5.4.18

Que não se perca uma única bala


Bulllet, “Hong Kong Stomp”, in https://www.youtube.com/watch?v=6YAwx1HaqHY
No dia da sua preguiça, o tatuador decidiu que o entardecer seria na esplanada sobranceira ao miradouro, o lugar onde a cidade se apresta em genuflexão levemente inclinada. Pediu uma cerveja. Se o tempo estivesse de feição e o ocaso fosse deslumbrante, prolongaria a estadia na esplanada e talvez amesendasse para o jantar. Ia no segundo copo de cerveja. Na mesa do lado, sentaram-se duas mulheres. Uma, mais velha e com pose de líder de uma coisa qualquer, atendendo ao desembaraço dos modos e à diligência com que decidiu, por ela e pela companhia, o que iam tomar. A outra era uma jovem com ar tímido, com o rosto macilento e voz vacilante, em rima com a timidez sem remédio. A mais velha, um autêntico furacão de modos, começou a conversa. A voz estrepitosa determinou a partilha da conversa com as mesas limítrofes.
- É o que acontece quando um dos nossos ousa a dissidência. Temos de ser implacáveis. A expulsão é a única possibilidade, vociferava, como se a ira espingardeasse da boca na exata medida dos perdigotos visíveis, no afã de exibir os pergaminhos da liderança.
- O camarada vinha acusado de quê?, perguntou, a medo, a mais jovem, que parecia ter sido levada para a esplanada para dar continuidade ao tirocínio.
- Soubemos que o ex-camarada – é assim que tens de o tratar, pois ele já não nos pertence – começou a ter hábitos não consentâneos. Talvez a crise da meia-idade o tenha levado ao desvio. Não toleramos estes desvios. 
- E não receamos ser acusados de ortodoxia?, ousou outra pergunta, talvez não avaliando o risco do que podia ser considerado um topete.
- Não. Esse é um juízo alinhavado pelos outros, os nossos adversários e inimigos. Como tal, é um juízo irrelevante. Não damos atenção a esses rótulos que visam menosprezar-nos.
A conversa começou a soar a déjà-vupelo tatuador. Foi naquela noite em que o enésimo atraso da amiga o deixou refém da conversa entre dois homens que se lamentavam repetidamente por terem sido excluídos dos grupos a que pertenceram. Tinha a impressão que o diálogo entre as duas mulheres versava sobre o homem que se fazia passar pelo erudito defenestrado. Elas continuaram, com ênfase para a doutrinação da mais velha:
- O triunfo das nossas causas exige a coesão interna. A ninguém pode ser dado o direito de divergir. E ninguém pode ter comportamentos que sejam um ultraje aos nossos cânones. Se não for assim, acabamos por cair em estilhaços. 
- Não receamos ser acusados de totalitarismo?
- Lá estás tu outra vez! Até parece que engoliste o catecismo das forças da ordem, que estás para aqui a reproduzir a semântica do sistema. Não nos interessa o que os outros dizem de nós, nem as acusações que nos fazem. Se quiséssemos ser como eles, não éramos como somos – vê se entendes isso, ou não te auguro vida longa no movimento.
- De acordo, não era a minha intenção, desculpa. Foi só uma pergunta, para me situar. Ainda sou nova no movimento. Tenho de ir aprendendo.
- Leste aquele livro que te emprestei?
- Faltam as últimas oitenta páginas.
- Lê com muita atenção. Faz uma leitura demorada. Se fores assaltada por dúvidas (o livro, hás de convir, é de leitura complexa), estou aqui para as esclarecer. Dou aulas na universidade e esse é um dos autores que interpretamos.
- Deixa-me voltar ao ex-camarada: podes dizer por que foi renegado?
- Sim. Através dos nossos contactos, soubemos que começou a ter hábitos burgueses e a dar-se à devassidão. 
- Não sabia que somos rigorosos em matéria de costumes.
- Somos. É uma questão de disciplina. Se não impusermos a disciplina, não podemos almejar a coesão interna e – como disse há pouco – fragilizam-se as causas que prosseguimos. Ademais, o livro que te emprestei é o tira-teimas: se pertences ao movimento, entregas-te a ele, no despojamento da tua vida. É verdade: deixas de ter vida própria, se ela se transviar.
- Ele foi alvo de um processo interno?
- Claro. A acusação foi lida pelo comité de sábios e, ato contínuo, a decisão de expulsão foi anunciada pela mesma via, ficando selada nas atas constitutivas do movimento.
- O ex-camarada teve a possibilidade de se defender?
- Não era preciso. Tínhamos provas irrefutáveis. O movimento teve a bondade de o chamar ao comité de sábios para tomar conhecimento do libelo acusatório e da decisão aprovada. As regras foram todas cumpridas.
A jovem estava mais pálida do que quando chegou à esplanada. O tatuador começou a sentir comiseração da rapariga. Parecia que a sua vontade se tinha ausentado, ela ali à mercê da guru maniqueísta. E percebeu os contornos da conversa entre o erudito defenestrado e o ecologista proscrito, uns dias antes. Lamentou que a sua intrusão, em jeito de provocação, tenha acirrado a fúria de ambos os homens. Mas não sentia comiseração pelo erudito defenestrado: antes deitado ao abandono e à solidão do que na pertença de tamanha absorvente e implacável companhia.
(E se a devassidão foi o crime que ditou a defenestração, de certeza que está melhor do que dantes.)

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