24.10.18

O dia em que sepultaram todos os ismos – e não foi boa notícia (short stories #53)


Gengahr, “Carrion”, in https://www.youtube.com/watch?v=qFxhHFD2LBE
          De uma assentada, e sem pré-aviso, a alvorada foi tida no achamento de que todos os ismos tinham terminado. Não se sabia quem o decretou. Ao início, quase todos exultaram. Até os que viviam agarrados aos seus particulares ismos: estavam cansados dos pleitos, da refrangência com pespontos hostis, da pulsão (de que ninguém sabia localizar a origem) de sobrepor as ideias próprias às que com elas se digladiavam. Os outros, os que não perfumavam a existência com tabus ditados por ismos rígidos, segredavam o vencimento de uma causa. As suas forças estavam exangues de tantas confrontação pueril e intelectualmente bélica. Ou, depois de as observarem exangues, passavam pelos tabuleiros das ideias com desinteresse, abstraídos das refregas, considerando-se propositadamente órfãos de ismos. O torpor não durou muito tempo. Ao início, ninguém desconfiou da paternidade da medida. Mas a extinção dos ismos era uma decisão totalitária. Primeiro, ninguém foi sobre ela consultado. Segundo, extinguir todos os ismos daria lugar a um único ismo, talvez por enquanto não revelado – e mesmo que um ismo ostensivo não fosse proclamado pelo entretanto revelado autor da ideia, a sepultura de todos os ismos seria o novo ismo em voga (ainda que sem formulação aberta, para não dar nas vistas como ismo; e para não entrar em contradição interna com o decidido). As pessoas amotinaram-se. Saíram à rua. Empunhavam cartazes que mostravam a sua doutrinação, os ismos que seguiam. As ruas encheram-se. Não havia memória de manifestações tão multitudinárias. Por aqueles dias, e enquanto o rosto na sombra não restaurava os ismos todos, as pessoas não saíram das ruas. Queriam ver-lhes reconhecido o direito de pensarem por si mesmas, sem guiões ou artificiais cordões sanitários estreitando os corredores do pensamento. Ao quarto dia, um temerário personagem conhecido pela usura da senatorial condição confessou a paternidade da decisão. Argumentou que os ismos estavam a ser usados com excesso de zelo, com impertinente dogmatismo. Uma voz tonitruante disparou, em antecipação ao protesto da multidão: “dogmático é extinguir os ismos!”, ao que se seguiu o clamor contra o senador: “ditador, ditador, ditador!” No dia seguinte, repristinada a situação, prosperavam as discussões (e até as dogmáticas) nos cafés, nos jardins, nas escolas e nas universidades, nas fábricas, nos serviços públicos, nas casas, por todo o lado. Ao contrário do que seria estimativa dos economistas, nunca houve dia tão produtivo na história.

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