30.10.17

O homem que era dono do futuro

Cat Power, “Cross Bones Style”, in https://www.youtube.com/watch?v=aW2PcOyAWwM
Era um estivador, um simples estivador. Sem vida para além da dele, dos pequenos vícios, mergulhado no seu inconsequente egoísmo, sem ninguém de quem cuidar nem ninguém que dele pudesse cuidar se houvesse necessidade. Um homem de rotinas. De pouca instrução. Simplório. O que ninguém sabia, é que este homem era o dono do futuro. Do futuro de todos os outros homens. Nem ele sabia. Nem desconfiava, sequer. Era um anónimo habitante do planeta entre milhões de milhões de seres que a ciência julgava iguais pelos cânones da biologia. Fora-lhe destinado um dom: ditar o futuro de todos os seus semelhantes. Nisso era dissemelhante de todos os demais.
Ele nunca poderia saber que tinha o dom nas mãos. Através de uma conjugação de elementos cósmicos, de aturadas equações e de sofisticados algoritmos – ou de cálculo infinitesimal – o que quer que fosse: ao homem simplório, modesto trabalhador das docas sem ambições se não terminar o dia com um par de uísques no bar perto da residencial, um jogo de futebol de quinze em quinze dias, a sorte na lotaria (confirmando-se que em não há milagres em casa dos seus fautores: mau grado ser penhor do futuro de todos os demais, a predestinação não podia ser usada em proveito próprio: nunca ganhou um centavo em jogos de sorte e de azar), era a pauta caótica que ditava o andamento do mundo. Um simples gesto seu determinava o porvir de muita gente de que ele nem imaginava ser gente existente. Se houvesse lugar a metáforas, dir-se-ia que é como o bater de asas da borboleta que dá origem a uma tempestade num algures longínquo – mas não é tempo para lugares-comuns.
Podia-se inscrever a seguinte interrogação no roteiro: seria deus, disfarçado de comum dos mortais, propositadamente disfarçado da pessoa mais comum que se poderia imaginar – nem um inatingível poderoso, residente da casta superior; nem o miserável mendigo sem pergaminhos, desmentindo os marxistas lugares-comuns que a fortuna imaterial se encontra nos descamisados? O homem que era dono do futuro não sabia: que um simples gesto seu, sem propósito outro que não fosse a rotina – ou os atos não rotineiros que, por da rotina se escaparem, também se traduziam em consequências – determinava um nascimento, um sorriso inatendível, uma frase pungente, um casamento inesperado (ou um casamento esperado), decisões fadadas ao arrependimento, o relógio contra a maquilhagem do tempo, uma doença, um beijo fora do tempo, uma morte sem remissão, um cataclismo sórdido, uma descoberta para o bornal da ciência, a inspiração para um momento de arte, uma simples bebida no lobby do hotel e a companhia que não se dava por esperada – enfim, uma constelação de milhões de milhões de atos instantâneos, demorados na clepsidra do tempo, deixando atrás de si o rasto da história. E o caos.
O homem que era dono do futuro morreu sem saber da sua predestinação. Ainda bem. Nunca é de confiar, a espécie humana.

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