18.4.18

Fábrica dos sonhos


Peter Hook & the Light, “Dreams Never End” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=D_4gA_a8cDY
Todos tinham inveja (uma inveja das boas) dos operários da fábrica dos sonhos. Mas ninguém conhecia os operários da fábrica dos sonhos. Não tinham rosto. Não tinham nome. E, no entanto, a eles cabia inventariar os sonhos e dar-lhes seguimento. 
As pessoas perguntavam-se: como é feita a distribuição dos sonhos? A voz corrente fazia constar que a distribuição era fortuita. Era como se dentro da fábrica dos sonhos houvesse uma lotaria de imensas proporções dividida em duas metades assimétricas: uma com os nomes de todas as almas vivas, a outra com os sonhos a repartir. Alguém teria a função de dar à roda. A alguém seria atribuída a incumbência de extrair os talões e seus canhotos, respetivamente, os nomes das almas vivas e os sonhos que calhavam em sorte (ou não tanto, em tratando-se de pesadelos, ou de sonhos irrelevantes, ou de sonhos sem expressão na avaliação subjetiva que deles era feita). 
As pessoas discutiam seus sonhos, quando deles se lembravam. Levavam a sério a função. Também havia os que não os confessavam em público, talvez por serem inconfessáveis. Pois os sonhos cuidavam de todas as matérias sensíveis para a existência, eram um laboratório de experiências que uma pessoa já viveu ou pode viver na carne, com a diferença de uns ajustes frequentemente surrealistas para emprestar toda a vivacidade típica da matéria onírica. Dos sonhos inconfessáveis fazia parte a luxúria. O pudor herdado da repressão religiosa cuidava de asfixiar a contagem dos sonhos lúbricos. A exceção era um punhado de irreverentes que espumavam deleite só por trazerem a matéria sonhada da arrecadação dos sonhos. 
Algumas pessoas eram recompensadas pela sorte grande. Era quando o sonho sonhado se transfigurava em matéria vivente e era tangível às suas mãos – e quando o sonho, ainda matéria sonhada, era uma promessa em forma de oásis, com o selo da manifesta impossibilidade. Nessa altura, as pessoas interiorizavam que a fábrica dos sonhos não era uma conjura, era uma lotaria com a escassa probabilidade estatística de conferir graças a uma amostra representativa de almas. Os felizardos tornavam-se embaixadores da fábrica dos sonhos. Não podiam cometer a ingratidão da recusarem a sinecura. Passavam o resto do tempo a tentar convencer os incrédulos e os desiludidos que a fábrica dos sonhos podia ser a mudança de maré de que estavam à espera. Davam o seu exemplo. Mas a fábrica dos sonhos continuou ancorada na lei das probabilidades exíguas. Muitos dos desiludidos acusavam deus de semelhante iniquidade e alistavam-se nas fileiras dos incréus, desacreditando deus e desapossando-o das suas almas.
Porém, um numeroso exército de almas vivas perseverava. Continuavam a sonhar com os sonhos que consideravam certos, com um idílico lugar onde a perfeição seria seu nome. Por dentro da fábrica dos sonhos, procuravam viciar os sonhos a preceito das ambições. Fracassaram. Nunca se conseguiu apurar a identidade dos operários da fábrica dos sonhos. A corrupção dos sonhos encalhou nas muralhas da fábrica dos sonhos.

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