30.4.18

Quando apetece acreditar nos homens


Parquet Courts, “Normalization” (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=jESSg24szAo
Nem tudo é mau como parece. Às vezes, uma centelha irrompe entre a monótona ditadura das sombras. Pois há gente com um acesso de ousadia que rompe com a desconfiança, o espetro da destruição, o metódico aviltar do outro, a intolerância desbragada. Descobre-se que não faz sentido manter inimigos imorredoiros. Não faz sentido arregimentar exércitos em fileiras pré-bélicas, atirando os povos uns contra os outros, atirando-os para o desassossego permanente. Tudo isto nunca teve razão de ser, a não ser a motivada pelo espartilho das ideias que se emprestam à impossibilidade da conciliação.
Quando somos testemunhas de um começo de diálogo entre povos hostis, apetece exaltar a grandeza dos homens que se predispõem ao entendimento. Apetece meter um parêntesis no metódico pessimismo antropológico para saudar a humanidade. Ao sermos espetadores de um singelo aperto de mãos entre os líderes das duas Coreias, apetece erguer um copo de vinho (mesmo que as imagens coincidam com o pequeno-almoço) e celebrar a audácia que se desembaraça da mudez estabelecida.
O espaço de análise (nos governos, na comunicação social e na academia) estará enxameado por especialistas que terçam cenários, servindo-se de oráculos a que deitam os dedos ávidos de adivinhação para reformularem o módico de desconfiança abraçado ao incorrigível pessimismo. Julgo que estou à vontade para os denunciar: também medro na terrível desconfiança da humanidade e tenho uma leitura da história reveladora da pulsão autofágica que não honra os pergaminhos da racionalidade que os antropocêntricos reclamam para si mesmos, em oposição aos ditos “animais não racionais”. Nesta altura, não alinho com os analistas que insistem em tresler os acontecimentos. Não me interessa saber a cor do futuro. Não me interessa olhar de esguelha para o começo de conversa entre os líderes coreanos. Não me interessa desconfiar de um ato que pode matar a desconfiança. Não me interessa esquadrinhar o calculismo dos políticos e dos militares, de como decaem para jogos de sombras e labirínticas manobras que antecipam as jogadas do adversário, tudo para descrer nas negociações que podem, enfim, trazer a reconciliação de dois povos artificialmente separados há seis décadas. 
Só me interessa o gesto de boa vontade dos líderes das duas Coreias. E a promessa de desnuclearização das Coreias. Quero ver o que dizem os advogados de defesa da ordem internacional baseada numa falsa concórdia, os mesmos que insistem em denunciar os “Estados párias” pela incerteza que a eles imputam. Em confirmando-se futuramente o entendimento entre as duas Coreias, talvez sobre para outros o papel de párias – justamente aqueles que fazem repousar o seu papel de dominação mundial em arsenais nucleares, os que insistem em provar a estultícia humana.
Mas nada disto tem relevância ao pé das imagens que inauguraram a manhã daquela sexta-feira, 27 de março de 2018. Poder-se-á advertir que é extemporânea a minha exultação, que temos de esperar pelo futuro para saber onde desaguaram as negociações. Oxalá a boa vontade tenha apenas começado naquela sexta-feira, 27 de março de 2018. E, oxalá também, seja o precedente para outros que desonram a humanidade, e que estão no púlpito da responsabilidade por liderarem povos, aprenderem que a vida não frui da inimizade.

Sem comentários: