24.4.18

Eu era o desdenhado


Ezra Furman, “Lousy Connection”, in https://www.youtube.com/watch?v=fvfI6Q5WFT0
Já devia ter aprendido: as pessoas aspiram a julgar os outros, porque é fora de si que se sentem como peixes na água. Ele há sentenças para todos os gostos. Muitas. Confirmando, em paradoxal movimento, que os outros é que são o inferno, mas só ocupam este pedestal se primeiro cativarem a atenção de outros que sobre os outros exteriores a si se pronunciam com autoridade de um juiz. 
Já devia ter aprendido a não dar ouvidos às lapidares sentenças que desaprovam comportamentos ou escolhas nos deslimites dos julgadores. São pródigos em contundentes juízos de valor quando os comportamentos ajuizados se prestam à dissidência, rompendo com as convenções de que os julgadores reclamam ser diletos guardiães. Era o caso da rapariga que trocou o amado por outro. Os julgadores não perdoaram a insídia. Sobre os laços abençoados divinamente impende um dever de conservação perene. Quem for acusado de os romper, incorre na severa punição decretada por juízes. Quase sempre, através da “censura moral”, uma poderosa arma que destrói a probidade de quem arrosta com a acusação. Ainda por cima, a menina cometeu o topete de trocar o amado por um de manifesta pior cepa. As pessoas, incrédulas, assinalavam a gravidade da troca: não podia ser, terá sido como se um terramoto tivesse lambido as famílias (dos antigos amantes); e que, em manifesta adversidade, o novo eleito pela menina estouvada era de pergaminhos inferiores. As pessoas protestavam: como era possível trocar tão bom e respeitável rapaz por outro habituado a ser transgressor das convenções, sem pergaminhos recomendáveis, de uma fealdade anotada, penhor de ideias lamentáveis, um provocador nato que se ufanava de sulcar maré oposta à das convenções assinaladas?
A menina e o novo amado eram indiferentes ao burburinho, ao clamor, aos dedos acusadores dos juízes que se nomearam a si mesmos juízes. Se fossem a tribunal de cada vez que um dos dedos acusadores se erguesse, passariam os ossos por milhares de tribunais e seriam condenados sumariamente por todos eles. No final, seriam compelidos a cumprir punição multiplicada à razão de todos os que notaram um lampejo de legitimidade para decretarem verdades irrefutáveis sobre um episódio de vidas alheias.
Não aprendia com nada disto. E dei comigo, repentinamente, no lugar do rapaz desdenhado, o alvo de todos os vitupérios, o biltre incorrigível, o truculento irascível, o não recomendável para o dote das donzelas. Afinal, já tinha aprendido tudo. À medida que os julgamentos intuíam o meu escalpe, apurei a dissidência. 

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