4.4.18

O direito a não ter direito


Dead Combo, “Deus Me Dê Grana”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q6-O9gU2r2c&sns=fb
O homem que passara por possível suicida subia vagarosamente a rua até casa. A manhã não estava longe. A penumbra vinha caldeada por uma timorata claridade, o presságio da manhã. Ele, absorto em seus pensamentos. Confuso. Os pensamentos divergentes, sobrepondo-se uns aos outros, em constante movimento, sem rumo. Três casas antes da sua, viu um homem prostrado. À distância, pareceu um mendigo, ou um boémio no rescaldo de uma noite longa e demencial. Mais perto, notou na indumentária impecável e exótica, como se fosse alguém saído de um filme passado na época faustosa dos reis, quando os reis usavam perucas e se vestiam com meias calças como as senhoras de hoje. O homem estava prostrado, mas conseguiu perceber uma máscara deitada sobre o lateral do rosto. Inerme e, quem sabe, desmaiado, aproximou-se do homem de meia-idade. Podia ser que precisasse de ajuda médica. Agitou o braço, levemente. O homem continuava impávido. Remexeu-o com mais vigor. Acordou, agitado, balbuciando umas palavras ininteligíveis, um idioma desconhecido. O homem tinha os cabelos despenteados e a indumentária de festa encontrava-se encardida, parecia que tinha andado aos caídos pelas ruas imundas. Acordou e mostrou umas olheiras fundas. Uns olhos raiados por vasos sanguíneos protuberantes. Desta vez, as palavras já não saíram no idioma que as tornava ininteligíveis: 
- Onde estou? Já é de manhã?
- Quase. Precisa de ajuda?
- Não sei...não sei como vir aqui parar.
- Consegue-se levantar? Posso chamar uma ambulância...
- ...Não! Nem pensar(retorquiu com a voz impositiva e levemente exaltada, quase assustando o outro homem).
- Quer ajuda ou não? Está para aí aos caídos, não me disse se se consegue levantar e parece que não quer ajuda.
- Ajude-me a pôr de pé.
O homem ajudou-o o levantar, a custo – o diplomata era um homem corpulento e o torpor não o ajudou na função. Já com o diplomata em pé, insistiu:
- Sente-se bem? Posso chamar uma ambulância, talvez seja melhor.
- Não e não. Outra vez, não. Eu recomponho-me.
Fez menção de deixar o diplomata sozinho, ao vê-lo recomposto e teimoso na recusa de ajuda. O diplomata travou-lhe o passo:
- Não vá embora. Não me deixe aqui sozinho.
- Como posso ser útil?
- Já ocorreu pensar que tem um estatuto especial e que, por isso, lhe são autorizadas alcavalas que não estão ao acesso do comum dos mortais? Já pensou o que seria se desse por si no meio de um escol com direito a privilégios, a certos prazeres que são escondidos dos demais, membro de uma sociedade secreta, e fosse prisioneiro de um dilema interior porque o seu estatuto não condiz com tamanho hedonismo?
- Nunca tal me passou pela cabeça. Sou uma pessoa simples e de hábitos mundanos.
- Gostava de trocar de lugar consigo. Gostava de perder os privilégios, mudar de identidade, mergulhar na vida mundana, ser um como os demais, acordar de madrugada e ir de metro para o trabalho, partilhando um espaço exíguo com a multidão. Gostava de não me sentir fraco e refém deste hedonismo, dos prazeres por ele propiciados. Ao mesmo tempo, ambicionava não o sentir matéria proibida. Não sei o que sentir.
- O que o impede de recusar o que o castiga interiormente?
- Os meus privilégios. O meu estatuto: sou embaixador.
- Ah! Essa sociedade secreta é incompatível com a diplomacia?
- Sim. Esse é o meu dilema: como posso esconjurar o irreprimível desejo, ser um bacante e diplomata, sem revelar que sou diplomata aos bacantes e ser reconhecido como bacante pelos demais?
- Se é um dilema e só pode escolher uma das suas extremidades, já pensou na equação das importâncias relativas?
- Não consigo. O que agrava as dores excruciantes que me consomem. Quero que o impossível se torne uma possibilidade, mesmo sabendo que seria proscrito ao revelá-lo. Deixaria de ser diplomata e seria desterrado pelos meus pares da sociedade secreta.
- Há pouco passei por suicida, quando tentava pôr uns pensamentos em ordem no parapeito de um muro que delimitava o miradouro. Não sei se serei a pessoa certa para responder a essas dúvidas existenciais.
- Só queria ter o direito a não ter o direito. Que sobressalto contínuo, este excesso de regalias que me deixa em posição paradoxalmente desconfortável: pertenço a uma casta que goza de direitos inacessíveis ao comum dos mortais. E exagero no perfil, pelos prazeres proibidos de que não me consigo desprender.
- Às vezes acontece. As pessoas não sabem o que fazer quando são atormentadas com uma crise de abundância.
- Está a ver como me compreende? Por isso, repito: queria arranjar condições para ter o direito superior de não ter direito a nada.
O diplomata, exausto e perturbado, começou a descer a rua, vagarosamente, sem sequer ter dito adeus ao outro homem. Este, talvez tão cansado como o diplomata, não deu importância ao episódio. Cada um tem as apoquentações que desfilam no seu próprio chão pontiagudo. O dever de as sufragar compete apenas a quem as sente dolorosas. Não aos outros. E ele tinha as suas próprias apoquentações.

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