12.4.18

Rio de fevereiro


LCD Soundsystem, “Someone Great” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=sZDKP5pnhhM
Era uma vez uma cidade crepuscular. Onde os rostos não andavam escondidos, nem disfarçados em seu simulacro. Uma cidade limpa. Uma cidade com as casas diferentes, sem cair em desarmonia. Uma cidade que era atenciosamente escutada pelo rio que habitava nas suas margens. O rio cuidava de impedir que a cidade se deitasse num estertor. Era sua testemunha e, ao mesmo tempo, estava de atalaia contra os sobressaltos. Dizia-se que o rio não dormia, e era verdade. Na sua vigilância imorredoira, o rio era património constituinte da cidade. 
Chamavam-lhe rio de fevereiro. Pois fora num longínquo fevereiro que deusas vigilantes se insurgiram contra a ousadia de uns forasteiros que ardilosamente quiseram tomar conta da cidade. As deusas fizeram um levantamento de tal ordem que as naus dos forasteiros, ancoradas no cais da cidade e com os forasteiros nelas repousando, foram devoradas pelas ondas impetuosas. Ninguém sabe o nome que o rio tinha dantes – nem os historiadores zelosos que não conseguiram encontrar menções ao nome do rio nos registos de antanho. Podia ter sido propositado, a dissolução dos registos prévios ao acontecimento que selou o nome do rio talvez por uns notáveis da cidade que assim quiseram homenagear o ato protetor do rio.
Este era um rio generoso para a cidade crepuscular. Era seu manancial. Um fértil aquário que a alimentava. Continha-se dentro das margens quando os invernos eram pródigos na produção de chuva. A cidade nunca foi atacada pelos desmandos do rio, que sempre se conteve no caudal e nunca transbordou das margens. Em respeito pela ordem tutelar do rio, a cidade organizava uma celebração a cada primeiro domingo de fevereiro. Durante todo o dia, acendiam-se as luzes da cidade. As luzes das iluminações públicas e as luzes de todas as casas. As pessoas não olhavam a custos na hora de prestar o tributo de que o rio era credor. Durante o dia e a noite, ornamentavam os seus (nesse dia) imperativos chapéus com lâmpadas de néon, a condizer com o espírito festivo, e encomendavam-se à farra sem limites. Dizia-se que era o contraponto com a cidade permanentemente crepuscular. Dizia-se que a cidade era propositadamente crepuscular, para naquele primeiro domingo de fevereiro se reinventar em contraste e, desse modo, avivar a homenagem ao rio tutelar.
Um dia, descobriu-se que um dos vizinhos países arquitetou uma barragem. O caudal do rio ia ser transfigurado. Os habitantes da cidade crepuscular foram tomados por um pânico tentacular. Temiam que o rio perdesse a sua identidade. Temiam que o rio perdesse os pergaminhos de figura tutelar da cidade. Temiam que a cidade deixasse de ser a cidade magicamente crepuscular.

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