3.4.18

O diplomata


Hot Chip, “I Feel Better” (live in Sydney), in https://www.youtube.com/watch?v=J1zZKKKbX0g
O diplomata escondia a identidade atrás de uma máscara. Não era para menos. Aquelas atividades eram menos próprias para alguém da sua linhagem. Não se podia saber. A carreira podia estar em causa. A vida familiar, também. A imagem do país, que nele depositara confiança para ser seu diplomata, enodoada. Mas era irreprimível a pulsão daqueles festins, o ambiente clandestino, a fuga que as pessoas empreendiam para personagens em que se transfiguravam com a intermediação das máscaras que eram adereço obrigatório. O desejo era a narrativa que se sobrepunha. 
Para agravar o dilema do diplomata, ele era plenipotenciário representante de uma nação com responsabilidades na cena internacional. Já fica mal a um diplomata ser arrastado para estas lamas quando vem de nação irrelevante. Quantas vezes se procurou convencer a deixar estes prazeres condenáveis pelos cânones, para não hipotecar a sua chancela e, o que era de maior importância, o estatuto do país. O maldito desejo acabava a pesar mais na balança das equações. 
Corria tudo bem. Ninguém desconfiava das paralelas atividades, digamos, pouco recomendáveis. Ninguém haveria de suspeitar que era um bacante sem peias, a crer na pose gravemente solene que empunhava enquanto exercia funções, a crer no fleumático estar que era estalão entre seus pares e os demais circunstantes que tinham com ele algum convívio. 
Naquela noite, em estando a ser montados os preparativos para a corrupção de costumes que era o lema da confraria, o erudito excomungado pareceu reconhecer o homem que se escondia atrás da máscara pomposa. Era a linguagem corporal que o denunciava e um defeito de nascença na mão direita (só tinha quatro dedos). Ao início, o erudito excomungado não conseguiu que as sinapses se ligassem com coerência. Ficou a cogitar no assunto. Aproximou-se do confrade e soltou as palavras-código imperativas: “Por estas trevas que nos incendeiam, um cálice erguido aos prazeres proibidos.” O diplomata, já sob influência das substâncias também elas proibidas (parte dos preparativos a que se impunham os bacantes), retorquiu a contrassenha: “Pelos deuses e pelos demónios – e pela inveja que têm de nós.” O erudito excomungado notou o sotaque intenso. O interlocutor não era nativo. Nessa altura, todos os elos se juntaram. Aquele era o diplomata da poderosa nação que uma vez conhecera em cerimónia clandestina de apoio ao movimento que queria montar uma idílica revolução no país. 
Em estando vedado o diálogo pela linguagem comum, disparou: “é o confrade quem eu julgo pensar?” – e, sem demora, concluiu: “o digníssimo plenipotenciário da outrora grandiosa nação que hoje ensaia recuperar esse estatuto?”. O diplomata afastou-se devagar, sem esboçar resposta. Queria desconversar – ou melhor: não queria conversa, ao mesmo tempo que os suores frios tomavam conta do corpo, ao desconfiar que alguém tinha descoberto a sua identidade. Recuou nas intenções. Voltou para junto do erudito excomungado: “Adivinhou, caro confrade. Contarei com a sua discrição e que a minha identidade se manterá sob anonimato?” O erudito excomungado notou o incómodo do diplomata. Quis sossegá-lo: “saiba o senhor confrade – note: não o trato por embaixador, o que é revelador das minhas intenções – saiba que cumpro escrupulosamente as regras da confraria. Ninguém saberá quem é vossa excelência. Nem sequer outros confrades, de que, aliás, desconheço identidade.
O erudito excomungado sentiu um alívio. Afinal, outros que dantes pertenceram à sua linhagem tinham os mesmos desvios de comportamento. A diferença é que o diplomata escondeu os privados vícios, a devassa tão vilipendiada pelas regras rígidas do escol. Mas isso não importava. Neste dia, convenceu-se que não haverá vivalma com um passado (e um presente) impolutos.

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