23.10.18

O nefelibata (short stories #52)


Jarvis Cocker & Kid Loco, “I Just Came to Tell You That I’m Going” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=wwT_bu9w84E
         Perguntassem-lhe o nome do dia; o lugar onde estava; a fase da lua; o nome do primeiro-ministro; quantas eram as cores do arco-íris; o idioma mais falado; ; o que fora o seu almoço; a escultura no centro da praça centrípeta; o nome do rio que atravessa a cidade; a sua idade – e ele não tinha resposta para as interrogações. Não fazia de conta que não sabia. Não sabia. Não queria saber. E dele ninguém sabia por onde inventariava o pensamento. O trato lunático era marca registada. Desde a infância. Nunca quis saber da escola, nem da aprendizagem convencionada. Só leu o que lhe apeteceu. Leu em barda. Terá lido num ano o que os seus antigos colegas de escola leram na vida inteira. Ao contrário do que seria de supor, não se orgulhava da enciclopédica sabedoria. Houve uma vez que um perito das dores da alma o desenganou: a sabedoria em resmas não tinha préstimo. Ele não se importava. Com o que menos se importava era o que dele outros diziam. As suas distrações eram um monumento local. Os sapatos não vinham aos pares; uma peúga não combinava com a outra (ou um pé estava calçado e o outro não); já saíra à rua com metade do rosto escanhoado (e não se tratava de adesão a uma moda de vanguarda); já fora visto com roupa do avesso – e, invariavelmente, com andrajos, velhos e sujos. Ninguém sabia com o que se importava. Se aos outros fosse dar a saber as suas leituras, podiam ter uma imagem clara dos seus interesses. Mas ele escondia. Escondia tudo: as leituras (os livros com que se passeava tinham capas em papel de almaço, sem identificação de autor e título); escondia-se, ele próprio. Os mais ásperos diziam, sem complacência, que era sociopata. Chegou-lhe aos ouvidos. Não perdeu um minuto a desmentir. Também não acusou a receção do epíteto. O mais certo era ter sido assaltado por uma distração no momento imediatamente seguinte a ter tomado conhecimento da acusação. Imerso noutros pensamentos, já não se lembrava do acontecido. A memória tinha um escasso prazo de validade. Talvez em virtude disso, nunca se importunou com nada e com ninguém. Nem sequer com aqueles que com ele se importunavam. Não era de admirar: o seu chão era o céu acima dos corredores aéreos por onde passavam os aviões. Só tinha a certeza disto: era nefelibata. E não se incomodava.

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