Sigur Rós, “Hoppípolla”, in https://www.youtube.com/watch?v=mZTb8WxEW78
Estavam todos juntos. No mesmo sonho. O erudito defenestrado. O ecologista proscrito. A mulher da limpeza. O tatuador. O aparente suicida. O diplomata. A líder da seita e a sua discípula. Juntos no mesmo sonho. Num lugar idílico, onde todas as flores eram de todas as cores ao mesmo tempo. As arcadas desciam sobre o chão de veludo. Pela janela, antepunha-se um arco-íris. O vento sibilino ecoava como se fosse uma orquestra de violinos. Num sofá gasto, ao canto da sala, um cão cansado e velho dormitava – às vezes, entreabria um olho, em pose vigilante. Também havia um móvel esmerado no design ornamentado com duas jarras vazias. Uns archotes pespegados às paredes emprestavam luminosidade baça. Ao centro, um trono tosco, feito de madeira não tratada nem envernizada, sobre ele caindo um longo manto acobreado. Nele sentado, o primeiro-ministro. Empunhava um totem na mão direita. Na cabeça, um chapéu de cardeal. Vestia calções de banho e calçava botas de cowboy. Tinha ar grave, o primeiro-ministro. Sob o seu trono estavam todos os outros alinhados: o erudito defenestrado, o ecologista proscrito, a mulher da limpeza, o tatuador, o aparente suicida, o diplomata, a líder da seita e a sua discípula. À espera do julgamento.
- Primeiro-ministro: Alguém se acusa diante de mim?
(Silêncio sepulcral e demorado, os outros olhando uns para os outros, outros cabisbaixos, outros fazendo de conta que não estavam ali.)
- Primeiro-ministro: Repito: alguém se acusa? Alguém que tenha algo a proclamar em sua defesa?
- Tatuador: Não sei ao certo por que estou aqui diante do primeiro-ministro. Não sei se será deferência, ou se hei de recear.
- Primeiro-ministro: Só as senhoras e os senhores o saberão.
(O primeiro-ministro, como homem que honrava o politicamente correto, fazia questão da diferenciação de género, começando pelo género feminino.)
- Líder da seita: Desconfio que estamos perante uma conspiração. O primeiro-ministro que confesse quais os interesses endinheirados que o levaram a aprisionar-me neste sonho.
- Primeiro-ministro, ignorando a provocação da líder da seita: Gostava de saber se pretendem alegar algo em vossa defesa, antes da decisão ser tomada.
- Ecologista proscrito: Que decisão?
- Primeiro-ministro, afagando o cão sarnento que, entretanto, despertou do sono: Ah, não vos ocorre por que estão perfilados diante de mim?
- Tatuador: Sinceramente, não.
- Primeiro-ministro: Estou à espera de uma expiação pessoal. Com base nela, a na sua sinceridade, tomarei a decisão para a qual fui mandatado.
- Discípula, em arroubo de rebeldia para agradar a líder da seita: Pois...mandatado pelos ignominiosos interesses do capital, só para decapitar a liderança do movimento que tanto o incomoda e a esses interesses também.
- Primeiro-ministro: Ó menina, tenha tento na língua. Isto não é uma reunião dos órgãos estatutários da vossa coletividade. Nem um comício. A coisa pôs-se muito mais séria.
- Erudito defenestrado: O senhor primeiro-ministro, com o devido respeito, permita-me uma elucidação que ainda está por fazer: a sua decisão tem que finalidade?
- Primeiro-ministro: Saber qual de vocês morre antes dos demais.
Foi a agitação geral, com um visível desconforto a tomar conta dos presentes.
- Diplomata: Em minha defesa reclamo a nulidade desta jurisdição. Não respondo perante o primeiro-ministro de um país estrangeiro.
- Ecologista proscrito: Não percebo: sobre nós impende acusação tão grave que a cominação é a morte?
- Tatuador: A morte? A morte?! Isto é um concurso público? A morte de um de nós levada a concurso público?! Só mesmo se for por dentro de um sonho. Corrijo: por dentro de um pesadelo.
- Mulher da limpeza: Pouco me interessa. Se for preciso a morte levar-me, dou um passo à frente e a ela me ofereço.
- Primeiro-ministro: A senhora é a primeira a ficar ilibada. Parece-me justo: se não lhe importa a morte, que seja agraciada com demorados anos de vida. Pode ser castigo – mas será para aprender a incluir o valor da vida nos horizontes.
- Líder da seita: Em minha defesa não alego nada. É um bocado como o diplomata: não reconheço legitimidade a este primeiro-ministro.
- Primeiro-ministro: os senhores(dirigindo-se à líder da seita e ao diplomata) ainda não terão percebido o palco em que estão acorrentados: é este, e eu sou seu único tutor. Os meus juízos são supremos e à prova de recurso. Dizerem que não me reconhecem jurisdição ou legitimidade é risível. Procurem sair daqui. Chamem-lhe sonho: procurem sair deste sonho, a ver se conseguem. Estão convencidos?
- Tatuador: A mim, isto parece uma peça surrealista. O cão velho a segredar sentenças ao primeiro-ministro é a prova definitiva.
