15.2.18

Sentença de vida


dEUS, “Sister Dew”, in https://www.youtube.com/watch?v=l6SwB_ZQsq4    
(Outro narrador.) Que importam os desaguisados da pertença?
Se sou o eu intrínseco que goteja das veias, ora incandescente, ora reflexivo, propositadamente inerte quando sou reflexivo. Ninguém, se não eu, sabe da quimera encontrada nos momentos lisérgicos que, pela sua raridade, são a alma do ouro. Não afirmo um ensimesmar patológico: sei que as derivas narcisistas dispõem o eu num falso pedestal, sujeito às dores excruciantes de uma aterragem forçada.
Procuro as pétalas desse ouro entre as pedras, entre as fráguas de um rio bravio, nos rochedos acessíveis com a maré-baixa onde medra o limo, no avesso de páginas que julgava conhecer de cor. Procuro o sangue fervente na orla de um vulcão. Procuro, entre os ingredientes de um repasto requintado, o segredo da sua alquimia. Procuro o selo de uma vida repleta, úbere da inspiração, fremente no trono de onde se avistam todas as demais coisas.
Não quero proeminência. Não quero que qualquer forma de poder venha desaguar nas minhas mãos. Considerá-lo-ia castrador. Um contrassenso sem remissão. Pois assustam-me os exemplos de gente que subiu os degraus até exibir o poder que detém, numa ostensiva embriaguez de poder que é usado apenas pelo deleite de ser ostentado, apenas para reduzir os suseranos ao seu irrelevante papel: figurantes sem qualquer outra serventia. Não quero tamanha sentença de morte. Porque da morte de mim mesmo se tratava: a sobranceria ufana, um certo complexo de farda, o poder pelo poder, sem qualquer outra materialização tangível. Um esbanjamento.
Prefiro a sentença de vida que desvia dessas empedernidas avenidas que tanto encantam uma multidão. Prefiro o incógnito. O desagendamento de empreitadas, no aleatório fluir do tempo e no espontâneo exercício da vontade. Prefiro mergulhar na poesia musical, na filosofia densa, ou num texto improvável de que se frui lição inesperada. Prefiro uma miríade de pequenas coisas como satélites do meu universo. Prefiro o entardecer à frente do mar contando as ondas, uma a uma – uma a uma –, o canto das gaivotas estridentes, o distante murmúrio das crianças que terminam a jornada escolar, ler folhetos que mostram cidades que se mostram ao desejo do conhecimento, o singelo e, todavia, telúrico beijo matinal da mulher amada, os olhos bem abertos à novidade que desfila, o critério afivelado em interiores matrizes que enjeita umas possibilidades e cauciona outras.
Prefiro ter a certeza (outros diriam, mais parcimoniosos: a esperança) do envelhecimento tardio. Quero esta sentença de vida: que vergue o braço ousado da morte à contagem de muitos calendários. Quero dizer, do fundo de mim até ao mais superficial da sua compostura: vamos à vida. Inteira e sem estorvos.

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