15.10.18

O menino que acreditou até muito tarde que não havia pessoas más (short stories #47)


Linda Martini, “Putos Bons”, in https://www.youtube.com/watch?v=aEpv69iSKIA
          Foi um longo idílio com a humanidade. Folgou-lhe a memória para adiar a idade adulta. Uma inocência – ou, dir-se-ia: uma ingenuidade – contumaz. Anos a fio a depositar confiança nos outros, a tê-los como património da bondade. Talvez tenha sido a sorte de frequentar escolas onde não havia meninos maus. Soube mais tarde, quando travou conhecimento com a maldade (ao ter sido sua vítima), que há uma variedade de maldades cometidas por meninos desde a tenra idade e a escola é o habitat natural da função. Teve sorte. Ou não: houvesse sabido da têmpera da maldade desde os bancos da escola e tinha sido preparado para saber o que é e como preveni-la. Agora, que já não é menino e deu um salto de salmão para a idade adulta (obliterando a adolescência), continua a lutar para impedir que os ventos do pessimismo hasteiem bandeira dentro de si. É tomado de assalto pela nostalgia: oxalá fosse possível viajar no tempo, resgatar o pretérito, e continuar imerso numa bolha onde todos eram imunes à maldade – onde o próprio conceito era desconhecido. Mas não tem a certeza se deseja o impossível repristinar do passado. Já aprendeu a conviver com as feridas abertas que são bolçadas pelo mundo e pelas suas contingências. Perpetuar o fingimento (da bondade intrínseca e geral, como vacina contra a maldade) é absurdo. Essas não são as regras distorcidas por que se pauta o mundo. E agora, que já deixou de ser menino há tempo de sobra, terça uma batalha interior. Tenta fugir dos instintos de maldade que, com uma certa frequência, sente assomarem à superfície. Umas vezes, como reação à maldade de que é vítima. De outras vezes – o que angustia mais – como selo instintivo de uma ação. Enquanto terça as armas na batalha interior que o consome, não perdoa o palco de ilusões em que se fez a infância. Sem perceber que nesse julgamento do passado se desvia da bússola que teve em mãos durante (talvez) tempo a mais: possivelmente não é o presente, com o arrojo de maldades, soezes ardis, fingimentos disfarçados de fingimentos em sucessivas camadas, que quadra com o desenho do mundo. 

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