João César das Neves, em artigo de opinião publicado no Diário de Notícias da passada segunda-feira, escreveu o seguinte:
“São hoje esquecidas e atacadas as duas razões mais próprias da glória feminina, o encanto da virgindade e a grandeza da maternidade. O engano é tal que vemos mulheres apreciar como ganhos a perversão da maternidade pelo aborto, da virgindade pela libertinagem, da família pelo divórcio. Cedem à promiscuidade e pornografia, velhas obsessões varonis. (…) Felizmente que, apesar da tirania da opinião, grande parte das mulheres resiste à pressão e preserva a superioridade. A virgindade e a maternidade brilham ainda neste tempo confuso. E, juntas na mesma pessoa, cintilam no mais alto dos céus, acima de toda a criatura.”
Eis a beatitude católica no seu máximo esplendor. A afirmação de verdades incontestáveis, ainda que com o toque da realidade apareçam desenquadradas do tempo em que vivemos. Será, quando muito, um “wishful thinking” deste expoente laico do fundamentalismo católico que ainda regurgita. Uma exibição do beato de serviço que, a espaços, escreve nacos de uma cartilha que nós, seguidores ou ovelhas tresmalhadas, devemos obedecer para não perdermos o norte no rumo espiritual que nos deve guiar.
Vou ignorar um dos esteios da “glória feminina”, a maternidade. Prefiro concentrar-me na digressão sobre a virgindade. A mulher deve preservar este valor que lhe é imposto do exterior, mesmo que isso corresponda à castração do seu íntimo, a uma violentação da vontade espontânea que se forma dentro dela . Que interessa se "a virgindade é trocada pela libertinagem” se essa opção apenas disser respeito à mulher que a toma? Será César das Neves (ou outro guardião da moral e dos bons costumes) o juiz supremo para avaliar o comportamento dos outros? Gostaria que alguém exterior a ele viesse tecer considerações éticas acerca dos seus comportamentos pessoais?
A Igreja não aprende a libertar-se das amarras de um totalitarismo que se impõe sobre o íntimo de cada ser humano. Por detrás de uma retórica de libertação da alma encontra-se um código de conduta cheio de sinais de repressão, que força o arrependimento quando o abominável pecado fala mais forte.
César das Neves vê, no fio do horizonte, um sinal esperançoso. A maioria das mulheres está a inverter a deplorável tendência da libertação do corpo e da alma. Em nome de uma virgindade que não se compreende bem que objectivo pretende alcançar, César das Neves anuncia, com uma felicidade contagiante, que há cada vez mais mulheres a regressar ao valor da virgindade. Presumo que são apenas aquelas que ainda não o deixaram de ser.
As mulheres estão de regresso ao valor da virgindade? Só se for lá na paróquia dele! E mesmo que seja, deito-me a adivinhar como terá César das Neves chegado a esta conclusão. Estou a vê-lo, nos encontros de doutrinação do jovem rebanho feminino, a perguntar em tom paternalista mas inquisidor: “noviças, quais de vós são ainda virgens?” Está-se mesmo a ver que, com pudor, muitas – senão todas – dirão ao senhor da barbicha que ainda não experimentaram os deleites do sexo (perdão, o pecado do sexo).
Às vezes faz sentido dizer que os extremos se tocam. Neste caso, serão diferentes lados das barricadas religiosas que se encontram num cruzamento que une estradas vindas de sítios opostos. É com o elogio da virgindade deste fundamentalista católico que agora compreendo porque os fundamentalistas islâmicos oferecem a sua vida em troca das setenta virgens que lhes são prometidas assim que a sua alma é encomendada ao céu quando cometem atentados kamikaze.
31.3.04
30.3.04
A psicose dos atentados: a nossa vez?
A insegurança redobrou de intensidade desde os atentados de 11 de Março em Madrid. Perfilhando a batalha desigual contra um inimigo sem rosto que se multiplica como cogumelos e que ataca de forma imprevisível, onde menos se espera, agora é a nossa vez de começar a deitar contas à vida. Há uma questão que tem subido de tom, depois do terror espalhado em Madrid: seremos os próximos? Madrid é ali ao lado. Afinal Portugal hospedou a cimeira dos Açores onde foram alinhavadas as últimas coordenadas para a ofensiva do Iraque. Não podemos esquecer que em pouco mais de dois meses o país vai concentrar três eventos de exposição mundial: o 13 de Maio em Fátima, o Rock in Rio e o campeonato europeu de futebol.
Não surpreende que na comunicação social o tema da segurança interna seja recorrente. Aventam-se os mais fantasiosos cenários. Se dias há em que parece que a psicose alimentada por jornais e televisões parece ter sido esquecida, eis que chega outro dia com novas informações, com novos motivos de inquietação. Regressa a psicose e os portugueses começam a ficar alarmados com a possibilidade de o pequeno-e-tranquilo-país-à-beira-mar-plantado vir para a ribalta pelos piores motivos.
Confesso que não compreendo esta campanha da comunicação social. Os governantes já anunciaram, por mais do que uma vez, que não há ameaças credíveis. Por uma vez devíamos confiar no que nos dizem as pessoas do governo (por mais que desconfiemos da sua competência). De que serve esta campanha que, em vez de alertar os cidadãos, apenas contribui para o alarmismo? Parece que a comunicação social, sedenta por agendar temas apetitosos que vendam o produto, prefere perverter a sua função de informadora sensata e opta pelo sensacionalismo barato. É uma virose que atinge, sem distinções, os vários órgãos de comunicação social. Todos alimentam a histeria colectiva que se começa a instalar.
Pergunto-me se não será este o resultado desejado pela comunicação social. Afinal não é ela que tem pautado a sua conduta por uma busca incessante de sangue (sabendo que é de sangue que o cidadão médio gosta)? Com tanto esforço imaginativo para tentar tirar da cartola mil e uma possibilidades de ataques terroristas, mais parece que é este o desejo da comunicação social. Até parece que anseia por ataques terroristas, para depois se convocar a solidariedade que unirá o país num pesaroso movimento de unidade por devoção às vítimas. Como se fosse necessário atirar o país para o fundo para, rastejando em procura das energias quase perdidas, reabilitar a auto-estima nacional. Estranha forma de aquilatar o devir do país: será preciso empurrá-lo para a desgraça para se voltar a fazer luz?
Ao patrocinar esta psicose colectiva que se vai edificando, a comunicação social não está a prestar um bom serviço. Em vez de assumir a sua vocação pedagógica, indissociável da função informadora, os órgãos de informação estão a confundir o alerta da população com o alarme generalizado. Faria sentido alertar a população caso viessem à superfície ameaças credíveis. Como não é o caso, trata-se de um gratuito alarme que tem os efeitos nefastos de adensar o medo que vai habitando dentro de cada cidadão que embarca nas patranhas dos jornais, televisões e rádios.
Estes, quais abutres ansiosamente à espera de debicar o cadáver, esperam pelo pior cenário possível.
Não surpreende que na comunicação social o tema da segurança interna seja recorrente. Aventam-se os mais fantasiosos cenários. Se dias há em que parece que a psicose alimentada por jornais e televisões parece ter sido esquecida, eis que chega outro dia com novas informações, com novos motivos de inquietação. Regressa a psicose e os portugueses começam a ficar alarmados com a possibilidade de o pequeno-e-tranquilo-país-à-beira-mar-plantado vir para a ribalta pelos piores motivos.
Confesso que não compreendo esta campanha da comunicação social. Os governantes já anunciaram, por mais do que uma vez, que não há ameaças credíveis. Por uma vez devíamos confiar no que nos dizem as pessoas do governo (por mais que desconfiemos da sua competência). De que serve esta campanha que, em vez de alertar os cidadãos, apenas contribui para o alarmismo? Parece que a comunicação social, sedenta por agendar temas apetitosos que vendam o produto, prefere perverter a sua função de informadora sensata e opta pelo sensacionalismo barato. É uma virose que atinge, sem distinções, os vários órgãos de comunicação social. Todos alimentam a histeria colectiva que se começa a instalar.
Pergunto-me se não será este o resultado desejado pela comunicação social. Afinal não é ela que tem pautado a sua conduta por uma busca incessante de sangue (sabendo que é de sangue que o cidadão médio gosta)? Com tanto esforço imaginativo para tentar tirar da cartola mil e uma possibilidades de ataques terroristas, mais parece que é este o desejo da comunicação social. Até parece que anseia por ataques terroristas, para depois se convocar a solidariedade que unirá o país num pesaroso movimento de unidade por devoção às vítimas. Como se fosse necessário atirar o país para o fundo para, rastejando em procura das energias quase perdidas, reabilitar a auto-estima nacional. Estranha forma de aquilatar o devir do país: será preciso empurrá-lo para a desgraça para se voltar a fazer luz?
Ao patrocinar esta psicose colectiva que se vai edificando, a comunicação social não está a prestar um bom serviço. Em vez de assumir a sua vocação pedagógica, indissociável da função informadora, os órgãos de informação estão a confundir o alerta da população com o alarme generalizado. Faria sentido alertar a população caso viessem à superfície ameaças credíveis. Como não é o caso, trata-se de um gratuito alarme que tem os efeitos nefastos de adensar o medo que vai habitando dentro de cada cidadão que embarca nas patranhas dos jornais, televisões e rádios.
Estes, quais abutres ansiosamente à espera de debicar o cadáver, esperam pelo pior cenário possível.
29.3.04
À descoberta da fome
A notícia tem já uma semana. O Público difundiu uma reportagem baseada num estudo do presidente do Conselho Económico e Social, Alfredo Bruto da Costa, sobre a incidência da pobreza em Portugal. Em tons alarmistas concluía que cerca de 200.000 pessoas passam fome. Mas não se fechava a porta a que este número pudesse atingir uma dimensão brutalmente superior – cerca de dois milhões de pessoas.
Ao longo da semana foram várias as manifestações compungidas. As mágoas foram sendo carpidas pela preocupante dimensão da fome no país. O próprio Expresso, quase oito dias depois do Público, não podia deixar passar em branco o assunto e também pintava o cenário em tons sombrios. Não sei se influenciado pela súbita vaga de pessimismo que inundou o país, o incontornável Mário Soares descobriu, sexta-feira à noite, que desde a revolução de Abril de 1974 nunca o país esteve tal mal como agora. Baseava-se em que evidências? Na fome que se descobriu, do dia para a noite? Ou estaria a confundir o tempo presente com aquele em que ele próprio foi primeiro-ministro?
Volto à fome. Não sei se hei-de ficar admirado pelo facto das análises tecidas terem dado à estampa um rol de carpideiras que envergonhadamente enxugavam as suas lágrimas por haver tanta gente à míngua. Corro o risco de ser acusado de insensibilidade humana, mas apetece-me concluir que esta choradeira colectiva não passa de um exercício de interiorização da culpa de cada um que foi surpreendido pela dimensão da fome. Ou tratou-se de um oportunista exercício de introspecção colectiva para atacar quem está no poder, como se os governos do passado não fossem (também) culpados pela situação.
É neste disparar em todos os sentidos que vejo uma interiorização de culpa. Não conseguem dormir descansados com a sua consciência por tanto verberarem a repatriação desigual da riqueza, mas são eles os primeiros a esquecer de passar à prática o que apregoam na teoria.
Não me vou alongar acerca da necessidade de termos um Estado activo no combate às fontes de pobreza, às causas onde radica a perene injustiça social. Quero apenas concluir com uma nota de estranheza pelos dados divulgados pelo Público. Se existe tanta fome, porque motivo há, num certo local do Porto, tanta gente que é destinatária do rendimento mínimo garantido a tomar o seu lauto pequeno-almoço numa confeitaria situada num local chique, mesmo junto aos escritórios locais do jornal que publicou este estudo?
Não sei como finalizar: se com regozijo, porque o rendimento mínimo garantido (RMN) até cria as condições para que pessoas carenciadas se possam dar ao luxo de tomar o pequeno-almoço no mesmo local onde os privilegiados jornalistas do Público o fazem; ou se revelar a minha estranheza, porque no fim de contas parece que a fome está a ser mitigada pelo RMN, que até permite a estas pessoas, à saída do pequeno-almoço, dar uma saltada ao clube de vídeo e levar uns DVD para casa. Mas neste caso a bota não bate com a perdigota: ou a fome existe e o RMN é um fracasso; ou, se este mecanismo foi um sucesso (como o parece comprovar aquele caso localizado, bem perto dos escritórios do Público), o estudo de Bruto da Costa não faz sentido.
