17.5.17

Volátil


Ryuichi Sakamoto, “Andata”, in https://www.youtube.com/watch?v=H4USgPPTEx0    
Versado na vingança das noites brancas, o velho olhava para o piano adormecido. O tampo pousado sobre as teclas escondia a música potencial. Dantes, o velho também fora versado na música. Ensaiou umas composições, na altura em que julgou ser um tutor da composição musical para ser levado a sério. O que o velho (na altura ainda homem quase a entrar na madura idade) não sabia, é que tinha de si uma imagem erradamente maior do que a sua estatura. A culpa – se é que se podia atribuir culpas – era do espelho mental que servia de estalão para o velho se aferir.
Ninguém deu conta das partituras geradas. O velho, desconsolado, fechou-se para o mundo. Num exílio voluntário, sem, todavia, sair do sítio onde vivia. Fechou-se em casa. Desinteressou-se de tudo. Deixou de ouvir música. Divorciou-se da música. Essa foi a sua principal resolução. A música não era capaz de reconhecer os seus préstimos. Ao início, revoltou-se. Estava certo de o mundo inteiro conspirar contra si. Depois, caiu em si. Talvez não estivesse capacitado para a composição musical. Continuava sem entender porquê. Dentro do seu juízo, que considerava de uma objetividade à prova de qualquer suspeita, terçava as suas partituras em comparação com outras obras, não as mais conhecidas e que já tinham entrado no panteão da música, mas de outros autores aspirantes. A sua objetividade invariavelmente fundeava numa conclusão: não sabia como se podiam considerar melhores as outras partituras.
Durante algum tempo ficou refém do ensimesmar. Para piorar, a revolta interior era um desassossego constante. Concedeu, algum tempo depois, quando por fim prescreveu o exílio voluntário e começou a respirar o ar da rua, que a sua objetividade teria sido contaminada pela subjetividade de quem está com os sentidos adulterados pela mágoa interior. Num banco do jardim, com o arvoredo por vizinhança e o chilrear abundante dos pássaros no proveito da primavera, o velho convenceu-se que não nasceu para ser músico.
Quando entrou em casa, olhou para o piano. Tinha de se desfazer do piano. Há anos que não abria o tampo do piano. As teclas do piano tinham desaprendido, certamente. E ele não se considerava músico. O piano residente na sala era um estorvo. Era como se as quotidianas alvoradas metessem um punhal fundo na carne sentida do velho, mercê do piano intruso que torturava os olhos. À primeira proposta de compra, despachou o piano e as alvoradas passaram a ser luminosas.

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