanto a roupa suja secava presa a galhos de árvores. O resto, improvisava. Não sabia das andanças do mundo, mas isso também não tinha importância. O mundo, agora, estava reduzido à floresta. Propositadamente, não trouxe telemóvel. Queria recolhimento monástico e estava a conseguir. Tinha tanto tempo de sobra que andava em preparos de arrumação dos pensamentos que subiam à boca de cena. A floresta propiciava um método heurístico. Era como se a floresta, que dantes fora altar dos medos, surgisse como paraíso onde se conciliava com o seu eu. Isso só era possível porque continuava convencido que não tinha contas a prestar com ninguém. Nem com a justiça dos homens, nem com qualquer arremedo da sua consciência, ou que por ela se quisesse fazer passar. Não havia nenhum acerto de contas.
À quarta noite, acordou sobressaltado por um troar impressionante, medonho. Sentiu o que parecia o ribombar de um trovão, mas não podia ser: olhou o céu, que estava completo de estrelas. E não podia ser trovoada porque discerniu ao longe os vestígios de fumo que subiam em forma de coluna cónica. Parecia ter sido uma explosão. Já não conseguiu regressar ao sono. A segurança ditava o imperativo da prospeção. Foi caminhando vagarosamente na direção do lugar que sinalizava a explosão. A medo. Os galhos das árvores pareciam encolhidos, eles também denotando medo depois de terem acordado sobressaltados pelo temível troar. As folhas estavam inertes e não havia sinal da profusa fauna que habita a floresta. De repente, surgiu um vulto feminino que se escondia atrás de uma árvore. Cortou-lhe o caminho. Trazia uma centelha a tiracolo, que apontou na sua direção, enquanto tirava as medidas fitando-o de cima a baixo.
- Quem és tu? O que queres de mim? – perguntou o homem, assarapantado com a intempestiva interrupção da sua caminhada.
- Que te interessa quem sou? E por que achas que tenho intenções em relação a ti?
- Não sei...o modo...intempestivo como me abordaste, faz supor que assim é.
- Tem calma. Não tenho más intenções.
- Mas tens intenções, afinal, e elas são dirigidas a mim.
- Possivelmente.
- Diz-me.
- Um corço contou-me que a floresta tinha um novo habitante.
- Que sou eu, presumo.
- Sim, és tu.
- E daí?
- Daí que eu devia ter sido informada dos teus planos. Apresento-me: sou a imperatriz da floresta. Todos os habitantes da floresta são meus súbditos e têm de se inclinar diante da minha vontade.
- Ora quer vossa excelência ver que a floresta parou no tempo e que aqui se vive uma monarquia feudal... – disse, em tom jocoso.
- Cuidado com o tom. Não é consentâneo com o respeito devido à imperatriz da floresta.
- E se não reconhecer os domínios de vossa senhoria?
- Cometes um delito.
- Não me diga vossa senhoria (prosseguiu em tom sarcástico) que tem um séquito de julgadores para os delitos de opinião cometidos nos vossos domínios.
- Não me dou ao trabalho de fazer um curso breve sobre a ordem instituída na floresta. Se dúvidas tens, o melhor será terminarmos esta conversa e sujeitares-te ao que puder vir sobre ti amanhã ou depois.
- Por favor, e com o devido respeito (ensaiando uma cínica genuflexão), elucide-me vossa senhoria sobre os terríveis males que sobre mim se possam abater.
- Aqui quem dá as ordens é a suserana. Os súbditos sujeitam-se à sua vontade.
- Uma ordem anacrónica, portanto.
- É o que temos. Julgo saber que escolheste a floresta para fugir à justiça dos homens que te perseguem na cidade.
- Como é possível saber tal coisa? (Mudando o tom de voz, agora denotando sincera preocupação com o oráculo que parecia alojar-se sob a saia da imperatriz.)
- Eu sei de umas coisas. Tenho fontes. Informadores. A floresta não é uma ordem fechada sobre si mesma. Contacta com o exterior.
- Quer vossa excelência convencer-me que não estou seguro no meu plano de fuga para a floresta?
- Tira as tuas conclusões. Só deixo mais uma pista: sei tudo sobre a montaria da polícia, sobre o que motivou a tua fuga. Tudo. Não me ponhas à prova. Limita-te a confiar nas minhas capacidades. E digo-te: não testes os limites da minha paciência, pois se preciso for, serei implacável.
- Postas as coisas nesses termos, julgo não ter alternativa.
- Se queres ficar nos meus domínios, tens de jogar de acordo com as minhas regras.
- Pergunto a vossa senhoria se me é concedido exílio nos seus domínios.
- Depende.
- De quê?
- Do respeito das regras, do código de conduta, da minha suprema vontade.
- O que devo fazer, ato contínuo, para provar que mereço a confiança de vossa senhoria?
- Deves seguir o murmúrio da água que corre neste ribeiro. Segue-o sempre. Quando chegares a um promontório, verás que a água se despenha.
- E quando chegar ao despenhadeiro, o que devo fazer?
- O que se impõe, perante o circunstancialismo do teu mui problemático caso: dar um passo em frente quando sentires que o precipício está quase debaixo dos teus pés.
- Sugeres o suicídio?
- Como sabes se o resultado do passo em frente no precipício é o suicídio? Como sabes se o desfiladeiro é vertiginoso?
- Pois, como sei?
- Limitas-te a confiar na minha palavra. E sabes que não tens opção. Ou melhor, tens: se não cumprires a minha vontade, farei chegar informações à cidade sobre o teu paradeiro.
O homem seguiu o preceituado. Não demorou muito a chegar ao desfiladeiro. Hesitou – e como estava habituado, mas não tinha alternativa – a menos que a imperatriz fosse um logro na forma de outra tentativa de personificação da sua consciência. Estava cansado. Cansado de viver sitiado em dúvidas que se desmultiplicavam em interrogações para as quais não conseguia arranjar resposta.
Fechou o pensamento enquanto segurou a respiração. E deu o salto em frente.

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