Ao longo da semana foram várias as manifestações compungidas. As mágoas foram sendo carpidas pela preocupante dimensão da fome no país. O próprio Expresso, quase oito dias depois do Público, não podia deixar passar em branco o assunto e também pintava o cenário em tons sombrios. Não sei se influenciado pela súbita vaga de pessimismo que inundou o país, o incontornável Mário Soares descobriu, sexta-feira à noite, que desde a revolução de Abril de 1974 nunca o país esteve tal mal como agora. Baseava-se em que evidências? Na fome que se descobriu, do dia para a noite? Ou estaria a confundir o tempo presente com aquele em que ele próprio foi primeiro-ministro?
Volto à fome. Não sei se hei-de ficar admirado pelo facto das análises tecidas terem dado à estampa um rol de carpideiras que envergonhadamente enxugavam as suas lágrimas por haver tanta gente à míngua. Corro o risco de ser acusado de insensibilidade humana, mas apetece-me concluir que esta choradeira colectiva não passa de um exercício de interiorização da culpa de cada um que foi surpreendido pela dimensão da fome. Ou tratou-se de um oportunista exercício de introspecção colectiva para atacar quem está no poder, como se os governos do passado não fossem (também) culpados pela situação.
É neste disparar em todos os sentidos que vejo uma interiorização de culpa. Não conseguem dormir descansados com a sua consciência por tanto verberarem a repatriação desigual da riqueza, mas são eles os primeiros a esquecer de passar à prática o que apregoam na teoria.
Não me vou alongar acerca da necessidade de termos um Estado activo no combate às fontes de pobreza, às causas onde radica a perene injustiça social. Quero apenas concluir com uma nota de estranheza pelos dados divulgados pelo Público. Se existe tanta fome, porque motivo há, num certo local do Porto, tanta gente que é destinatária do rendimento mínimo garantido a tomar o seu lauto pequeno-almoço numa confeitaria situada num local chique, mesmo junto aos escritórios locais do jornal que publicou este estudo?
Não sei como finalizar: se com regozijo, porque o rendimento mínimo garantido (RMN) até cria as condições para que pessoas carenciadas se possam dar ao luxo de tomar o pequeno-almoço no mesmo local onde os privilegiados jornalistas do Público o fazem; ou se revelar a minha estranheza, porque no fim de contas parece que a fome está a ser mitigada pelo RMN, que até permite a estas pessoas, à saída do pequeno-almoço, dar uma saltada ao clube de vídeo e levar uns DVD para casa. Mas neste caso a bota não bate com a perdigota: ou a fome existe e o RMN é um fracasso; ou, se este mecanismo foi um sucesso (como o parece comprovar aquele caso localizado, bem perto dos escritórios do Público), o estudo de Bruto da Costa não faz sentido.
26.3.04
Lost in translation
Charlotte, uma jovem acabada de se formar em filosofia, está em Tóquio com o marido, um fotógrafo asfixiado pelo trabalho. Despejada na solidão, Charlotte sente-se perdida na frenética cidade. Perdida num mar de estranhos, perdida na vida, sem saber o que fazer agora que deixou de estudar. Perdida até no casamento, sem ter a certeza se deu o passo correcto.
Bob aterra em Tóquio para participar numa campanha publicitária para uma marca de whisky japonês. Aturdido pelo fuso horário, pela irritante hospitalidade japonesa, e pelo estranho realizador da campanha, Bob também não sabe o que fazer às horas nocturnas em que o sono se recusa a chegar. Acaba por afluir ao bar do hotel onde trava conhecimento com Charlotte. A intimidade entre ambos vai crescendo quando o marido de Charlotte se ausenta por uns dias. Ambos deambulam por Tóquio, vencidos pela insónia de quem não conseguiu derrotar a diferença de fuso horário.
Sucedem-se pequenos diálogos onde os silêncios são geridos com perfeição. Valem mais pelas meias palavras que ficam por dizer. E pelos olhares furtivos que, à passagem do tempo, se vão trocando. Ambos partilham uma desorientação em relação ao mundo e aos desamores que os causticam. É nesta cumplicidade que vai crescendo uma atracção recíproca. Sem, contudo, permitirem a sua revelação. Apenas descaindo nos olhares que se esquivam, envergonhados, pelo canto do olho. Talvez a barreira inicial seja a diferença de idades. Bob podia ser pai de Charlotte. À medida que as horas passam e a convivência cresce, vão vencendo as defesas interiores. Ambos sentem que querem partilhar o pouco tempo que lhes resta em Tóquio, como se aqueles dois dias fossem os dias que faltavam para o mundo terminar. Sabem que no regresso a casa perderão o rasto.
Há uma nítida dimensão platónica do sentimento que vai crescendo dentro de ambos. Este platonismo é alimentando por Bob, mais ainda quando não consegue resistir à libido, aos encantos de uma voluptuosa mas desinteressante cantora do bar do hotel, e à força destemperada do álcool ingerido. Bob concretiza com a cantora do bar aquilo que idealiza com Charlotte. Idealiza mas é incapaz de passar à acção. Sentindo que a força dos laços sensoriais que os foi unindo naquelas esparsas horas era um obstáculo à instinto carnal.
E, no entanto, alimentavam a atracção. Passava o tempo e os dois queriam estar mais tempo um com o outro. Fosse como refúgio da crise interior que a ambos dilacerava, assim se expondo a uma atracção recíproca. Charlotte, desorientada quanto ao rumo de vida; Bob, desencantando com a sua carreira de actor, resignado a um casamento rotineiro que já tinha perdido a chama de outrora, mergulhado numa crise de meia-idade. Desencontrados de si mesmos, estavam descomprometidos para algo que veio do nada e em breve jorrou com uma intensidade inesperada. Quando deram conta estavam presos um ao outro, ainda que muito tenham batalhado para o evitarem. Seria a força das circunstâncias, ou apenas um genuíno apelo vindo do interior a clamar por um corte radical com o passado?
Bob despede-se do Japão deixando Charlotte entregue a si mesma. Sem haver declarações, sem haver despedidas emocionais. Até que, num assomo de arrependimento, Bob descobre-a entre a multidão, na delirante Tóquio. Vence o conformismo e abraça-a, num longo e apertado abraço que termina num intenso beijo de despedida. Aquilo que até então se confundia com um amor paternal revela-se na sua verdadeira dimensão: um amor como qualquer outro, nascido e consumido na voragem do tempo. Num ensaio do efémero que traz uma fecunda intensidade de vida. Mas amor ou atracção? Atracção feita amor, espontâneo, pelo próprio e pelo outro?
Bob aterra em Tóquio para participar numa campanha publicitária para uma marca de whisky japonês. Aturdido pelo fuso horário, pela irritante hospitalidade japonesa, e pelo estranho realizador da campanha, Bob também não sabe o que fazer às horas nocturnas em que o sono se recusa a chegar. Acaba por afluir ao bar do hotel onde trava conhecimento com Charlotte. A intimidade entre ambos vai crescendo quando o marido de Charlotte se ausenta por uns dias. Ambos deambulam por Tóquio, vencidos pela insónia de quem não conseguiu derrotar a diferença de fuso horário.
Sucedem-se pequenos diálogos onde os silêncios são geridos com perfeição. Valem mais pelas meias palavras que ficam por dizer. E pelos olhares furtivos que, à passagem do tempo, se vão trocando. Ambos partilham uma desorientação em relação ao mundo e aos desamores que os causticam. É nesta cumplicidade que vai crescendo uma atracção recíproca. Sem, contudo, permitirem a sua revelação. Apenas descaindo nos olhares que se esquivam, envergonhados, pelo canto do olho. Talvez a barreira inicial seja a diferença de idades. Bob podia ser pai de Charlotte. À medida que as horas passam e a convivência cresce, vão vencendo as defesas interiores. Ambos sentem que querem partilhar o pouco tempo que lhes resta em Tóquio, como se aqueles dois dias fossem os dias que faltavam para o mundo terminar. Sabem que no regresso a casa perderão o rasto.
Há uma nítida dimensão platónica do sentimento que vai crescendo dentro de ambos. Este platonismo é alimentando por Bob, mais ainda quando não consegue resistir à libido, aos encantos de uma voluptuosa mas desinteressante cantora do bar do hotel, e à força destemperada do álcool ingerido. Bob concretiza com a cantora do bar aquilo que idealiza com Charlotte. Idealiza mas é incapaz de passar à acção. Sentindo que a força dos laços sensoriais que os foi unindo naquelas esparsas horas era um obstáculo à instinto carnal.
E, no entanto, alimentavam a atracção. Passava o tempo e os dois queriam estar mais tempo um com o outro. Fosse como refúgio da crise interior que a ambos dilacerava, assim se expondo a uma atracção recíproca. Charlotte, desorientada quanto ao rumo de vida; Bob, desencantando com a sua carreira de actor, resignado a um casamento rotineiro que já tinha perdido a chama de outrora, mergulhado numa crise de meia-idade. Desencontrados de si mesmos, estavam descomprometidos para algo que veio do nada e em breve jorrou com uma intensidade inesperada. Quando deram conta estavam presos um ao outro, ainda que muito tenham batalhado para o evitarem. Seria a força das circunstâncias, ou apenas um genuíno apelo vindo do interior a clamar por um corte radical com o passado?
Bob despede-se do Japão deixando Charlotte entregue a si mesma. Sem haver declarações, sem haver despedidas emocionais. Até que, num assomo de arrependimento, Bob descobre-a entre a multidão, na delirante Tóquio. Vence o conformismo e abraça-a, num longo e apertado abraço que termina num intenso beijo de despedida. Aquilo que até então se confundia com um amor paternal revela-se na sua verdadeira dimensão: um amor como qualquer outro, nascido e consumido na voragem do tempo. Num ensaio do efémero que traz uma fecunda intensidade de vida. Mas amor ou atracção? Atracção feita amor, espontâneo, pelo próprio e pelo outro?
25.3.04
Um cartão amarelo para o governo ou para o PS?
Nos últimos dias tenho dado de caras com uma enxurrada de outdoors dos socialistas pedindo aos portugueses para punirem o governo nas eleições para o Parlamento Europeu. Num ano de abundante futebol, a retórica passa pelo tema. O PS pede que seja mostrado um cartão amarelo ao governo de Durão Barroso. Ao mostrar cartão, o árbitro – fico sem perceber se são os eleitores ou se é apenas o pessoal do PS… – explica as razões da admoestação: as listas de espera nos hospitais são a razão invocada no cartaz que acabou de se cruzar comigo.
Esta mais recente exibição de imperícia dos socialistas passa impune, sem ser desmascarada pelos órgãos de comunicação social. Não há ninguém que consiga explicar ao líder do PS que as eleições de Junho têm como objectivo eleger deputados para o Parlamento Europeu? O que faz sentido é debater temas relacionados com a União Europeia, mais ainda num ano tão crucial para o desenvolvimento da União (o alargamento a oito países de leste, Malta e Chipre; a Constituição da União Europeia).
Era bom que alguém assentasse as ideias dos socialistas cá do burgo, esclarecendo que era importante debater temas europeus quando as eleições são europeias. Em vez de lavar a roupa suja da política doméstica, por uma vez seria aconselhável que os políticos nacionais não se deixassem enredar nas teias da mais execrável demagogia. Basta relembrar os momentos de extrema importância que vão assinalar a vida da União Europeia durante o ano de 2004. E se tanto se reclama que os cidadãos vivem divorciados da União Europeia (o que legitima, para muitos, as acusações de défice democrático da União), como compreender que sejam os políticos nacionais a alimentar esse sentimento de desconfiança?
Como se sentirão os eleitores quando são chamados a votar para o Parlamento Europeu e verificam que há partidos que tentam discutir tudo e mais alguma coisa (da política doméstica) menos o que verdadeiramente interessa nessas eleições? Temo que muitas pessoas se sintam defraudadas por este tipo de baixa política, não se sentindo motivadas para acorrer às urnas. E depois vem o incrível Ferro Rodrigues, pesaroso, alertar para a necessidade de estender o horário de abertura das mesas de voto para combater a (mais que certa) elevada abstenção. Com uma tirada de um mau gosto atroz: “há mar e mar, há ir e votar”, disse, ao jeito da péssima publicidade a detergentes.
Sempre que me atravesso com estes outdoors, interrogo-me sobre quem merece ver o cartão. Mais do que admoestar o actual governo, quem merece ver um cartão é o actual PS – e não será apenas o cartão amarelo…Com tanta inabilidade para gerir a agenda da oposição, este PS é co-responsável pelo mau governo que temos. Co-responsável porque a coligação PS-CDS não tem que se preocupar com a ameaça do maior partido da oposição, na medida em que é uma oposição ausente.
