18.10.18

Mais do que um merecimento (short stories #49)


Underworld & Iggy Pop, “I’ll See Big”, in https://www.youtube.com/watch?v=56hUFsml7DE
          No ponto de mira: a convulsão que trazia as veias em ebulição possivelmente era um equívoco. Na tradução das equações perfiladas sob a tutela do olhar contemplativo, teimava uma névoa que embaciava a lucidez. Era como se uma embriaguez inesperada persistisse em hipotecar o raciocínio e não houvesse maneira de escrever sobre as linhas direitas. À primeira vista, o amontoado de palavras que serviriam de testemunho era ilegível, as letras sobrepondo-se em linhas diferentes – talvez sinal da escrita durante viagem sinuosa, ou que (na pior das hipóteses) muito ficara em dívida ao juízo quando essas palavras foram ensaiadas. Mas não há torpor que se sobreponha ao império da vontade. Num momento de lisura, todos os engulhos eram suprimidos. Todas as contrariedades, relativizadas. Era como se, de repente, a tempestade que tumultuava os sentidos se desviasse do curso previsto e um céu subitamente claro fosse o fermento esperado para alvorecer os pensamentos. E tudo era posto em retrospetiva, sem a contaminação de ardilosas subjetivações que povoam o caminho com sobressaltos dispensáveis. Foi célere, o entendimento. Nítido. Tudo posto em retrospetiva, não podia terçar lamentos. Nem por mais que angariasse, em seu desfavor, episódios dolorosos, arrependimentos, decisões que, à distância do futuro, eram benzidas pelo clarão do equívoco. Apesar de tudo o que fosse vulto tingindo o pretérito, sabia que o resto era de sinal contrário: um vasto mar de gratas recordações, uma vida considerada, sem contarem todos os preceitos que pudessem entranhar a dúvida sobre o mais que poderia ser arregimentado para a tornar maior. Tomou consciência que o resto se sobrepunha a todas as lamentações que pudessem ser viciosa refração do porvir. Sabia que não tinham fertilidade as angústias sobrantes. Comezinhas, eram simples notas de rodapé que não contaminavam a monumentalidade do demais. Assim se tornou interlocutor de si mesmo com a apostilha da fortuna semeada para a plenitude dos dias em carteira. Ignorar o critério, seria um ultraje ao merecimento de que se reconhecia credor. 

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