22.10.18

Primeira pessoa (short stories #51)


Grizzly Bear, “Four Cypresses” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=UKz6Isfgadg
A primeira pessoa: perímetro privilegiado, ponto cardeal, pedra filosofal, centrípeta. A fartura modesta. A fatura da existência, o legado da consciência. Contudo, recusando o egoísmo. A centralidade deve-se, apenas, à primeira pessoa só conseguir viver dentro do seu corpo e do seu pensamento. Ilha, num certo sentido, sem se desligar da indeclinável pertença a um todo onde se aprende que o grupo se sobrepõe ao indivíduo (axioma, porém, contestável). Mas nem assim a primeira pessoa sucumbe à própria existência, à própria realidade de onde se projeta. Na primeira pessoa: não aceito o recurso estilístico de falar de si mesmo na terceira pessoa do singular. Nunca percebi a extravagância. Se alguém quer falar de si mesmo, ou através das suas palavras oferecer uma opinião a quem o ouve, por que evita a primeira pessoa se é ela que afirma aquelas ideias? Será hipocrisia, temendo o contraditório? (Sempre se poderá invocar que foi a terceira pessoa – todavia, pseudónimo da primeira, que naquela se esconde – que exortou o deprecado.) Será apenas um modismo? Um mau modismo: quem se refugia no anonimato da terceira pessoa precisa de se esconder de si mesmo, talvez inseguro do seu ser e das temerárias palavras que proclama. Trata-se de um esconderijo, em sede da terceira pessoa, apesar de o nome ser invocado; mas é-o como um estranho para a primeira pessoa que se encomenda à terceira pessoa do singular, para não ter de exibir o seu nome próprio. A certa altura, parece que um palimpsesto tomou conta da primeira pessoa, que contratara um testa-de-ferro – a terceira pessoa – para em seu amedrontado nome falar. Há a primeira pessoa: não se abjure a condição de ilha, porque todos somos ilhas, e somos as ilhas de um arquipélago que não tem fim. A primeira pessoa junta em si as muitas segundas pessoas do singular com que travou conhecimento; e até as terceiras pessoas do plural que são seu atravessamento diário. O justo equilíbrio é a parte árdua da equação. Uma aprendizagem contínua. 

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