A má oposição alimenta um mau governo, que não é obrigado a dar o melhor de si por não sentir que tem rivais à altura. Se o governo merece um cartão amarelo – e merece-o, sem dúvida – este PS não passa sem um cartão vermelho. Mas estes cartões não devem ser mostrados nas eleições para o Parlamento Europeu. Não é o local nem o tempo adequado para proferir estes julgamentos através da força do voto.
Esta mais recente exibição de imperícia dos socialistas passa impune, sem ser desmascarada pelos órgãos de comunicação social. Não há ninguém que consiga explicar ao líder do PS que as eleições de Junho têm como objectivo eleger deputados para o Parlamento Europeu? O que faz sentido é debater temas relacionados com a União Europeia, mais ainda num ano tão crucial para o desenvolvimento da União (o alargamento a oito países de leste, Malta e Chipre; a Constituição da União Europeia).
Era bom que alguém assentasse as ideias dos socialistas cá do burgo, esclarecendo que era importante debater temas europeus quando as eleições são europeias. Em vez de lavar a roupa suja da política doméstica, por uma vez seria aconselhável que os políticos nacionais não se deixassem enredar nas teias da mais execrável demagogia. Basta relembrar os momentos de extrema importância que vão assinalar a vida da União Europeia durante o ano de 2004. E se tanto se reclama que os cidadãos vivem divorciados da União Europeia (o que legitima, para muitos, as acusações de défice democrático da União), como compreender que sejam os políticos nacionais a alimentar esse sentimento de desconfiança?
Como se sentirão os eleitores quando são chamados a votar para o Parlamento Europeu e verificam que há partidos que tentam discutir tudo e mais alguma coisa (da política doméstica) menos o que verdadeiramente interessa nessas eleições? Temo que muitas pessoas se sintam defraudadas por este tipo de baixa política, não se sentindo motivadas para acorrer às urnas. E depois vem o incrível Ferro Rodrigues, pesaroso, alertar para a necessidade de estender o horário de abertura das mesas de voto para combater a (mais que certa) elevada abstenção. Com uma tirada de um mau gosto atroz: “há mar e mar, há ir e votar”, disse, ao jeito da péssima publicidade a detergentes.
Sempre que me atravesso com estes outdoors, interrogo-me sobre quem merece ver o cartão. Mais do que admoestar o actual governo, quem merece ver um cartão é o actual PS – e não será apenas o cartão amarelo…Com tanta inabilidade para gerir a agenda da oposição, este PS é co-responsável pelo mau governo que temos. Co-responsável porque a coligação PS-CDS não tem que se preocupar com a ameaça do maior partido da oposição, na medida em que é uma oposição ausente.
A má oposição alimenta um mau governo, que não é obrigado a dar o melhor de si por não sentir que tem rivais à altura. Se o governo merece um cartão amarelo – e merece-o, sem dúvida – este PS não passa sem um cartão vermelho. Mas estes cartões não devem ser mostrados nas eleições para o Parlamento Europeu. Não é o local nem o tempo adequado para proferir estes julgamentos através da força do voto.
24.3.04
Médio Oriente a ferro e fogo (sobre a morte de Yassin)
Esperei dois dias para escrever sobre a morte do sheik Yassin. Esperei dois dias para reflectir sobre o episódio, mais um, do barril de pólvora que não consegue ter os vários rastilhos apagados. Esperei dois dias para ver se os radicais islâmicos iam reagir com violência contra este ataque do exército israelita.
Passadas 48 horas, as prometidas retaliações não se consumaram. Quem esteja no seu juízo não pode esperar que os fundamentalistas palestinianos chorem de braços caídos a morte de Yassin. Sabemos que o valor da vida humana é escasso para os radicais islâmicos, perante outras oferendas espirituais que os cânones religiosos prometem na vida pós-terrena. O que é suficiente para darem o peito pela causa, numa orgia de morte que deixa um rasto de sangue, ceifando vidas inocentes, num rumo incessante de violência que conduz a região para um destino incógnito.
Não consegui chorar a morte de Yassin, ainda que reconheça na causa palestina uma grande dose de razão. Não consegui lamentar a morte do “líder espiritual” do Hamas porque ele foi também uma fonte insaciável do terror. Mas não exultei com a sua morte, como o fizeram sem pudor alguns sectores mais enfeudados ao judaísmo.
Não é aceitável veicular a ideia de que era isto que Yassin merecia porque patrocinou tanto terror e dilacerou a população de Israel com incontáveis atentados e violência gratuita. Afinar por este diapasão encerra uma negação dos valores que os defensores da superioridade da civilização ocidental não se cansam de apregoar. Para estes etnocêntricos, nós, os ocidentais, somos melhores do que os árabes. Porque damos valor à vida humana, porque respeitamos um catálogo mais extenso de direitos humanos. Porque somos “Estados de direito” que se orgulham de possuir leis que são respeitadas por todos, e procedimentos judiciais que não aceitam a lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”.
Manifestar contentamento pela morte de Yassin, invocando o seu passado de terrorista, é enveredar pela estrada do “olho por olho dente por dente”. É jogar o mesmo jogo dos radicais islâmicos que é tão censurado e que leva os arautos da superioridade moral do ocidente a proclamar a sua causa distintiva. Não é fazendo o mesmo jogo que se pode reivindicar a diferença que constitui o capital de uma pretensa superioridade. Pelo contrário, cair neste jogo de iguais não permite estabelecer qualquer diferença.
Intriga-me a conduta dos sucessivos governos de Israel que têm fomentado mais terror ao reagir aos atentados perpetrados pelos terroristas palestinos. Sem conseguirem perceber que se trata de uma interminável bola de neve que, descendo a ladeira, engrossa e fica imparável. Com o derradeiro episódio de violência, se fosse um cidadão israelita a minha angústia seria agora ainda mais permanente, sem saber se a noite que acabei de dormir foi a minha última noite de um sono repousado junto dos entes queridos. Porque, quem sabe, no dia seguinte um fanático palestino entra no café, no autocarro, ou no comboio e comete um atentado suicida que me leva deste mundo.
A decisão do governo de Sharon é insensata porque não é solução para o problema que atormenta os judeus. Pelo contrário, é mais uma acha que alimenta a fogueira em que judeus e palestinos se vão consumindo, merecendo-se uns aos outros.
Passadas 48 horas, as prometidas retaliações não se consumaram. Quem esteja no seu juízo não pode esperar que os fundamentalistas palestinianos chorem de braços caídos a morte de Yassin. Sabemos que o valor da vida humana é escasso para os radicais islâmicos, perante outras oferendas espirituais que os cânones religiosos prometem na vida pós-terrena. O que é suficiente para darem o peito pela causa, numa orgia de morte que deixa um rasto de sangue, ceifando vidas inocentes, num rumo incessante de violência que conduz a região para um destino incógnito.
Não consegui chorar a morte de Yassin, ainda que reconheça na causa palestina uma grande dose de razão. Não consegui lamentar a morte do “líder espiritual” do Hamas porque ele foi também uma fonte insaciável do terror. Mas não exultei com a sua morte, como o fizeram sem pudor alguns sectores mais enfeudados ao judaísmo.
Não é aceitável veicular a ideia de que era isto que Yassin merecia porque patrocinou tanto terror e dilacerou a população de Israel com incontáveis atentados e violência gratuita. Afinar por este diapasão encerra uma negação dos valores que os defensores da superioridade da civilização ocidental não se cansam de apregoar. Para estes etnocêntricos, nós, os ocidentais, somos melhores do que os árabes. Porque damos valor à vida humana, porque respeitamos um catálogo mais extenso de direitos humanos. Porque somos “Estados de direito” que se orgulham de possuir leis que são respeitadas por todos, e procedimentos judiciais que não aceitam a lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”.
Manifestar contentamento pela morte de Yassin, invocando o seu passado de terrorista, é enveredar pela estrada do “olho por olho dente por dente”. É jogar o mesmo jogo dos radicais islâmicos que é tão censurado e que leva os arautos da superioridade moral do ocidente a proclamar a sua causa distintiva. Não é fazendo o mesmo jogo que se pode reivindicar a diferença que constitui o capital de uma pretensa superioridade. Pelo contrário, cair neste jogo de iguais não permite estabelecer qualquer diferença.
Intriga-me a conduta dos sucessivos governos de Israel que têm fomentado mais terror ao reagir aos atentados perpetrados pelos terroristas palestinos. Sem conseguirem perceber que se trata de uma interminável bola de neve que, descendo a ladeira, engrossa e fica imparável. Com o derradeiro episódio de violência, se fosse um cidadão israelita a minha angústia seria agora ainda mais permanente, sem saber se a noite que acabei de dormir foi a minha última noite de um sono repousado junto dos entes queridos. Porque, quem sabe, no dia seguinte um fanático palestino entra no café, no autocarro, ou no comboio e comete um atentado suicida que me leva deste mundo.
A decisão do governo de Sharon é insensata porque não é solução para o problema que atormenta os judeus. Pelo contrário, é mais uma acha que alimenta a fogueira em que judeus e palestinos se vão consumindo, merecendo-se uns aos outros.
23.3.04
Os restos do estádio da Luz no mercado
Vinha anunciado num jornal: uma empresa aproveitou os despojos do estádio do Benfica que foi demolido, reciclou o betão armado e produziu pequenos utensílios evocativos do desaparecido estádio. Espera-se que os apaniguados do Benfica acorram em massa, numa azáfama saudosista, em busca das relíquias que testemunharam as glórias que andam arredias do passado recente. Como se espera que os outros clubes não percam tempo e façam a negociata com uma empresa, com os mesmos propósitos. Sempre são uns euros que entram em caixa, agora que as finanças dos clubes andam depauperadas, consumidas pela crise e por anos a fio de gastos sumptuosos.
Ao ler atentamente o anúncio, dois aspectos chamam a minha atenção. Primeiro, a retórica. Lá se avisa que se trata do cimento reciclado da “catedral”. Assim mesmo, da “catedral”. Eis como se confirma a ideia de que o futebol é um sucedâneo da religião, levantando massas numa clubite ardente que aniquila o racionalismo. À imagem da religião, também o futebol conduz cegamente as emoções. Incendeia paixões e ódios, é o sustento para milhões de almas que variam o estado de espírito consoante os sucessos ou insucessos desportivos do “clube do coração”.
Tal como a religião, também o futebol é um ópio do povo. Talvez até se verifique uma passagem de testemunho, agora que a fé parece atravessar uma crise na captação de crentes. O cepticismo religioso causa um entorpecimento que conduz as almas tresmalhadas a coisas mais terrenas, como o futebol. Na essência tudo se resume a uma simples substituição de crença. Os ritos não diferem, como a mobilização e o irracionalismo. A ignorância continua a ser o sustento do futebol, como o é da religião.
A segunda observação leva-me ao simbolismo da iniciativa comercial. A imagem que subitamente me acorreu foi a de ver a venda dos restos do estádio da Luz da mesma forma que hoje, mais de dez anos passados sobre a queda do muro de Berlim, ainda é possível encontrar recordações onde pequenos detritos do muro aparecem incrustados. Em Berlim como em Benfica, a queda de um mito. Para os saudosistas de uma ideologia, para aqueles que trazem um nó no coração porque o ideal de uma sociedade sem classes faz parte do pó que o passado consome; para aqueles que, em Lisboa, vêm os anos passar sem o sabor do gosto da vitória. Para uns e para outros, a ilusão do tempo passado traz a inevitabilidade de se agarrarem ao espólio que representa os tempos áureos.
Em Berlim os turistas que procuram os pequenos souvenirs contendo pedaços do muro derrubado não são conduzidos pela saudade dos tempos da vergonhosa repressão que o muro impunha. Antes fazem-no como sinal do conforto interior por saberem que onde estava a divisão artificial de um povo irmão está agora um via livre. Trazer de Berlim essas pequenas recordações tem o enorme significado de comemorar a derrocada do comunismo.
Voltando à escala doméstica, e pegando nesta analogia, quem sabe se os fanáticos adeptos de outros clubes não desatam a comprar os restos reciclados do velho estádio da Luz. Numa manifestação escatológica que, para eles, representa uma libertação dos anos sucessivos de dominação exercida pelo Benfica. Como quem diz, alto e bom som, que os tempos em que o Benfica dominava por ser o "clube do regime" pertencem ao passado. Esse tempo está enterrado. Não só pela inépcia do Benfica, mas também porque a dominação à custa da batota é agora privilégio de outra agremiação, mais a norte.
