26.4.18

A hipoteca dos sentidos


Tears for Fears, “Mad World”, in https://www.youtube.com/watch?v=u1ZvPSpLxCg
Falamos dos sentidos – do mal que eles fazem. Aceitamos que há outros sentidos, os que merecem tributo pelo bem que irradiam. Inteiramo-nos dos maus sentidos. Como os podemos evitar. Ou, em não sendo possível a fuga, como dissolver os seus efeitos corrosivos. Podemos sobrepor as fronteiras desses sentidos através de um fogo de sentido contrário, um contrafogo com a virtude de apagar o fogo que se traduz em consumições. E se o contrafogo asfixiar o sentido mau, sua fonte original, e tomar de assalto até as sombras sadias que passam pelo crivo da indiferença? 
Não é bom critério. Não podemos ter a soberba de dominar o à partida indomável, acelerando a angústia que sobra da medida preventiva. Temos de anuir que melhor seria dar o peito às dores causadas pelo sentido desaprovado. Em contraproposta, critério diferente: a hipoteca dos sentidos. Dirão: é um mero ardil, o fingimento que passa de esgueira tentando convencer o corpo que um mau sentido nele não logrou encontrar cais para amarrar sua pútrida âncora. Se for apenas um fingimento, o mal perdura. Com a agravante de fazermos de conta que a pele não alberga as cicatrizes inerentes. Entrar em negação não parece remédio.
Contrapõe-se: não é disso que cuida a hipoteca dos sentidos. A melhor metáfora é a anestesia. Como nas cirurgias, são invasivas, mexem e remexem no interior do corpo, em agressões todavia necessárias para extirpar mal de outra dimensão. E enquanto as entranhas são cuidadosamente vistoriadas pelos peritos, cumprindo um roteiro que tem a nota promissória da cura posterior, as agressões ao corpo não causam dor. Não se faz de conta que a invasão não aconteceu; apenas se suspende o tempo, como se no período da anestesia o corpo estivesse à margem das maldades que sobre ele são praticadas com o beneplácito dos peritos.
Há sentidos com esta linhagem. Sentidos que exigem a recusa da navegação. A hipoteca dos sentidos é o metódico arranjo que prepara o corpo para o acerto com a narração dos sentidos compulsados no lugar da desconfiança. Os que não têm serventia, ficam arredados do palco onde se jogam, depois da intermediação da hipoteca dos sentidos. 
Empreitada mais árdua é distinguir os sentidos com direito de admissão dos sentidos destinados à hipoteca. Às vezes, a fronteira que os delimita é volúvel. Não se sabe se não é mal maior quando se destinam à hipoteca sentidos que irradiam bem.

Sem comentários: