20.4.18

Fora de serviço


Idles, “Divide and Conquer”, in https://www.youtube.com/watch?v=P4SAIOp7Q3U
Lá fora, a população inteira conspirou num emudecimento ensurdecedor. As ruas estão molhadas e não consta que tenha chovido nos últimos tempos. As pessoas seguem todas sob as suas capas impermeáveis e, todavia, o dia está soalheiro, dir-se-ia, estival a destempo. Se forem consultados os registos, a população tem razões para protestar ruidosamente contra o estado de coisas. E, contudo, deixou-se intimidar por um silêncio tonitruante. Como se estivesse embebida numa hibernação sem sentido, ou anestesiada contra os efeitos do tempo. Como se as pessoas fossem desprovidas de espírito crítico e a sua mudez fosse o exercício metódico de indulgência perante o estado a que as coisas chegaram.
Lá fora, os autocarros que passam exibem todos o dístico “fora de serviço”. Não se fez chegar ao conhecimento que estejam em greve. A esta que é hora de ponta, os autocarros deviam ostentar um dístico que revelasse o destino. Deviam transbordar de passageiros. O efeito é ainda mais paradoxal: nas paragens dos autocarros, as filas amontoam-se. Não há greve os autocarros já não param há algum tempo nas paragens. Estão “fora de serviço”. Como “fora de serviço” está a multidão que continua emudecida, nem sequer protestando contra o tumulto causado pela anomalia nos transportes públicos.
Lá fora, arruma-se o lixo num canto, descuidadamente. Ninguém conta com o vento que se pode descompor a qualquer momento, desarranjando as sobras entretanto acantonadas. Depois, os funcionários dos serviços camarários serão, arrumando outra vez, mas descuidadamente, o lixo num canto qualquer. Sem a diligência de o protegerem do futuro vento que possa conspirar contra a limpeza da cidade. Por dentro da apatia geral, a população emudecida passa pelos despojos do lixo, depois de um vento conspirativo o ter desarrumado, e mantém-se em silêncio. A imundície que tomou conta das ruas da cidade não transtorna a população inteira. 
Lá fora, os cães vadios saciam a fome entre o restolho desordenado. Um recipiente contendo sobras de um restaurante veio parar a meio da avenida. Três cães vadios estacionam no meio da avenida, indiferentes aos carros que percorrem constantemente a avenida. Os cães banqueteiam-se. Os carros evitam os cães, mecanicamente; não por serem os seus proprietários sensíveis à causa animal, mas por não quererem estragar os carros (os cães são de grande porte). Um grupo de cães mais numeroso alivia as bexigas em restos de lixo espalhados à frente de um jardim público. A multidão em redor, militante em seu silêncio, é indiferente à alcateia, ao lixo atamancado que afeia a cidade, à displicência dos funcionários camarários, ao estado a que as coisas chegaram, a tudo.  
Cá dentro, resisto aos desafios excruciantes. Fecho as janelas todas. Há dias em que é preferível ficar escondido nas muralhas que são a casa.

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