Ao ler atentamente o anúncio, dois aspectos chamam a minha atenção. Primeiro, a retórica. Lá se avisa que se trata do cimento reciclado da “catedral”. Assim mesmo, da “catedral”. Eis como se confirma a ideia de que o futebol é um sucedâneo da religião, levantando massas numa clubite ardente que aniquila o racionalismo. À imagem da religião, também o futebol conduz cegamente as emoções. Incendeia paixões e ódios, é o sustento para milhões de almas que variam o estado de espírito consoante os sucessos ou insucessos desportivos do “clube do coração”.
Tal como a religião, também o futebol é um ópio do povo. Talvez até se verifique uma passagem de testemunho, agora que a fé parece atravessar uma crise na captação de crentes. O cepticismo religioso causa um entorpecimento que conduz as almas tresmalhadas a coisas mais terrenas, como o futebol. Na essência tudo se resume a uma simples substituição de crença. Os ritos não diferem, como a mobilização e o irracionalismo. A ignorância continua a ser o sustento do futebol, como o é da religião.
A segunda observação leva-me ao simbolismo da iniciativa comercial. A imagem que subitamente me acorreu foi a de ver a venda dos restos do estádio da Luz da mesma forma que hoje, mais de dez anos passados sobre a queda do muro de Berlim, ainda é possível encontrar recordações onde pequenos detritos do muro aparecem incrustados. Em Berlim como em Benfica, a queda de um mito. Para os saudosistas de uma ideologia, para aqueles que trazem um nó no coração porque o ideal de uma sociedade sem classes faz parte do pó que o passado consome; para aqueles que, em Lisboa, vêm os anos passar sem o sabor do gosto da vitória. Para uns e para outros, a ilusão do tempo passado traz a inevitabilidade de se agarrarem ao espólio que representa os tempos áureos.
Em Berlim os turistas que procuram os pequenos souvenirs contendo pedaços do muro derrubado não são conduzidos pela saudade dos tempos da vergonhosa repressão que o muro impunha. Antes fazem-no como sinal do conforto interior por saberem que onde estava a divisão artificial de um povo irmão está agora um via livre. Trazer de Berlim essas pequenas recordações tem o enorme significado de comemorar a derrocada do comunismo.
Voltando à escala doméstica, e pegando nesta analogia, quem sabe se os fanáticos adeptos de outros clubes não desatam a comprar os restos reciclados do velho estádio da Luz. Numa manifestação escatológica que, para eles, representa uma libertação dos anos sucessivos de dominação exercida pelo Benfica. Como quem diz, alto e bom som, que os tempos em que o Benfica dominava por ser o "clube do regime" pertencem ao passado. Esse tempo está enterrado. Não só pela inépcia do Benfica, mas também porque a dominação à custa da batota é agora privilégio de outra agremiação, mais a norte.
22.3.04
Há um ano, a guerra no Iraque
No passado sábado fez um ano que se iniciou a intervenção militar no Iraque. Pelo mundo fora multiplicaram-se as manifestações de protesto contra esta guerra e a consequente ocupação militar. Por cá não escapámos a esta tendência de protesto. Os movimentos do costume, com o repetido folclore e as atoardas anacrónicas, não faltaram à chamada. Não podiam perder uma oportunidade para apontar o dedo aos Estados Unidos, como se esta fosse a alavanca que os faz mover-se numa acção política de contestação.
Neste tema há algumas coisas que partilho com estas esquerdas. Tal como elas, não aceito o papel dominante e intervencionista dos Estados Unidos no contexto internacional. Tal como elas, sou contra a guerra que findou com a deposição de Saddam Hussein. Perante esta coincidência de pontos de vista, interroguei-me se seria capaz de emparceirar com estas esquerdas nas manifestações de Lisboa e Porto? A resposta veio sem demora: não, não seria capaz de marchar em protesto lado a lado com estas personagens. Ainda que no conteúdo possa haver consonância entre o que penso e a retórica destas esquerdas, não me revejo nem nos meios utilizados nem, sobretudo, na falta de coerência que elas exibem.
Começando pelos meios. Pode ser apenas por uma questão estética, mas não consigo compreender o arregimentar de massas que, qual rebanho ordeiro, respondem à chamada dos chefes e marcham rua fora puxando pelos pulmões, arrebatando uma imaginação fértil com os slogans, faixas e encenações que vêm à superfície durante o protesto. Talvez seja a minha essência individualista, mas tenho suspeitas acerca da legitimidade destas manifestações em que o “colectivo” dá mostras de uma força indomável, quando na verdade há sempre uns indivíduos que manobram os cordelinhos. Como nunca gostei de ser instrumentalizado por ninguém, eis o primeiro motivo que não me levaria a sair à rua de mão dada com esta gente.
Mais importante é a falta de coerência que estas esquerdas demonstram. Para elas só certas guerras, protagonizadas por certos países de que não gostam, é que merecem protesto público. Nunca as vimos, no passado, a sair à rua num coro de protestos contra a invasão soviética no Afeganistão, ou contra a abusiva presença de tropas cubanas em Angola, ou contra as atrocidades que o regime de Milosevic cometia na espartilhada Jugoslávia. Nem muito menos as ouvimos a erguer as suas roucas gargantas em dizeres de protesto contra os regimes ditatoriais em Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Angola, Zimbabué, Bielo-Rússia.
É esta falta de coerência que me repugna. Ao contrário deles, qualquer tipo de guerra suscita a minha discordância. Porque qualquer tipo de guerra serve apenas para perpetuar o totalitarismo do Estado sobre o cidadão – de qualquer tipo de Estado que se socorra da guerra, independentemente do rótulo ideológico que se coloque no governo que a desencadeia. Ao contrário deles, não me insurjo apenas contra as guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Bem sei que lhes é conveniente afinar a baioneta contra os Estados Unidos e outros países que representam o “asqueroso capitalismo”. Afinal trata-se do oxigénio que move esta gente, como se a única causa seja a destruição do Satã norte-americano.
Não há nada da política dos Estados Unidos que cative a minha simpatia, hoje como ao vasculhar os últimos cinquenta anos. Mas se algum dia me fosse dado a escolher, numa absurda hipótese dualista, ser governado à moda destas esquerdas ou pelo modelo norte-americano, escolhia o mal menor – o dos Estados Unidos. Ao menos sempre há o respeito de um reduto mínimo de liberdade individual, coisa que as esquerdas radicais do nosso país são incapazes de garantir.
Neste tema há algumas coisas que partilho com estas esquerdas. Tal como elas, não aceito o papel dominante e intervencionista dos Estados Unidos no contexto internacional. Tal como elas, sou contra a guerra que findou com a deposição de Saddam Hussein. Perante esta coincidência de pontos de vista, interroguei-me se seria capaz de emparceirar com estas esquerdas nas manifestações de Lisboa e Porto? A resposta veio sem demora: não, não seria capaz de marchar em protesto lado a lado com estas personagens. Ainda que no conteúdo possa haver consonância entre o que penso e a retórica destas esquerdas, não me revejo nem nos meios utilizados nem, sobretudo, na falta de coerência que elas exibem.
Começando pelos meios. Pode ser apenas por uma questão estética, mas não consigo compreender o arregimentar de massas que, qual rebanho ordeiro, respondem à chamada dos chefes e marcham rua fora puxando pelos pulmões, arrebatando uma imaginação fértil com os slogans, faixas e encenações que vêm à superfície durante o protesto. Talvez seja a minha essência individualista, mas tenho suspeitas acerca da legitimidade destas manifestações em que o “colectivo” dá mostras de uma força indomável, quando na verdade há sempre uns indivíduos que manobram os cordelinhos. Como nunca gostei de ser instrumentalizado por ninguém, eis o primeiro motivo que não me levaria a sair à rua de mão dada com esta gente.
Mais importante é a falta de coerência que estas esquerdas demonstram. Para elas só certas guerras, protagonizadas por certos países de que não gostam, é que merecem protesto público. Nunca as vimos, no passado, a sair à rua num coro de protestos contra a invasão soviética no Afeganistão, ou contra a abusiva presença de tropas cubanas em Angola, ou contra as atrocidades que o regime de Milosevic cometia na espartilhada Jugoslávia. Nem muito menos as ouvimos a erguer as suas roucas gargantas em dizeres de protesto contra os regimes ditatoriais em Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Angola, Zimbabué, Bielo-Rússia.
É esta falta de coerência que me repugna. Ao contrário deles, qualquer tipo de guerra suscita a minha discordância. Porque qualquer tipo de guerra serve apenas para perpetuar o totalitarismo do Estado sobre o cidadão – de qualquer tipo de Estado que se socorra da guerra, independentemente do rótulo ideológico que se coloque no governo que a desencadeia. Ao contrário deles, não me insurjo apenas contra as guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Bem sei que lhes é conveniente afinar a baioneta contra os Estados Unidos e outros países que representam o “asqueroso capitalismo”. Afinal trata-se do oxigénio que move esta gente, como se a única causa seja a destruição do Satã norte-americano.
Não há nada da política dos Estados Unidos que cative a minha simpatia, hoje como ao vasculhar os últimos cinquenta anos. Mas se algum dia me fosse dado a escolher, numa absurda hipótese dualista, ser governado à moda destas esquerdas ou pelo modelo norte-americano, escolhia o mal menor – o dos Estados Unidos. Ao menos sempre há o respeito de um reduto mínimo de liberdade individual, coisa que as esquerdas radicais do nosso país são incapazes de garantir.
19.3.04
O mistério da vida que se forma
São oito semanas, ainda. Oito semanas, uma imagem ainda escura, mas já com algumas formas bem nítidas. Um feto que se encontra oblíquo, de cabeça para baixo. Com nitidez, o cordão umbilical que o liga à vida, que lhe traz a rodos os nutrientes necessários para uma gestação saudável. Por entre as imagens que ao início apareciam distorcidas, finalmente a pureza do embrião. Como quem sai a custo de um pesadelo cansativo e descobre, ao acordar para a vida, que a aspereza do sono ficou para trás. Uma aurora que desmente o pesadelo. A revelação de imagens mais límpidas é um bálsamo que descansa uma recôndita preocupação que podia pairar no íntimo.
Uma vida a pulsar dentro do ventre da mãe. Com a ajuda da tecnologia, as primeiras medições confirmam as oito semanas de vida. Um comprimento de 15,5 milímetros – pouco mais do que um centímetro, a frágil dimensão de uma vida que prospera abrigada na barriga protectora da mãe.
Entretanto um pequeno sinal anuncia o seu minúsculo coração em batidas compassadas e aceleradas. O coração bate, estonteante, a 174 pulsações por minuto. As emoções ao alto. Um arrepio a percorrer a espinha, as sensações elevadas a um ponto indizível. O arrepio culmina com os olhos marejados de emoção. Por saber que um filho tão desejado dá os seus primeiros passos de uma gestação que parece passar lenta. Suspeito que estes nove meses vão ser os nove meses mais longos da minha vida.
O coração do pequeno bebé, que de início surgia apenas como uma palpitação incandescente bem no meio do pequeno corpo, foi depois alimentado de som. Outra vez com o auxílio da técnica, pude ouvir o ritmo apressado do pequeno coração. Uma torrente de felicidade invadiu todos os meus poros, por saber que o ser que está dentro da barriga da mãe está vivo. Foi como se a ecografia funcionasse como a primeira comunicação entre o filho em gestação e os seus tranquilizados pais. As primeiras palavras produzidas através da sonoridade rítmica das batidas do coração, uma mensagem entusiasta sossegando os pais, dizendo que a vida fetal percorre o seu caminho normal.
Parecem momentos triviais, sem carga emotiva. Será para quem nunca passou por eles, ou para quem já se esqueceu dessas sensações ímpares que naqueles breves minutos transbordam os níveis de bem-estar. Por mais que estivesse para aqui a tentar descrever as sensações, por mais fidedigno que tentasse ser, a tarefa ficaria sempre incompleta. Porque há uma enxurrada de emoções que as palavras não conseguem captar. A desproporção entre a felicidade vivida – a enorme felicidade vivida – e os poucos minutos em que o exame se desenrola são a matéria viva que alumia a impossibilidade de descrever tudo o que senti interiormente.
As imagens a preto e branco, ofuscadas por sombras do útero materno, escondem um segredo bem guardado. Uma candeia traz uma imagem preciosa. Uma candeia que ilumina as indicações do ouro mais precioso que o amor paternal e maternal pode conceber. Um projecto de vida, os traços que se começam a esboçar para uma nova vida.
Uma vida a pulsar dentro do ventre da mãe. Com a ajuda da tecnologia, as primeiras medições confirmam as oito semanas de vida. Um comprimento de 15,5 milímetros – pouco mais do que um centímetro, a frágil dimensão de uma vida que prospera abrigada na barriga protectora da mãe.