- Primeiro-ministro, dirigindo-se ao aparente suicida: O senhor aí, no canto, ainda não disse nada. Não tem nada a afirmar em seu favor?
- Aparente suicida: Remeto-me ao silêncio. Prefiro assim.
- Primeiro-ministro: Insisto: alguém se adianta na empreitada de alegar a sua defesa?
- Erudito defenestrado: Mas, senhor primeiro-ministro, se não sabemos de que vimos acusados, como podemos expor a nossa defesa?
- Primeiro-ministro: Convoquem a memória. Mergulhem nos fundilhos onde navegam as vossas memórias. Talvez seja suficiente.
- Tatuador, em registo irónico: Ah! Contra mim falo: quando era rapazola, matei dois coelhos recém-nascidos. Por pura maldade. Não dormi três noites seguidas.
- Primeiro-ministro: Está o senhor ilibado. Quem se segue?
- Discípula, em pânico e com a voz nervosa: Eu juntei-me ao movimento por pura rebeldia. Tenho a mania do espírito de contradição, de remar contra a maré dominante. Às vezes, dou comigo a pensar se não é uma válvula de escape contra a incorrigível timidez. Uma forma de a suplantar. Não sei. Não sei...Sei que não sou descomprometida militante do movimento.
- Líder da seita: Outra traidora! São uns atrás dos outros. Hão de arder no inferno!
- Primeiro-ministro: A discípula e a líder estão ilibadas. A menina, pela convincente sinceridade. A líder da seita também. E porque merece continuar a consumir-se na bílis purulenta de que é toda ela feita.
- Diplomata: Repito: não reconheço jurisdição ao primeiro-ministro. Porém, para os devidos efeitos, contra mim declaro todos os vícios incompatíveis com o donaire da diplomacia. O maldito desejo que me atira para os braços dos bacantes. O esconderijo em que vivo. A angústia interior dos dilemas que me consomem. Se quiser, não me importo de ser levado à pira onde minha vida se incinera. Assim seja!(Sem notar a contradição em que caía; ou talvez sim, mas com receio que a encenação não fosse mero jogo.)
- Primeiro-ministro: O diplomata está parcialmente ilibado. Manter-se-á vivo, mas será denunciado às autoridades do seu país, pois nenhum país merece ser representado por um embaixador com tantos e tão maus vícios privados.
- Tatuador: Já cá faltava: um julgamento de costumes.
- Primeiro-ministro: O senhor não abuse da minha paciência. Tenha em consideração que posso recuar na decisão de o excluir da candidatura à morte.
- Ecologista proscrito, a tiritar de medo, antecipando-se ao erudito defenestrado, que também fez menção de usar a palavra:O que posso dizer em meu desfavor? Durante muitos anos, não fiz a separação dos lixos. Quando enriqueci inesperadamente, deixei um prazer mundano contrariar as ideias que defendi durante décadas. Mas sinto falta das reuniões e do ativismo e das manifestações. E adoro o Porsche. Às vezes, acho que este mar imenso de contradições é a minha pegada genética. Já deixei de me importunar. Até com os julgamentos pessoais que os outrora camaradas continuam a fazer. O Porsche fala mais alto.
- Primeiro-ministro: Não considero explicação convincente. Todavia, pelo desassombro, concedo um indulto parcial. O Porsche irá parar à sucata na sequência de um acidente de trânsito. Esteja descansado: safar-se-á apenas com uns arranhões, por milagre (com o meu dedo).
- Erudito defenestrado: Contra mim, contam os prazeres mundanos? Ser bacante, como o diplomata? Contam os boicotes às empresas? Contam as mulheres de família que seduzi, os lares que contribuí para deixarem de o ser? Contam as muitas palavras que escrevi por encomenda, sem convicção de as deixar seladas em papel? Contam as falsas lágrimas? Contam os arranhões na integridade dos outros por mera ação tática, ou por gratuito deleite de assistir ao pânico dos empresários? Contam os ardis que levaram outros à desilusão? Conta a impressão que sou um erudito mal amanhado, sentado no trono de um estatuto a que cheguei sem saber como? Contam os livros que disse ter lido, em pura mentira? Conta ter mais medo da solidão do que da morte?
- Primeiro-ministro: Conta tudo isso. Se, com o tempo vindouro, ficar convencido que estas são as suas mortificações, não terá a morte como condenação. E o senhor aí no canto– dirigindo-se ao aparente suicida – continua calado?
- Aparente suicida: Estou a apreciar o espetáculo. Comovente. Preferia manter o silêncio. Não por não reconhecer a legitimidade do primeiro-ministro, mesmo que seja no absurdo papel de tutor das nossas vidas. Mas vou mudar de posição. Digo isto: o silêncio. Apenas entrecortado pelo seguinte: (e arremeteu, em estugado passo na direção do primeiro-ministro, empunhando um punhal) é a vida do primeiro-ministro que vai deixar de existir. A partir de agora!(E cravou o punhal fundo, na glote no primeiro-ministro, que nem conseguiu esboçar uma reação de surpresa.)
E assim se consumam as inesperadas reviravoltas da vida. O aparente suicida era um assassino sem escrúpulos.
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