14.2.18

O atropelo de identidades


Nick Cave & the Bad Seeds, “The Weeping Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=TqhOVY58zIo    
O homem sem rasto, perdido de seu rumo, protestava, vociferava audivelmente, como se o mundo inteiro fosse culpado das suas angustiantes dores – como se fosse ele contra o mundo, ou, em melhor dizendo, o mundo contra ele:
Não sei que identidade é a minha. Não sei. Não sei! Olho à volta e vejo uma constelação, a paráfrase do mundo inteiro, como se fosse possível ao mundo inteiro resumir-se num exíguo espaço, numa pequena janela do tempo. Ouço os diferentes idiomas, as diferentes tonalidades de pele, as roupagens diferentes que se vestem por cima de corpos, possivelmente eles também diferentes, os costumes diferentes, os comportamentos diferentes. E ouço doutrinadores ensinarem que essa fusão é a nova identidade que não podemos recusar. Noto como há vestígios de colonização cultural e como se insurgem movimentos, dir-se-ia, de contra colonização cultural que acabam por ser formas de colonização – acuso-os de serem tão intrusos como os movimentos de que se dizem combatentes. Hoje é fácil viajar. É mais rápido. É mais barato. Temos uma miríade de objetos que são o suprassumo do progresso tecnológico e não queremos ficar para trás, não queremos que nos chamem ‘analfabetos funcionais’. A música é padronizada. O cinema é padronizado. As artes todas, por mais que se reclamem património da originalidade criativa, são presas fáceis da padronização. E fica-lhes pior não o admitir, sufragadas pela armadilha do autismo, ou presas da má hermenêutica do movimento artístico contemporâneo. E se fujo das agitadas urbes, se pretendo descer às raízes à procura do meu substrato intrínseco, mal ponho os pés no meio rural vejo-o desertificado – vejo-o pungentemente perdedor de identidade. Para onde terão ido as pessoas no êxodo que deixou o meio rural à míngua de gente? Os mais velhos morreram; não lhes podemos exigir nada. Os mais novos, os que ainda foram a tempo de reinventar a vida no êmbolo do êxodo, refizeram vidas nas grandes urbes. Perderam o vestígio da identidade que traziam, forçados a inculcar o cocktail de influências que os acossava, como se fossem convidados a abdicar da vontade e lhes presenteassem um dote envenenado – o seu esvaziamento por dentro. Tudo se passando como se pelos bolsos rotos das calças se esvaísse a porta sobrante de uma identidade. Este processo parece uma soma que desmente a aritmética: uma soma que dá um resultado menor do que soma das suas parcelas. Uns ascetas incompatibilizados com este estado de coisas protestam: fomos atirados para um abismo do qual não temos saída, por conveniência dos maiores interessados na generalização das pessoas – os grandes poderes económicos que nos asfixiam com suas solicitações, sempre no erróneo pressuposto de que eles estão ao nosso serviço, quando nem damos conta de como nos empenhamos (no sentido de ficarmos penhorados) na viciante dependência do mundo em que nos põem, atores não volitivos. Não sei se esses ascetas têm razão. (Desconfio que neles concorre uma sede de vingança mercê da histórica derrota ideológica de que ainda não se recompuseram.) O que sobra das nossas identidades? O que sobra da nossa identidade? Uma amálgama de sinais indistintos, um atropelo impiedoso, a entrega sem condições, o nem sequer dar conta do processo, de como a dissolução de uma identidade de nós faz gente comandada desde o exterior, numa anestesiante parábola de que somos apenas figurantes. Temo que a desidentificação em curso, através da retórica da fusão de identidades como caldo cultural conjunto, seja uma sentença de morte. Não quero ser igual aos que são diferentes de mim. Quero ver sublimadas as diferenças que me distinguem dos outros. E quero que os outros façam gala das identidades que ostentam; ou apenas que as ostentem, que já seria sinal bastante. A apologia de uma identidade que é sinónimo de toda a espécie, é um logro de que seremos vítimas. Quando já não formos a tempo, depois de aplicada a sentença de morte, não haverá nada a fazer.

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