Entretanto um pequeno sinal anuncia o seu minúsculo coração em batidas compassadas e aceleradas. O coração bate, estonteante, a 174 pulsações por minuto. As emoções ao alto. Um arrepio a percorrer a espinha, as sensações elevadas a um ponto indizível. O arrepio culmina com os olhos marejados de emoção. Por saber que um filho tão desejado dá os seus primeiros passos de uma gestação que parece passar lenta. Suspeito que estes nove meses vão ser os nove meses mais longos da minha vida.
O coração do pequeno bebé, que de início surgia apenas como uma palpitação incandescente bem no meio do pequeno corpo, foi depois alimentado de som. Outra vez com o auxílio da técnica, pude ouvir o ritmo apressado do pequeno coração. Uma torrente de felicidade invadiu todos os meus poros, por saber que o ser que está dentro da barriga da mãe está vivo. Foi como se a ecografia funcionasse como a primeira comunicação entre o filho em gestação e os seus tranquilizados pais. As primeiras palavras produzidas através da sonoridade rítmica das batidas do coração, uma mensagem entusiasta sossegando os pais, dizendo que a vida fetal percorre o seu caminho normal.
Parecem momentos triviais, sem carga emotiva. Será para quem nunca passou por eles, ou para quem já se esqueceu dessas sensações ímpares que naqueles breves minutos transbordam os níveis de bem-estar. Por mais que estivesse para aqui a tentar descrever as sensações, por mais fidedigno que tentasse ser, a tarefa ficaria sempre incompleta. Porque há uma enxurrada de emoções que as palavras não conseguem captar. A desproporção entre a felicidade vivida – a enorme felicidade vivida – e os poucos minutos em que o exame se desenrola são a matéria viva que alumia a impossibilidade de descrever tudo o que senti interiormente.
As imagens a preto e branco, ofuscadas por sombras do útero materno, escondem um segredo bem guardado. Uma candeia traz uma imagem preciosa. Uma candeia que ilumina as indicações do ouro mais precioso que o amor paternal e maternal pode conceber. Um projecto de vida, os traços que se começam a esboçar para uma nova vida.
18.3.04
Belmiro de Azevedo ameaça sair do país
Há um par de dias a comunicação social anunciava-o com alarido: o patrão da Sonae, descontente com o rumo seguido pelo país, revelou a intenção de retirar a sua holding do território nacional. Esta intenção é uma forma de pressão sobre o governo. Sendo responsável por avultada criação de emprego e de riqueza, Belmiro de Azevedo acha-se no direito de ditar as opções do governo em matéria de política microeconómica, em especial no que diz respeito aos apoios ao sector empresarial.
O governo não demorou a reagir: não cede a pressões, venham elas de onde vierem. Esta afirmação vale o que vale. É por demais sabido – até é objecto de estudo exaustivo por sectores da economia e da ciência política – que os governos são sempre sensíveis a pressões, “venham elas de onde vierem”. Tudo depende de quem ocupa a cadeira do poder e das suas motivações subjectivas. Tudo depende de quem tem acesso privilegiado aos canais de poder, à sua capacidade de persuasão e à sensibilidade dos governantes a estas formas de pressão. Quando o governo anuncia em público que não cede a pressões “venham elas de onde vierem”, há que relativizar a afirmação. Seria mais honesto reformular o enunciado: perante as circunstâncias actuais, o governo não é sensível às pressões exercidas por Belmiro de Azevedo.
Não posso ser ingénuo ao ponto de fazer de conta que a política contemporânea não é feita como resposta ao amplexo de pressões com origens plurifacetadas. Todavia há que encontrar um ponto de equilíbrio que não prejudique a decência pública. Se é impossível banir as pressões da agenda política, pelo menos que não se deixe passar para o exterior a imagem de que elas são o pão-nosso de cada dia. Até pelas suspeitas que se erguem no horizonte, beliscando a honestidade e a imparcialidade que se espera dos agentes políticos. Para bem da democracia, para bem da sobrevivência do regime político, para que os eleitores não se divorciem ainda mais do processo político, a caminho de uma plutocracia de interesses.
Lamentável é que um destacado agente do meio empresarial passe a imagem de dependência face ao Estado. Quando tanto se insiste que as empresas devem actuar num ambiente desligado de interferências estatais, a atitude de Belmiro de Azevedo vem em sentido contrário. Ele é o exemplo dos empresários que olham para o Estado com duas faces. Não querem que o Estado dificulte a sua actividade, reclamando uma regulamentação económica mais liberal, despida dos obstáculos intervencionistas que têm dominado. Mas quando atravessam dificuldades não hesitam em recorrer à mão amiga do Estado, reivindicando do governo actuações (logo, intervencionismo) que os ponham a cobro da concorrência externa. Dois pesos e duas medidas, com a tenebrosa imagem de que nos momentos de aperto estes empresários olham, por instinto, para o Estado paternalista como a tábua salvadora.
Não é com estes comportamentos que os empresários se constituem em agentes de mudança, os impulsionadores de uma sociedade civil descomprometida, com iniciativa, inovadora. Nem sequer conseguem cativar os cidadãos para o papel de mudança que deve ser seu predicado.
Num tempo em que é mote social o imperativo das democracias não cederem à chantagem dos terroristas que espalham tanta violência e insegurança, o mesmo comportamento deve ser seguido em resposta às intoleráveis pressões de Belmiro. Quer sair do país? Pois que vá, as portas estão abertas quer para quem entra, quer para quem quer sair.
O governo não demorou a reagir: não cede a pressões, venham elas de onde vierem. Esta afirmação vale o que vale. É por demais sabido – até é objecto de estudo exaustivo por sectores da economia e da ciência política – que os governos são sempre sensíveis a pressões, “venham elas de onde vierem”. Tudo depende de quem ocupa a cadeira do poder e das suas motivações subjectivas. Tudo depende de quem tem acesso privilegiado aos canais de poder, à sua capacidade de persuasão e à sensibilidade dos governantes a estas formas de pressão. Quando o governo anuncia em público que não cede a pressões “venham elas de onde vierem”, há que relativizar a afirmação. Seria mais honesto reformular o enunciado: perante as circunstâncias actuais, o governo não é sensível às pressões exercidas por Belmiro de Azevedo.
Não posso ser ingénuo ao ponto de fazer de conta que a política contemporânea não é feita como resposta ao amplexo de pressões com origens plurifacetadas. Todavia há que encontrar um ponto de equilíbrio que não prejudique a decência pública. Se é impossível banir as pressões da agenda política, pelo menos que não se deixe passar para o exterior a imagem de que elas são o pão-nosso de cada dia. Até pelas suspeitas que se erguem no horizonte, beliscando a honestidade e a imparcialidade que se espera dos agentes políticos. Para bem da democracia, para bem da sobrevivência do regime político, para que os eleitores não se divorciem ainda mais do processo político, a caminho de uma plutocracia de interesses.
Lamentável é que um destacado agente do meio empresarial passe a imagem de dependência face ao Estado. Quando tanto se insiste que as empresas devem actuar num ambiente desligado de interferências estatais, a atitude de Belmiro de Azevedo vem em sentido contrário. Ele é o exemplo dos empresários que olham para o Estado com duas faces. Não querem que o Estado dificulte a sua actividade, reclamando uma regulamentação económica mais liberal, despida dos obstáculos intervencionistas que têm dominado. Mas quando atravessam dificuldades não hesitam em recorrer à mão amiga do Estado, reivindicando do governo actuações (logo, intervencionismo) que os ponham a cobro da concorrência externa. Dois pesos e duas medidas, com a tenebrosa imagem de que nos momentos de aperto estes empresários olham, por instinto, para o Estado paternalista como a tábua salvadora.
Não é com estes comportamentos que os empresários se constituem em agentes de mudança, os impulsionadores de uma sociedade civil descomprometida, com iniciativa, inovadora. Nem sequer conseguem cativar os cidadãos para o papel de mudança que deve ser seu predicado.
Num tempo em que é mote social o imperativo das democracias não cederem à chantagem dos terroristas que espalham tanta violência e insegurança, o mesmo comportamento deve ser seguido em resposta às intoleráveis pressões de Belmiro. Quer sair do país? Pois que vá, as portas estão abertas quer para quem entra, quer para quem quer sair.
16.3.04
Ana Gomes, o cúmulo da patetice
Ontem deparei com um texto da ex-diplomata e proto-ministra dos negócios estrangeiros se os socialistas regressarem ao poder, a inenarrável Ana Gomes. Num blog colectivo (Causa Nossa) onde escrevem pessoas conotadas com o PS, Ana Gomes perorou sobre as eleições espanholas ao seu estilo caceteiro. Com o título “Arriba España! Portugal não tardará…”, a senhora dá provas do tacto que andou reprimido enquanto teve o sacrifício de exercer as funções de diplomata.
Compreendo a exultação com a vitória dos camaradas socialistas espanhóis. Que se façam extrapolações para Portugal é um exercício mais duvidoso, próprio de quem anda obcecado com uma desdita que vem do passado. Não têm conta as vezes que ouvimos ou lemos Ana Gomes a bater sem piedade no seu ex-companheiro de lutas no MRPP, Durão Barroso. Não sei se há aqui algum conflito de consciência que reprime o íntimo da senhora. Nem tão pouco se esta perseguição impiedosa é resultado de arrufos sentimentais mal resolvidos que ainda vêm desse passado.
Quando pensava que a política nacional já tinha batido no fundo, arrostando um fardo enorme de descredibilização, afinal era ainda possível empurrá-la mais para o fundo. A coveira tem um nome – Ana Gomes.
Com o texto ontem publicado no Causa Nossa, fiquei a conhecer outra qualidade de Ana Gomes: uma profetiza de calibre, rivalizando com o bruxo Alexandrino. A crer nas palavras premonitórias da deputada socialista, a lição de Espanha em breve se vai estender a Portugal. “É o que inevitavelmente vai acontecer à Direita no poder em Portugal, aliás bastante mais incompetente que a sua congénere espanhola. Talvez mais cedo do que muitos contavam. (...) Já sabíamos que a Direita que o Primeiro Ministro encabeça é de segunda, paroquial, subserviente, julgando engrandecer-se na prestação de vassalagens. Não tardará muito, os portugueses explicar-lhe-ão que só lhe resta mesmo a companhia que adulava e o caminho que ela levou: com o PP, Aznar e Rajoy, para o olho da rua!”
Já li opiniões que enaltecem a entrada em cena deste espécime raro de hiper-actividade e desbragamento verbal. Com o argumento de que ela é uma “pedrada no charco”, por não hesitar em afrontar o cinzentismo do politicamente correcto que domina a classe política, aplaude-se a frontalidade e o discernimento de Ana Gomes. Que ela é uma pedrada no charco, também estou de acordo. Mas pode-se ser uma pedrada no charco sem ser uma lufada de ar fresco. É aqui que Ana Gomes se enquadra. Ela é a pedrada num charco feito de uma lama fétida. Quando a pedra cai com fragor no charco, os salpicos enlameiam ainda mais o bolorento universo da política doméstica. Do alto da sua incontinência verbal, Ana Gomes tem sido uma ajuda preciosa ao triste espectáculo que a política nacional não para de nos oferecer.
Ainda bem que Ana Gomes é a número três da lista do PS para o Parlamento Europeu. Espero que, no rescaldo do sufrágio, os eleitores não sejam enganados pela engenharia partidária que domina a composição das listas de candidatos. Ou seja, que uma vez eleita para o Parlamento Europeu, a senhora vá pregar para outra freguesia e deixe de infestar com o seu mau hálito o ambiente político nacional.
Compreendo a exultação com a vitória dos camaradas socialistas espanhóis. Que se façam extrapolações para Portugal é um exercício mais duvidoso, próprio de quem anda obcecado com uma desdita que vem do passado. Não têm conta as vezes que ouvimos ou lemos Ana Gomes a bater sem piedade no seu ex-companheiro de lutas no MRPP, Durão Barroso. Não sei se há aqui algum conflito de consciência que reprime o íntimo da senhora. Nem tão pouco se esta perseguição impiedosa é resultado de arrufos sentimentais mal resolvidos que ainda vêm desse passado.
Quando pensava que a política nacional já tinha batido no fundo, arrostando um fardo enorme de descredibilização, afinal era ainda possível empurrá-la mais para o fundo. A coveira tem um nome – Ana Gomes.
Com o texto ontem publicado no Causa Nossa, fiquei a conhecer outra qualidade de Ana Gomes: uma profetiza de calibre, rivalizando com o bruxo Alexandrino. A crer nas palavras premonitórias da deputada socialista, a lição de Espanha em breve se vai estender a Portugal. “É o que inevitavelmente vai acontecer à Direita no poder em Portugal, aliás bastante mais incompetente que a sua congénere espanhola. Talvez mais cedo do que muitos contavam. (...) Já sabíamos que a Direita que o Primeiro Ministro encabeça é de segunda, paroquial, subserviente, julgando engrandecer-se na prestação de vassalagens. Não tardará muito, os portugueses explicar-lhe-ão que só lhe resta mesmo a companhia que adulava e o caminho que ela levou: com o PP, Aznar e Rajoy, para o olho da rua!”
Já li opiniões que enaltecem a entrada em cena deste espécime raro de hiper-actividade e desbragamento verbal. Com o argumento de que ela é uma “pedrada no charco”, por não hesitar em afrontar o cinzentismo do politicamente correcto que domina a classe política, aplaude-se a frontalidade e o discernimento de Ana Gomes. Que ela é uma pedrada no charco, também estou de acordo. Mas pode-se ser uma pedrada no charco sem ser uma lufada de ar fresco. É aqui que Ana Gomes se enquadra. Ela é a pedrada num charco feito de uma lama fétida. Quando a pedra cai com fragor no charco, os salpicos enlameiam ainda mais o bolorento universo da política doméstica. Do alto da sua incontinência verbal, Ana Gomes tem sido uma ajuda preciosa ao triste espectáculo que a política nacional não para de nos oferecer.
Ainda bem que Ana Gomes é a número três da lista do PS para o Parlamento Europeu. Espero que, no rescaldo do sufrágio, os eleitores não sejam enganados pela engenharia partidária que domina a composição das listas de candidatos. Ou seja, que uma vez eleita para o Parlamento Europeu, a senhora vá pregar para outra freguesia e deixe de infestar com o seu mau hálito o ambiente político nacional.
15.3.04
Ecos das eleições em Espanha
A vitória do PSOE não terá sido uma surpresa total, face aos acontecimentos das 48 horas antes das eleições. Os atentados de 11 de Março e a gestão desastrosa do governo espanhol terão enterrado as aspirações de uma vitória eleitoral do PP. Este caso é paradigmático para os politólogos, pelas consequências de uma estratégia de comunicação autista associada a uma ganância eleitoral desmedida. Foi o PP que deu um tiro no próprio pé. Eis como, por imperícia, um cenário risonho se pode transformar em poucas horas num verdadeiro pesadelo.
Mais do que uma vitória dos socialistas, ela aconteceu porque os populares capitularam perante a sua gestão desastrosa dos dias que se seguiram às bombas. Foi o PP que perdeu as eleições, num haraquiri de que o PSOE não estava à espera. O que acaba por ser cínico. Porque a estratégia de deliberadamente empurrar as culpas para a ETA teria como intenção arrepiar caminho a uma vitória esmagadora. O tiro saiu pela culatra, já que o tempo foi aziago para o sucesso desta estratégia. Os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade vertiginosa e o governo espanhol rapidamente passou de bestial à besta que teria que ser sacrificada no altar das urnas.
Este exemplo é também sintomático de como os eleitores fazem as suas escolhas com base na emoção e não na razão. Se é verdade que uma semana antes todas as sondagens atribuíam a vitória aos populares, e se é verdade que o líder do PSOE (Zapatero) sempre teve a sua popularidade pelas ruas da amargura, os resultados de ontem só se explicam como um veemente cartão vermelho ao PP. A vitória dos socialistas acaba por ser uma consequência colateral da censura eleitoral imposta ao PP.
O que me leva a questionar a genuinidade das escolhas feitas através do depósito do voto na urna, pelo menos de todos aqueles que votam em alguém não por sentirem afinidade com esse partido ou candidato, mas antes para varrer do poder os que lá se encontravam. É o império do voto negativo. Supõe-se que quando alguém vota sente uma identificação mínima com o candidato, o partido e o programa. Mas quantas vezes estes factores são relegados para segundo plano, porque os cidadãos vêm no voto um poderoso instrumento para afastar quem detém o poder?
Vota-se não por acreditar que quem recebe o “voto de confiança” tenha capacidade para construir algo de diferente. É apenas um meio de exibir o cansaço da governação, expelindo do poder as pessoas e partidos que até às eleições detiveram o poder. O “voto com os pés” (expressão utilizada pela ciência política) desvirtua a genuinidade das eleições. Em vez de se sublinhar a crença naqueles que vencem apenas emerge a sensação de que houve a intenção de punir os derrotados.
Para aqueles que estão esfusiantes com a vitória do PSOE, era bom que deixassem de aparecer como cultores de uma pretensa consciência mundial que sanciona as eleições onde a população foi inteligente e censura outros actos eleitorais onde os eleitores não revelaram tanta inteligência, apenas porque os resultados não foram favoráveis aos seus gostos. Dois exemplos bastam: quando Haider e os neo-nazis chegaram ao poder na Áustria, e quando Le Pen conseguiu disputar a segunda volta das presidenciais francesas. Em ambos os casos a “esquerda bem pensante” não se cansou de exibir o seu estado de choque, nem hesitou em desrespeitar a vontade popular de austríacos e franceses, como se pudesse sobrepor a sua “boa consciência” às decisões expressas nas urnas. Nisto estas esquerdas e os que agora exibem tristeza pela inesperada derrota do PP não se distinguem.
Mais do que uma vitória dos socialistas, ela aconteceu porque os populares capitularam perante a sua gestão desastrosa dos dias que se seguiram às bombas. Foi o PP que perdeu as eleições, num haraquiri de que o PSOE não estava à espera. O que acaba por ser cínico. Porque a estratégia de deliberadamente empurrar as culpas para a ETA teria como intenção arrepiar caminho a uma vitória esmagadora. O tiro saiu pela culatra, já que o tempo foi aziago para o sucesso desta estratégia. Os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade vertiginosa e o governo espanhol rapidamente passou de bestial à besta que teria que ser sacrificada no altar das urnas.
Este exemplo é também sintomático de como os eleitores fazem as suas escolhas com base na emoção e não na razão. Se é verdade que uma semana antes todas as sondagens atribuíam a vitória aos populares, e se é verdade que o líder do PSOE (Zapatero) sempre teve a sua popularidade pelas ruas da amargura, os resultados de ontem só se explicam como um veemente cartão vermelho ao PP. A vitória dos socialistas acaba por ser uma consequência colateral da censura eleitoral imposta ao PP.
O que me leva a questionar a genuinidade das escolhas feitas através do depósito do voto na urna, pelo menos de todos aqueles que votam em alguém não por sentirem afinidade com esse partido ou candidato, mas antes para varrer do poder os que lá se encontravam. É o império do voto negativo. Supõe-se que quando alguém vota sente uma identificação mínima com o candidato, o partido e o programa. Mas quantas vezes estes factores são relegados para segundo plano, porque os cidadãos vêm no voto um poderoso instrumento para afastar quem detém o poder?
Vota-se não por acreditar que quem recebe o “voto de confiança” tenha capacidade para construir algo de diferente. É apenas um meio de exibir o cansaço da governação, expelindo do poder as pessoas e partidos que até às eleições detiveram o poder. O “voto com os pés” (expressão utilizada pela ciência política) desvirtua a genuinidade das eleições. Em vez de se sublinhar a crença naqueles que vencem apenas emerge a sensação de que houve a intenção de punir os derrotados.
Para aqueles que estão esfusiantes com a vitória do PSOE, era bom que deixassem de aparecer como cultores de uma pretensa consciência mundial que sanciona as eleições onde a população foi inteligente e censura outros actos eleitorais onde os eleitores não revelaram tanta inteligência, apenas porque os resultados não foram favoráveis aos seus gostos. Dois exemplos bastam: quando Haider e os neo-nazis chegaram ao poder na Áustria, e quando Le Pen conseguiu disputar a segunda volta das presidenciais francesas. Em ambos os casos a “esquerda bem pensante” não se cansou de exibir o seu estado de choque, nem hesitou em desrespeitar a vontade popular de austríacos e franceses, como se pudesse sobrepor a sua “boa consciência” às decisões expressas nas urnas. Nisto estas esquerdas e os que agora exibem tristeza pela inesperada derrota do PP não se distinguem.
12.3.04
“Desvirtualizar”, pois
Numa pausa entre duas aulas, estava na sala de professores a passar o tempo, olhando para as notícias que iam aparecendo no computador situado à minha frente. Ao meu lado estavam dois colegas que atendiam um aluno. Não percebi se seria sobre um trabalho para uma disciplina ou sobre a tese de licenciatura desse aluno. A certa altura a minha colega disparou, com voz professoral, ritmada e monocórdica, que temia que o aluno estivesse a “desvirtualizar” o trabalho. Pensei com os meus botões: enganou-se, se calhar ela queria dizer desvirtuar, mas soltou-se uma sílaba a mais e saiu “desvirtualizar”. Afinal todos podemos ter destes lapsos: quantas vezes a língua se atropela no cérebro e a palavra não sai como nós a conhecemos?
Enganei-me. Não tardou nem um minuto para que a coleguinha tenha utilizado por mais duas vezes, em duas frases consecutivas, a palavra “desvirtualizar”. Pelo contexto do discurso, compreendi logo que o que ela queria dizer era desvirtuar. Ela exprimira a preocupação de que o aluno estivesse a levar o trabalho numa direcção que seria equivalente à falsificação dos seus propósitos originais. Em bom português, isso corresponde a desvirtuar – nunca a “desvirtualizar”.
Como tenho noção da minha falibilidade, decidi consultar um dicionário on-line, já que a ferramenta estava mesmo ali à frente. Confirmei que a palavra não existe. Como estava na presença de uma colega que trabalha numa área que é dada a distorcer palavras para apresentar conceitos inovadores, ainda duvidei se esta palavra não seria um neologismo. Na área em que a coleguinha se apresenta como uma especialista, a realidade virtual é cada vez mais uma ferramenta imprescindível para o trabalho. Suspeito que ela se deixou inebriar pela ascensão meteórica da realidade virtual e confundiu “desvirtuar” com “desvirtualizar”. Perdeu então a virtude do dom da palavra, com aquela sua pose de quem se acha emproada na figura de um vetusto catedrático (mesmo para quem é ainda uma pessoa de tenra idade em início de carreira académica), e resvalou para o pecadilho do pontapé na gramática.
Como me apeteceu, naquela altura, interromper a conversa da minha colega com o seu aluno e apresentar o resultado da pesquisa que tinha acabado de fazer no tal dicionário on-line: “a palavra inserida não foi encontrada”. Optei pela inacção, sabendo que a minha interrupção seria vista como um acto de humilhação infligida à professoral personagem.
Interroguei-me então sobre as barbaridades à língua portuguesa que esta coleguinha cometerá em sala de aula, ou em atendimento aos seus alunos, sem que na maioria dos casos eles se consigam aperceber da boutade. Sem surpresa: é o nível geral do conhecimento da língua em que tropeçamos no dia-a-dia. Com a desajuda de quem se deve prestar a uma função educativa, o nivelamento faz-se por baixo. É o achincalhamento total da língua portuguesa, com a conivência de educadores e a passividade abúlica dos alunos. Com exemplos destes, há que rever a ideia de que é apenas o nível os alunos que está pelas ruas da amargura.
Enganei-me. Não tardou nem um minuto para que a coleguinha tenha utilizado por mais duas vezes, em duas frases consecutivas, a palavra “desvirtualizar”. Pelo contexto do discurso, compreendi logo que o que ela queria dizer era desvirtuar. Ela exprimira a preocupação de que o aluno estivesse a levar o trabalho numa direcção que seria equivalente à falsificação dos seus propósitos originais. Em bom português, isso corresponde a desvirtuar – nunca a “desvirtualizar”.
Como tenho noção da minha falibilidade, decidi consultar um dicionário on-line, já que a ferramenta estava mesmo ali à frente. Confirmei que a palavra não existe. Como estava na presença de uma colega que trabalha numa área que é dada a distorcer palavras para apresentar conceitos inovadores, ainda duvidei se esta palavra não seria um neologismo. Na área em que a coleguinha se apresenta como uma especialista, a realidade virtual é cada vez mais uma ferramenta imprescindível para o trabalho. Suspeito que ela se deixou inebriar pela ascensão meteórica da realidade virtual e confundiu “desvirtuar” com “desvirtualizar”. Perdeu então a virtude do dom da palavra, com aquela sua pose de quem se acha emproada na figura de um vetusto catedrático (mesmo para quem é ainda uma pessoa de tenra idade em início de carreira académica), e resvalou para o pecadilho do pontapé na gramática.
