29.10.18

Moeda ao ar (short stories #56)


Viagra Boys, “Research Chemicals”, in https://www.youtube.com/watch?v=U7gbFMWZWlo
          Não saíamos deste empate. Era um colóquio perfeito da teimosia – e de como uma teimosia podia ser persistente, e a teimosia de um sobrepor-se à teimosia do outro. Quem nos visse, diria sermos loucos, dando esquadria à maneira de ver o problema em equação, não admitindo o vencimento da posição oposta. Era da identidade intrínseca: o sangue que corre nas veias era indomável, como se as veias fossem o leito onde, irrefreável, o caudal selvagem corria, corroendo as nem assim perturbáveis paredes das veias. Todo o pensamento era combustão e combustível pronto a ser atirado às fogueiras que precisavam de ser ateadas para serem fogueiras. Deste impasse obstinado, éramos os incendiários das fogueiras em espera. E depois atirávamo-nos que nem leões esfaimados ao lauto manjar onde eram terçadas as divergências. Quem nos visse, diria que inventávamos as nossas próprias divergências. E que, nesse pesar, fermentávamos o espírito de contradição. Às vezes, parecia que estávamos apartados um do outro, com o sangue em ebulição a ser serventuário de celeumas acesas. A mais inócua conversa, era certo, desaguava numa montanha de discordâncias que ia subindo à medida da escalada dos temas que vinham atrelados uns aos outros (ou sem qualquer elo entre eles). Diziam que éramos como o cão e o gato. Pude confirmar, mais tarde, que os cães e os gatos convivem em paz. Mas continuávamos a divergir, na razão intrínseca da divergência (quase nunca estávamos de acordo sobre o que dera origem à altercação), na grelha de análise que dava origem à discussão, na verificação das consequências e (quando era caso disso) na imputação de responsabilidades. Era como se falássemos diferentes idiomas unidos pelo mesmo húmus gramatical. Tu dizias que eras vítima da afirmação da minha identidade, como se o desprendimento da adolescência tivesse o efeito de confrontar os esteios adquiridos. Eu dizia que precisava que reconhecesses o meu pensamento autónomo – talvez, sem o admitir, a libertação das peias da adolescência, como se fosses o culpado das grilhetas sobrantes. A certa altura, atirámos a moeda ao ar. Desempatámos a contenda, sem designação do vencedor. Ainda bem. Anuí no crescimento. Reconheceste-me como tal e deixei de te hostilizar. E enterrámos o machado ensanguentado dos pleitos que foram nosso lastro. Julgo que estás em paz com isso, como estou em paz contigo.

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