5.5.17

Correio atrasado (36)


Explosions in the Sky, “Ecstatic’s”, in https://www.youtube.com/watch?v=iOwOUvdmsn8    
A titularidade dos sentidos, dizia-se, é uma idiossincrasia. Pertence a cada pessoa. Sem ser possível outros enxertarem seu engodo, transfigurando o que seria genuíno se não fosse exposto às influências exteriores. O carteiro não estava seguro do postulado. Temia que as pessoas pudessem ser sensíveis ao ser dos outros e que, desse modo, a sua individualidade fosse permeável a traços da identidade não seus. Voltou à casa da partida: por que empreendeu o êxodo, fugindo de casa, fugindo de tudo e de todos que eram atores presentes no seu mundo?
Julgava que toda a gente passa por crises existenciais, onde a afirmação da individualidade é hipotecada. Às vezes, as pessoas fartam-se do que são. Cansam-se de si mesmas. Querem mudar. Não pretendia ajuizar os maus predicados das mudanças quando elas são intuídas como um imperativo, quando elas não são apenas um simulacro através do qual as pessoas bolçam a fuga de si mesmas. O que era mais importante, era sondar as origens do cansaço de si mesmo: eram espontâneas, com fonte primitiva nos meandros do ser? Ou ditadas de fora para dentro, pela sensação de sedução que outras pessoas exerciam, querendo-se parecer com elas, querendo-se transfigurar num arremedo dos outros?
Esse era o critério. Na sua maneira de ver, instaurado o inquérito interior às razões da crise existencial, ela só teria fruição, e a reinvenção do ser teria cabimento, se a impressão digital partisse de um impulso interior, impermeável ao exterior. Era importante a pessoa ouvir-se a si mesma. Convocar a voz funda, desagrilhoadas as demais amarras. Para sentir o sangue efervescente à boca do vulcão onde tinham expressão as demandas interiores. Para fazer as perguntas que fossem necessárias, sem ter medo das perguntas. Desarranjando os alicerces, caso fosse preciso, para ser devolvido às fundações na sua originalidade isenta de influências exteriores. E só então, perante os sinais formulados pelo exercício demiúrgico, se tentava alinhavar uma resposta convincente.
O carteiro não tinha a certeza onde se situava neste tabuleiro. Ao início, quando começou a formular as interrogações intermináveis que o acompanharam na viagem, era capaz de jurar a pés juntos que a medida fora ditada apenas por razões que lhe diziam respeito. Seria a terrível insatisfação com o lugar onde estava, com a pessoa com que se confrontava no dia-a-dia. Hoje, não estava certo que assim fosse. Teve de recuar algum tempo para entender que os rudimentos do exílio podiam ditar uma empreitada não totalmente voluntária. Precisava de interiorizar o ato inteiro, como se fosse uma peça só, desligando-o de episódios avulsos que podiam impedir a sua consideração como uma coisa inteiriça, com coerência interna.
Dois anos antes da fuga apeteceu algo inusual, dentro da monotonia em que se transformara a sua existência. Informou a consorte que tinha uma reunião de trabalho na cidade-capital e que a reunião podia entrar pela noite dentro. (Como se isso fosse possível na previsibilidade dos correios; como se ele ocupasse posição tão elevada na hierarquia que fosse convocado para uma reunião na sede dos correios.) A mentira tinha o propósito de tomar gosto, em jeito de memória, a uma noite de boémia destravada. Fazia anos, longos anos, que isso não acontecia – desde os anos um pouco destravados da adolescência e da pós-adolescência, mas sem nunca ter passado das marcas (pelo menos, a crer na sua subjetiva medida do que eram “as marcas”). Nessa noite em branco, deambulou por vários lugares que preenchiam o roteiro noturno da grande cidade. Revisitou alguns desses lugares, anotou outros que tinham deixado de existir e soube que novos estabelecimentos tinham destronado os que eram do seu conhecimento como lugares da moda. Bebeu como já não se lembrava. Estranhamente, olhando ao que bebeu, mantinha uma lembrança quase nítida da noite inteira. Quase se deixou seduzir por uma mulher da vida que com ele amesendou num desses estabelecimentos. Era a única lembrança difusa dessa noite: do tempo que estivera à fala com a mulher, não conseguia devolver à memória a conversa. Nem reproduzir em desenho o rosto da mulher, caso fosse chamado pela polícia se a mulher tivesse sido autora de um crime e figurasse no rol de cadastrados em contumácia.
Guardou na memória o à-vontade dos estroinas adestrados na boémia. Como se divertiam! Como conviviam alegremente uns com os outros! Como tinham momentos de intimidade, numa roleta russa de rostos e bocas e línguas que, na véspera, teria considerado uma conspurcada libertinagem! Não estava seguro que queria provar dessa libertinagem: um apelo interior, talvez apenas o sucedâneo de preconceito disfarçado de apelo interior, debitava uma mensagem constante que ficava a pesar na tela que passava diante dos olhos: “já não tens idade para estas coisas. Já não tens idade para estas coisas. Já não tens idade para estas coisas.” Teria a juventude ficado aquém dos excessos que têm lugar certo nessa idade? Talvez, ao contrário do que se convencera, ao determinar que na juventude tivera os momentos de loucura que não passaram das medidas, admitisse que as medidas foram um tremendo obstáculo que castrou a juventude. Em resultado disso, haveria um contínuo entre a infância e a idade adulta, como se tivesse processado um salto no tempo obliterando a adolescência, parte de leão da juventude.
Só não sabia se podia compaginar este acesso súbito de rebeldia, de uma rebeldia possivelmente a destempo, com as múltiplas influências em que a reconhecia ancorada. Como podia estar exposto à influência de uma multidão? Não era bom augúrio. Havia um módico de frivolidade a contaminar esta sensação. Afinal, a mesma frivolidade que ajudava a explicar a deserção de tudo. O que veio à superfície, foi o imperativo de contrariar esta longa avenida atapetada pelo desleixo. Recordou-se que o eixo de tudo, nestas demandas interiores, era a máxima “ouve-te a ti mesmo”. A voz interior que o comandava segredava, e insistentemente, “já tens idade para ter juízo”.
Ficou a cismar na proclamação da voz interior. Não estava convencido de “ter idade para ter juízo” (ou para o que quer que fosse), nem sabia, ao certo, o que era “ter juízo”.

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