26.10.18

Relapso


Royal Trux, “Liar”, in https://www.youtube.com/watch?v=9BneR3bjueI
          Teimosia incorrigível. Não seria arrependimento útil dar caução aos contratempos pretéritos, os que trouxeram remendos difíceis de consertar, cicatrizes visíveis, perenes – atrozes. Parecia que o ontem, o simples ontem, era uma distante aridez, o completo esquecimento. Desconhecia que as marés obedecem a ciclos, repetitivos, e que podia acautelar-se dos irrefreáveis golpes que os fantasmas ocultos não deixavam de assestar. A reincidência era uma tolice. Um resmungão, casmurro ator que não se importava de pisar os mesmos palcos dolorosos. Era a maldição da desmemória. Não sabia do ontem, do seu paradeiro. Considerava que era refratário de si mesmo, como se houvesse um exílio por preencher nas lacunas do tempo, não ocupadas por fragmentos da memória. Era vítima da sua obstinação. Tanto fora o tempo que adjetivara, em maus modos, o seu mal emoldurado passado; tantas tinham sido as vezes que reclamara o império do presente, que a maldição agora se pagava com um imenso espaço branco e vago que representava a memória dissolvida. Agora percebia os danos causados. Não se lembrava do que eram as gratas memórias (também as tinha, de certeza; só que delas não tinha lembrança). E como também não contemplava os arrependimentos e os maus preparos que foram combustível dos sobressaltos e de outras consumições maiores, não tinha ideia dos descaminhos de outrora que não devia reiterar. Aliás, não sabia quando essa repetições aconteciam. Não se conseguia sentir relapso. Só se fosse possível abstrair-se dos limites do eu, e observar-se a si mesmo desde o exterior, conseguiria ajuizar os tumultos existidos e reparar, a tempo, os equívocos aprazados. Do sal atirado para as feridas abertas não tinha mapa visível. As dores, só as sentia com a demora de um tempo; mas não sabia qual era a gramática desse tempo. O pior, é que a memória tão efémera não acautelava os juízos sobre os desacertos de antigamente. Quando eram repetidos, não chegavam a pertencer ao rol das repetições. Nunca chegava a ser reincidente.

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