23.10.17

Resgate

God Is an Astronaut, “Reverse World”, in https://www.youtube.com/watch?v=rcphvUsgTks    
Nos moinhos flambeados que levitam nas colinas esbranquiçadas, deitamos o peito em cuidada meditação sobre os sobressaltos impeditivos. Sê-lo-ão? Sempre se disse que ao homem cabe a remoção das pedras, até das mais empedernidas, que obstruem o caminho. Ou, em tratando-se de empreitada ainda mais árdua, de removê-las à medida que constrói a vereda, desbravando o terreno denso que vem pela frente.
Não interessam as reticências que embaciam o papel onde se ensaiam as palavras-sortilégio. As reticências são um desvio, não têm serventia. Uma distração. Compulsam-se, então, os sais arrancados ao chão e dos abetos sementes que vão fruir depois em mais abetos. Impõe-se travar o deserto: a areia, insidiosamente, silenciosamente, ganha espaço sem se dar conta – e quando se dá conta, já vem a destempo o dique que as ponha em retrocesso. Impõe-se um resgate das coisas tangíveis, daquilo que vem à boca e congraça um deleite, das palavras que se investem em castelos fantasiosos, das palavras destemidas que ousam romper com as muralhas do adquirido, dando corda à imaginação que é meio para travar as estéreis areias que intuem o deserto.
Resgate. Nos imponderáveis arqueados sobre o tempo sem aviso, nas escadas sinuosas e cheias de resvaladio musgo, nas alcáçovas noturnas onde se encosta a cabeça, seu regaço quimérico, nas paredes ajustadas ao desembaraço dos amantes, na inconsciência do avulso, nas janelas abertas que deixam entrar todos os poros do mundo, num cais escondido que se debruça sobre a paisagem bucólica. Um metódico envidraçar do olhar à matéria vivificante, sem esquecer o material fundente onde têm berço as amálgamas de coisas diferentes de que se soerguem construções edificantes, matéria involúvel e sem dar o flanco aos ataques soezes de quem prefere os cinzentos subterrâneos. Nada disso não importa. Por maior que seja o seu dano. Por maior que seja o seu ultraje. A grandeza afirma-se pelo ato volitivo da indiferença. Deixando ao lodo os seus habituais residentes. Recusando nele mergulhar.
O resgate também é isto: decisão sobre o lugar onde o pensamento se situa. Sem cair no poço infundado onde se acaba sitiado, a vontade amordaçada pela camisa-de-forças de que se é autêntico fautor. Pois os criminosos penhores das aleivosias limitam-se a fornecer a camisa-de-forças; somos nós que a atamos, se não soubermos meter o olhar num atalho salvífico e à indiferença destinar as provocações. O resgate também é isto: nem sequer meter as mãos à camisa-de-forças, para não sermos irremediáveis reféns dela no momento em que, sem as podermos domar, as próprias mãos apertam o laço que remata a camisa-de-forças.

Sem comentários: