2.4.18

Limpando a poeira dos ombros


Gos Is An Astronaut, “Epitaph”, in https://www.youtube.com/watch?v=fm5gNUYFPs8
Depois de um sono que estava teimoso, o tatuador acordou e, ainda estremunhado, sentiu-se completo. Era daqueles dias em que as pessoas estão convencidas que vai ser o seu dia. O sono fora retemperador. Já não se lembrava da insónia e do que a motivara.
Era dia de folga. Não tinha de se aprisionar no gabinete onde fazia tatuagens, umas atrás das outras. Não tinha de fazer de padre em confessionário, escutando, quase sempre contrariado, as histórias de vida ou a lógica de uma tatuagem encomendada. Queria um pedaço de mundo, de ar que fosse livre. Queria consagrar a imensa liberdade que sentia a latejar nas veias. Não tinha planos – assim como assim, acabara de acordar e queria-se desligar do torpor, o mais depressa possível. Não tinha planos para o seu dia que seria imperador entre os dias. Esses eram os seus únicos planos, os não planos arquejados no dorso das promitentes ruas que seriam sua demanda.
Era cedo (apesar de já ter passado da hora do almoço). Jurou, com uma energia irreprimível, que o dia seria grandioso. Jurou que ia arregaçar as mangas e rejeitar o rosto às contrariedades. Até o que fossem contrariedades seria depurado através de um ângulo inesperado, sobrando uma imagem insólita, a lição de que os contratempos se diluem na maresia que o olhar quiser empunhar. Jurou que não seria refém das vertigens meãs, nem seria soldado-raso de disputas sem nexo. O dia grandiloquente, miríade das meças sem padrão, tinha de correr sem dar conta do tempo. Nem que fossem os avessos de tudo a garantir o desiderato. Nem que fosse aos fundos mais exíguos, às raízes das árvores, ao mar sem esteio, e neles encontrasse âncora para saber o dia seu despejado de arteiros fantasmas. Não daria ouvidos ao mundo. Pois este era o dia seu. O dia seu. Se perguntassem por que teimava e onde estava selada tamanha caução, diria apenas não ser seu dever dar respostas a essas demandas. 
Sabia que esta era o dia seu. Uma rosácea aberta cheia de alvura, com raios violeta conferindo o oxigénio imperativo para derrotar os sobressaltos. Não haveria sobressaltos inscritos no mapa das estrelas. Não haveria frases amputadas a meio, ou vírgulas assassinas fora do sítio, os varandas com portas fechadas às chaves todas, ou sacerdotes trajando as sotainas que decretavam o respeito em surdina como equinócio da ablação de um eu, ou loucos fazendo-se passar por políticos (ou o contrário, não estava seguro – mas também não importava). Seria apenas um dia singelo, pontilhado com a urze da alegria, o olhar desembaciado, invulgarmente lúcido, um cais atravessando no meio do mar como garantia dos exilados da ventura. 
E ele, indiferente ao demais, sozinho no entrecruzar entre as miragens que assaltavam o sono e a promessa, feita certeza, de um dia bebido com a unção da plenitude.

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