Cat Power, “Woman” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=eXhihx7_B5c
(Mote: “Otelo”, de William Shakespeare, encenação de Nuno Carinhas, Teatro Nacional de S. João)
No banquete da diplomacia – ou de qualquer outra (des)arte que meta as traves-mestras do poder, onde o poder se exiba como galões que cobrejam, ufanos, nas dobradiças dos fardamentos ornamentados, onde o poder pura e simplesmente seja ostentado (porque é a genética do poder). No banquete onde se sopesam as palavras e se lhes retira a sua espontânea matéria. Antecipando as jogadas no tabuleiro onde se congeminam os ardis. Pois nada é o que parece. Nada do que se diz é espelho das costuras por onde haveriam de ser desembainhadas as palavras se não se soubesse que as peças se movem (e são diligentemente movidas) no refogado dos fingimentos, no anteparo das conspirações. Até que, de tão densas camadas de fingimento, no palco sobrem as palavras malquistas entretanto adulteradas, entretanto objeto de salvo-conduto; todas as que no dicionário ecoavam inaceitáveis usos e malsãos atributos conquistam novo lugar, por tantas camadas de adulteração serem adestradas, ganham uma dignidade só possível porque o antigo dicionário foi esquecido na evanescência. Nestes que são os banquetes (agora) bem frequentados, o palco já não é um fingimento, já nada é fingimento: tudo se tornou matéria genuína, espessa, uma sucessão de enredos válidos que confirmam a equação onde, num pretérito longínquo, quase tudo que era desprezível ganhou foros de recomendável. Até que, a páginas tantas, os atores que pisam o palco sejam fingimento dentro de fingimento que, por sua vez, encobrem outros fingimentos. Uma galáxia de fingimentos, até já não se saber o que é um fingimento. Palavras houve (“verdade”, “mentira”, “decente”, “lamentável”, só para usar uns exemplos) que foram banidas do vocabulário – e com o seu próprio consentimento. Foi o melhor serviço que lhes prestaram, estes censores inadvertidamente bons. Não tivessem sido excluídas e, no nevoeiro intrincado dos sucessivos palcos onde tudo se finge, esses termos teriam sofrido ultraje ainda mais insuportável. Os que não quadram com a mise-en-scèneficam em dívida com o devir pelo labor minucioso de arqueólogos que exumem as palavras proscritas. Mas só quando a tela dos fingimentos em cascata se tiver exaurido e a alvorada convoque a repristinação das proscritas (para sua própria salvação) palavras.
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