Como me apeteceu, naquela altura, interromper a conversa da minha colega com o seu aluno e apresentar o resultado da pesquisa que tinha acabado de fazer no tal dicionário on-line: “a palavra inserida não foi encontrada”. Optei pela inacção, sabendo que a minha interrupção seria vista como um acto de humilhação infligida à professoral personagem.
Interroguei-me então sobre as barbaridades à língua portuguesa que esta coleguinha cometerá em sala de aula, ou em atendimento aos seus alunos, sem que na maioria dos casos eles se consigam aperceber da boutade. Sem surpresa: é o nível geral do conhecimento da língua em que tropeçamos no dia-a-dia. Com a desajuda de quem se deve prestar a uma função educativa, o nivelamento faz-se por baixo. É o achincalhamento total da língua portuguesa, com a conivência de educadores e a passividade abúlica dos alunos. Com exemplos destes, há que rever a ideia de que é apenas o nível os alunos que está pelas ruas da amargura.
11.3.04
A universidade e o processo de Bolonha
Os países membros da União Europeia (os actuais e os que vão aderir em 1 de Maio de 2004) assinaram a declaração de Bolonha que estabelece regras que uniformizam o ensino universitário. A entrada em vigor estava prevista para 2010, mas foi antecipada já para o ano lectivo de 2004/05.
O novo sistema estabelece três ciclos: um primeiro grau de três anos, correspondente à actual licenciatura; o segundo, de pós-graduação a que equivale actualmente o mestrado, de mais dois anos; e um terceiro, conducente a doutoramento, com mais dois anos. Aposta-se em aumentar a qualificação académica da população universitária europeia, para reforçar o ratio de doutorados por população. Com a nota adicional que, a ser cumprido o optimismo do processo de Bolonha, teremos cada vez mais doutorados antes de chegarem à casa dos trinta anos. Se uma pessoa nunca reprovar, nem se enganar nas escolhas durante o seu percurso universitário, pode obter o doutoramento com 24 ou 25 anos!
O processo de Bolinha também prevê novas metodologias de ensino. A opção passa por ensinar os alunos a aprender por eles mesmos, a encontrar ferramentas de trabalho e a saber utilizá-las. Já não é colocada a ênfase na transmissão de conhecimentos e saberes. Serão os alunos, fora da sala de aula, com as dicas fornecidas pelos professores, que estarão na senda do auto-conhecimento. Desresponsabilizam-se os professores, que terão que trabalhar cada vez menos na preparação das suas aulas. Em contrapartida, confere-se maior responsabilidade aos alunos, empossados na obrigação de encontrar o saber e de o conseguir decifrar.
Este processo comporta um hiato perigoso. A minha experiência pessoal (onze anos) permite-me testemunhar como, ano após ano, é menor a responsabilidade dos alunos. Não vejo como será possível incutir-lhes esta dose de responsabilidade necessária para os conduzir à auto-aprendizagem. A menos que se insista, na esteira das novas técnicas pedagógicas que escarnecem da avaliação de conhecimentos, que os alunos sejam submetidos a um sistema de avaliação deveras flexível. É a entronização do facilitismo, mais adubo para a mediocridade reinante.
Há um terceiro elemento do processo de Bolonha que me desagrada: a possibilidade de encurtar o trajecto universitário de alunos que compareçam na universidade senhores de uma “experiência profissional relevante” (ainda que não preencham os requisitos de escolaridade que dão acesso à universidade). Trata-se de uma inadmissível desigualdade de oportunidades, colocando os mais jovens numa posição de desfavorecimento perante os mais velhos. E desagrada-me imaginar os Armandos Varas deste país, com pouco mais do que a quarta classe, poderem entrar na universidade directamente para o terceiro ano e num só ano alcançarem o almejado “canudo”. Apenas porque têm “uma experiência profissional relevante”, sabe-se lá baseada em que critérios.
O processo de Bolonha tem uma filosofia igualitária, um esforço de democratização dos graus académicos. Pretende que mais pessoas tenham acesso a graus universitários, como se isso fosse a panaceia para a melhor qualificação da sociedade. Acredita-se que uma Europa com mais doutorados será uma Europa perfeita, mais feliz, com mais pessoas próximas das suas realizações profissionais e pessoais. Talvez se estejam a criar as condições para um cenário oposto. Para que tenhamos na Europa uma coisa parecida com o Brasil da década de noventa, com os magotes de licenciados em direito que não iam além de taxistas. Suspeito que o processo de Bolonha vai criar hordas de doutorados a quem só restam ocupações profissionais abaixo das suas qualificações, ou mesmo o desemprego.
Como as coisas se encaminham, sinto-me cada vez menos um académico.
O novo sistema estabelece três ciclos: um primeiro grau de três anos, correspondente à actual licenciatura; o segundo, de pós-graduação a que equivale actualmente o mestrado, de mais dois anos; e um terceiro, conducente a doutoramento, com mais dois anos. Aposta-se em aumentar a qualificação académica da população universitária europeia, para reforçar o ratio de doutorados por população. Com a nota adicional que, a ser cumprido o optimismo do processo de Bolonha, teremos cada vez mais doutorados antes de chegarem à casa dos trinta anos. Se uma pessoa nunca reprovar, nem se enganar nas escolhas durante o seu percurso universitário, pode obter o doutoramento com 24 ou 25 anos!
O processo de Bolinha também prevê novas metodologias de ensino. A opção passa por ensinar os alunos a aprender por eles mesmos, a encontrar ferramentas de trabalho e a saber utilizá-las. Já não é colocada a ênfase na transmissão de conhecimentos e saberes. Serão os alunos, fora da sala de aula, com as dicas fornecidas pelos professores, que estarão na senda do auto-conhecimento. Desresponsabilizam-se os professores, que terão que trabalhar cada vez menos na preparação das suas aulas. Em contrapartida, confere-se maior responsabilidade aos alunos, empossados na obrigação de encontrar o saber e de o conseguir decifrar.
Este processo comporta um hiato perigoso. A minha experiência pessoal (onze anos) permite-me testemunhar como, ano após ano, é menor a responsabilidade dos alunos. Não vejo como será possível incutir-lhes esta dose de responsabilidade necessária para os conduzir à auto-aprendizagem. A menos que se insista, na esteira das novas técnicas pedagógicas que escarnecem da avaliação de conhecimentos, que os alunos sejam submetidos a um sistema de avaliação deveras flexível. É a entronização do facilitismo, mais adubo para a mediocridade reinante.
Há um terceiro elemento do processo de Bolonha que me desagrada: a possibilidade de encurtar o trajecto universitário de alunos que compareçam na universidade senhores de uma “experiência profissional relevante” (ainda que não preencham os requisitos de escolaridade que dão acesso à universidade). Trata-se de uma inadmissível desigualdade de oportunidades, colocando os mais jovens numa posição de desfavorecimento perante os mais velhos. E desagrada-me imaginar os Armandos Varas deste país, com pouco mais do que a quarta classe, poderem entrar na universidade directamente para o terceiro ano e num só ano alcançarem o almejado “canudo”. Apenas porque têm “uma experiência profissional relevante”, sabe-se lá baseada em que critérios.
O processo de Bolonha tem uma filosofia igualitária, um esforço de democratização dos graus académicos. Pretende que mais pessoas tenham acesso a graus universitários, como se isso fosse a panaceia para a melhor qualificação da sociedade. Acredita-se que uma Europa com mais doutorados será uma Europa perfeita, mais feliz, com mais pessoas próximas das suas realizações profissionais e pessoais. Talvez se estejam a criar as condições para um cenário oposto. Para que tenhamos na Europa uma coisa parecida com o Brasil da década de noventa, com os magotes de licenciados em direito que não iam além de taxistas. Suspeito que o processo de Bolonha vai criar hordas de doutorados a quem só restam ocupações profissionais abaixo das suas qualificações, ou mesmo o desemprego.
Como as coisas se encaminham, sinto-me cada vez menos um académico.
10.3.04
As pérolas de Sousa Franco
Acordar bem cedo pela manhã e ligar o rádio pode encerrar surpresas desagradáveis. Daquelas que nos fazem despertar de um sono retemperador e logo nos empurram para a selva que nos rodeia. São as notícias que entram pelos ouvidos e causam mossa no cérebro. Hoje a poluição sonora veio da voz esganiçada e das ideias disparatadas de Sousa Franco, a personagem que os socialistas escolheram para liderar a lista para o Parlamento Europeu. Sousa Franco questionou o europeísmo do PSD, argumentando que está refém das posições do parceiro da coligação. Para Sousa Franco, o PSD “foi colonizado pelas posições anti-Europa do seu parceiro de coligação, CDS-PP”.
Escutar as palavras de Sousa Franco é sentir que ele se embrulha numa deliciosa ironia. Diria mesmo que o antigo ministro das finanças de Guterres dá mostras de um cinismo inigualável. Como pode ele aparecer em público a duvidar do compromisso europeísta de outros partidos quando foi ele o grande mentor do descalabro das finanças públicas no passado recente? Como foi abundantemente demonstrado ainda esta semana (por exemplo, no Diário Económico e até por pessoas que passaram por governos socialistas), sabe-se que foi Sousa Franco que desaproveitou uma oportunidade de ouro para encarreirar as finanças públicas no bom sentido.
Na lógica da fábula da cigarra e da formiga, Sousa Franco foi a cigarra gastadora e irresponsável. Desbaratou um clima de prosperidade económica para situar o défice orçamental dentro do limite estipulado pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Em tempo de vacas gordas, o momento era o ideal para poupar. Para que depois, quando a tormenta chegasse, fosse possível aliviar o cinto sem que o défice ultrapassasse os 3% do PIB. Sousa Franco, enquanto ministro das finanças, insistiu numa política despesista contra o ciclo. O resultado foi o famoso défice de 4,1%.
Se há alguém que não devia vir a público dar lições de europeísmo, essa pessoa é Sousa Franco. Porque, enquanto ministro das finanças, lançou as sementes para o deslizamento orçamental que quase hipotecava a credibilidade do país perante os seus parceiros da União Europeia. Esse ministro das finanças não soube (ou não quis) gerir as finanças públicas de acordo com os compromissos que o país tinha assumido no quadro da União Europeia. Sousa Franco sabia bem o que era o PEC e quais as suas consequências. Na altura nunca se insurgiu contra o PEC. Só mais tarde, indo à boleia da irresponsabilidade política dos governos alemão e francês, Sousa Franco e os socialistas apareceram em público a verberar o pacto.
Que autoridade moral tem este senhor para dizer aos portugueses o que é ser bom europeísta? Se foi ele o carrasco das finanças públicas portuguesas, numa demonstração de insensibilidade para com as obrigações do PEC – afinal um compromisso que resulta da nossa participação na União Europeia. Não há dúvida que o PS que temos é um repositório de sucessivas desorientações. Acto após acto, a gente que domina o PS insiste em trazer a arma apontada para o próprio pé, com o coldre destravado!
Confesso que este PS me enche as medidas – pela irresponsabilidade, pelo descrédito, pelo autismo, pela ofensa à memória (curta, para sua sorte) da população portuguesa. Esgota-se a paciência por verificar a condescendência com que o PS é tratado na comunicação social. Como se fosse um elemento fundamental do genoma democrático do regime. Como se não fosse possível equacionar um cenário (idílico) em que o PS fosse varrido do mapa. Afinal, o mesmo não aconteceu em Itália, sem prejuízo para a qualidade da democracia e da governação?
Escutar as palavras de Sousa Franco é sentir que ele se embrulha numa deliciosa ironia. Diria mesmo que o antigo ministro das finanças de Guterres dá mostras de um cinismo inigualável. Como pode ele aparecer em público a duvidar do compromisso europeísta de outros partidos quando foi ele o grande mentor do descalabro das finanças públicas no passado recente? Como foi abundantemente demonstrado ainda esta semana (por exemplo, no Diário Económico e até por pessoas que passaram por governos socialistas), sabe-se que foi Sousa Franco que desaproveitou uma oportunidade de ouro para encarreirar as finanças públicas no bom sentido.
Na lógica da fábula da cigarra e da formiga, Sousa Franco foi a cigarra gastadora e irresponsável. Desbaratou um clima de prosperidade económica para situar o défice orçamental dentro do limite estipulado pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Em tempo de vacas gordas, o momento era o ideal para poupar. Para que depois, quando a tormenta chegasse, fosse possível aliviar o cinto sem que o défice ultrapassasse os 3% do PIB. Sousa Franco, enquanto ministro das finanças, insistiu numa política despesista contra o ciclo. O resultado foi o famoso défice de 4,1%.
