5.10.18

Diário da República (short stories #41)


Soft Cell, “Say Hello Wave Goodbye” (Live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=exdCiRPvmpU
(Narrativa na primeira pessoa)
                  Hoje faço anos. Cento e oito. Não me meçam a idade pelos padrões humanos. Não me meçam pelos dobrões pendidos e pelas possíveis teias que pedem aranhas. Eu sou imortal. (Dou por assente, em coro com uma imensa maioria, que os reis são figuras atávicas e apenas preenchem um imaginário folclórico.) A prova de que não estou vetusta é que saio todos os dias à rua ostentando os belos e ainda roliços seios. Quem se pode gabar desta prerrogativa? Se outras fossem as mulheres a exibir os seios (descontando as manifestações de mulheres semidesnudas em protesto contra boçais espécimes masculinos), seriam encarceradas por atentado ao pudor e alcunhadas “galdérias”. Sou a franqueza em pessoa, a simplicidade que se despoja de artefactos, a âncora da confiança dos cidadãos. Sou, num certo sentido, a figura maternal que cinge os cidadãos na asa quando eles precisam de abrigo – e já era tempo de vulgarizar no léxico “mátria” em vez da desusada “pátria”. E não me canso. É outra prova da vitalidade que se não me esgota. Sou a ágora dionisíaca onde o areópago do poder se oferece à sindicância. Sou tolerante. Prezo o diálogo e o contraditório. Arrenego os que a mim se agarram com o propósito de excluir quem se lhes opõe. Não me limito a ficar à defesa: denuncio-os e sonho, nos meus sonhos confessáveis, que sejam aprisionados e desprovidos de direitos cívicos. Não quero ninguém deposto a meus pés. Odeio a ideia, defendida por alguns dos meus seguidores, de ser sacralizada. Sou modesta – daí a leveza da vestimenta que trago, a lhaneza dos seios à mostra, uma certa ingenuidade contundente, ingenuidade apenas na aparência. Sei que da minha boca sopra o vento suave, mas assertivo, que desenha as curvas do porvir. Mas não quero que me comparem a uma deusa. Sou eu, república e apenas república, expoente da humildade, lição única que ambiciono que seja reconhecida por todos que se dizem meus súbditos, dos economicamente poderosos aos mendigos que protestam um futuro, dos mandantes que tomam conta de públicas sinecuras aos modestos funcionários imersos numa vida que mais parece uma ladainha. Não estou fora de prazo! Porque não tenho prazo de validade. 

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