Se há alguém que não devia vir a público dar lições de europeísmo, essa pessoa é Sousa Franco. Porque, enquanto ministro das finanças, lançou as sementes para o deslizamento orçamental que quase hipotecava a credibilidade do país perante os seus parceiros da União Europeia. Esse ministro das finanças não soube (ou não quis) gerir as finanças públicas de acordo com os compromissos que o país tinha assumido no quadro da União Europeia. Sousa Franco sabia bem o que era o PEC e quais as suas consequências. Na altura nunca se insurgiu contra o PEC. Só mais tarde, indo à boleia da irresponsabilidade política dos governos alemão e francês, Sousa Franco e os socialistas apareceram em público a verberar o pacto.
Que autoridade moral tem este senhor para dizer aos portugueses o que é ser bom europeísta? Se foi ele o carrasco das finanças públicas portuguesas, numa demonstração de insensibilidade para com as obrigações do PEC – afinal um compromisso que resulta da nossa participação na União Europeia. Não há dúvida que o PS que temos é um repositório de sucessivas desorientações. Acto após acto, a gente que domina o PS insiste em trazer a arma apontada para o próprio pé, com o coldre destravado!
Confesso que este PS me enche as medidas – pela irresponsabilidade, pelo descrédito, pelo autismo, pela ofensa à memória (curta, para sua sorte) da população portuguesa. Esgota-se a paciência por verificar a condescendência com que o PS é tratado na comunicação social. Como se fosse um elemento fundamental do genoma democrático do regime. Como se não fosse possível equacionar um cenário (idílico) em que o PS fosse varrido do mapa. Afinal, o mesmo não aconteceu em Itália, sem prejuízo para a qualidade da democracia e da governação?
9.3.04
Aniversários: a miragem do tempo
Quando o calendário dobra mais uma folha do aniversário, há a tendência para fazer balanços de vida e projectos de futuro. Prometemos reincidir naquilo que julgamos que ser exemplar e mudar o que menos gostamos. Esforçamo-nos, neste exercício de introspecção, por alterar aqueles traços do comportamento que mais nos desgostam. Os aniversários sucedem-se e tantas vezes reiteramos promessas íntimas de mudança. Mas quantas vezes a introspecção não vai além do dia de aniversário? Porque no dia seguinte tudo volta ao curso normal da vida. É um instante fugaz, não sei se lucidez ou desesperança por ser diferente do que sou, por ansiar atingir algo que não sou e que no íntimo gostaria de alcançar.
À memória vêm os anos da adolescência. Um tempo que nunca mais passava, afogueado pela ansiedade de chegar aos dezoito anos. Um acto contido de rebeldia, na pressa de alcançar a maioridade com a ilusão de que tudo então seria diferente. Como se o direito ao voto trouxesse consigo, num passo de gigante, uma súbita maturidade. Esses anos nunca mais passavam, até ter atingido dezoito. Nesse tempo o tempo passava lento, como se o objectivo da maioridade, que tinha traçado como uma meta grandiosa, nunca mais chegasse até mim.
Passados outros dezoito anos desde essa data, custa-me verificar como o tempo andou tão depressa. Quando olho para trás sinto que o tempo não foi igual até aos dezoito e nos dezoito anos que se seguiram. Parece-me que o relógio andou descompassado, como se nos primeiros dezoito um minuto tivesse 120 segundos e nos dezoito anos seguintes passasse a ter apenas 30 segundos.
É nestas ocasiões que sentimos como o tempo passa com uma vertigem que não conseguimos detectar no dia a dia. São os instantes que se sucedem e que julgamos não serem momentos perdidos para o álbum da vida. Sinto então que o tempo passa pela vida como uma miragem. O tempo futuro é um buraco negro que nos reserva surpresas, boas e más. O tempo que passou já não pode ser reconstruído. Nem resta verter lágrimas pelo tempo perdido nem tão pouco arrastar a memória pelos momentos bons que o passado nos reservou. Pura e simplesmente, o passado está enterrado.
E mesmo assim não posso deixar de sentir o desconforto do tempo que passa sem que o possa agarrar, como um vento agreste que se escapa entre os dedos que se esforçam por o capturar. Às vezes gostava de ser o senhor do tempo, mas não para imortalizar momentos saborosos que depois se perdem com a memória. Ainda que se teime em ser nostálgico, em saborear esses momentos passados que tantas alegrias trouxeram, a repetição da memória desgasta a beleza desses momentos. Perdem significado com a história, perdem-se nas cinzas do passado.
É por isso que os “balanços de uma vida” são exercícios inúteis. Muita gente contestará esta asserção, alegando que aprendemos com o nosso passado. Não é isso que interessa. Porque o passado é irrepetível – a menos que o forjemos propositadamente e descarrilemos para situações passadas que representam auto-flagelações. Capturar o tempo que já passou é uma tarefa impossível. Tentar aproveitar o tempo que ainda vai demorar-se na nossa vida é o verdadeiro desafio com que importa lidar. O contrário é viver agarrado ao tempo passado, como se ele fosse nutriente para aquecer uma alma incendiada pela desconfortável sensação de que o tempo tem uma voracidade que consome a própria vida, tão frágil e temporária.
O tempo refracta-se no espelho, mas o espelho que está à nossa frente esconde, atrás de si, o verdadeiro tempo que nos interessa aproveitar. O tempo futuro, o exame incessante da felicidade.
À memória vêm os anos da adolescência. Um tempo que nunca mais passava, afogueado pela ansiedade de chegar aos dezoito anos. Um acto contido de rebeldia, na pressa de alcançar a maioridade com a ilusão de que tudo então seria diferente. Como se o direito ao voto trouxesse consigo, num passo de gigante, uma súbita maturidade. Esses anos nunca mais passavam, até ter atingido dezoito. Nesse tempo o tempo passava lento, como se o objectivo da maioridade, que tinha traçado como uma meta grandiosa, nunca mais chegasse até mim.
Passados outros dezoito anos desde essa data, custa-me verificar como o tempo andou tão depressa. Quando olho para trás sinto que o tempo não foi igual até aos dezoito e nos dezoito anos que se seguiram. Parece-me que o relógio andou descompassado, como se nos primeiros dezoito um minuto tivesse 120 segundos e nos dezoito anos seguintes passasse a ter apenas 30 segundos.
É nestas ocasiões que sentimos como o tempo passa com uma vertigem que não conseguimos detectar no dia a dia. São os instantes que se sucedem e que julgamos não serem momentos perdidos para o álbum da vida. Sinto então que o tempo passa pela vida como uma miragem. O tempo futuro é um buraco negro que nos reserva surpresas, boas e más. O tempo que passou já não pode ser reconstruído. Nem resta verter lágrimas pelo tempo perdido nem tão pouco arrastar a memória pelos momentos bons que o passado nos reservou. Pura e simplesmente, o passado está enterrado.
E mesmo assim não posso deixar de sentir o desconforto do tempo que passa sem que o possa agarrar, como um vento agreste que se escapa entre os dedos que se esforçam por o capturar. Às vezes gostava de ser o senhor do tempo, mas não para imortalizar momentos saborosos que depois se perdem com a memória. Ainda que se teime em ser nostálgico, em saborear esses momentos passados que tantas alegrias trouxeram, a repetição da memória desgasta a beleza desses momentos. Perdem significado com a história, perdem-se nas cinzas do passado.
É por isso que os “balanços de uma vida” são exercícios inúteis. Muita gente contestará esta asserção, alegando que aprendemos com o nosso passado. Não é isso que interessa. Porque o passado é irrepetível – a menos que o forjemos propositadamente e descarrilemos para situações passadas que representam auto-flagelações. Capturar o tempo que já passou é uma tarefa impossível. Tentar aproveitar o tempo que ainda vai demorar-se na nossa vida é o verdadeiro desafio com que importa lidar. O contrário é viver agarrado ao tempo passado, como se ele fosse nutriente para aquecer uma alma incendiada pela desconfortável sensação de que o tempo tem uma voracidade que consome a própria vida, tão frágil e temporária.
O tempo refracta-se no espelho, mas o espelho que está à nossa frente esconde, atrás de si, o verdadeiro tempo que nos interessa aproveitar. O tempo futuro, o exame incessante da felicidade.
8.3.04
Dia internacional da mulher
Sinto-me dividido ao escrever sobre o dia internacional da mulher. Parte de mim empurra-me para a elegia dessa criatura maravilhosa que preenche tanto tempo da vida de cada homem. Outra parte leva-me a suspeitar da ênfase que se coloca nos festejos da efeméride, uma entre tantas manifestações de sexismo barato que coloca a mulher no pedestal e desvaloriza o sexo masculino. Como se fosse um prolongado acerto de contas com o passado, como se essa infamante coisa chamada “discriminação positiva” fosse um bem elogiável.
A minha metade de complacência pela comemoração encontra justificação nas necessárias homenagens que temos que prestar à mulher. À mulher-mãe que nos pôs no mundo e tanto deu de si para formar o que somos; à mulher que amamos, responsável por sensações singulares que edificam o nosso ser; à mulher amiga, sempre um ombro consolador com a sua particular sensibilidade para escutar coisas que o ombro masculino amigo não tem capacidade de entender. A toda e qualquer mulher, sem descair para elegias piegas que se confundem com complexos de Édipo mal resolvidos. Como o daqueles escritores que não vacilam em elevar a mulher a uma condição suprema e intocável, que não desdenhariam transformar o mundo numa sociedade definitivamente matriarcal.
Esses escritores que sublimam, e bem, a especial sensibilidade feminina. Aquela força indomável que se esconde por detrás de uma máscara de fragilidade que se rompe naqueles momentos em que a força coriácea mais necessária é. Esses mesmos escritores que insistem em fazer da mulher um deus com pés de barro, como se a natureza feminina fosse tão diferente do sangue e da carne que compõem o sexo masculino.
Intriga-me esta valorização excessiva da mulher, que tem correspondência numa atitude oposta de flagelar o papel do sexo masculino – esse hediondo opressor, fautor de todos os males que afligem o mundo. Vejo estes cantores da superioridade feminina como alguém que não conseguiu resolver conflitos interiores. Como se quisessem ser mulheres mas não consigam libertar-se da asfixiante marca da masculinidade que transportam consigo.
A outra parte de mim não consegue compreender a necessidade de vincar a toda a hora uma igualdade forçada de sexos que é responsável por tantas situações de desigualdade que castigam o sexo masculino. Isto soa-me a uma vingança com o passado em que os homens, por sua culpa, devotaram um papel secundário às mulheres e nunca hesitaram em espezinhar os direitos mais básicos delas enquanto seres humanos. Ignorar esta realidade é de um autismo atroz que, creio, nenhum homem consciente se atreverá a fazer.
Não é com erros iguais aos do passado que se constrói um futuro isento de mácula. Não é com a tenebrosa discriminação positiva que se eleva a mulher a um papel de igualdade forçada com o homem. Como se tudo tivesse que respeitar quotas assépticas, em que mulheres e homens repartam por igual cargos na administração pública, na política, nas direcções de empresas, etc. Caminhar neste sentido é negar o papel do mérito e nivelar por baixo a qualificação da sociedade.
Numa era em que os dias internacionais de tudo-e-de-mais-alguma-coisa acabam por retirar sentido ao que se pretende comemorar, festejar o dia internacional da mulher apenas relembra o passado obscuro. Uma cruz que a humanidade tem que carregar para todo o sempre. Como se a humanidade não aprenda com os erros do passado. Insistir nestas comemorações – que, ano após ano, se vão esvaziando de conteúdo – é o caminho mais insensato para fazer da mulher aquilo que os movimentos feministas não querem que ela seja – o sexo menor.
A minha metade de complacência pela comemoração encontra justificação nas necessárias homenagens que temos que prestar à mulher. À mulher-mãe que nos pôs no mundo e tanto deu de si para formar o que somos; à mulher que amamos, responsável por sensações singulares que edificam o nosso ser; à mulher amiga, sempre um ombro consolador com a sua particular sensibilidade para escutar coisas que o ombro masculino amigo não tem capacidade de entender. A toda e qualquer mulher, sem descair para elegias piegas que se confundem com complexos de Édipo mal resolvidos. Como o daqueles escritores que não vacilam em elevar a mulher a uma condição suprema e intocável, que não desdenhariam transformar o mundo numa sociedade definitivamente matriarcal.
Esses escritores que sublimam, e bem, a especial sensibilidade feminina. Aquela força indomável que se esconde por detrás de uma máscara de fragilidade que se rompe naqueles momentos em que a força coriácea mais necessária é. Esses mesmos escritores que insistem em fazer da mulher um deus com pés de barro, como se a natureza feminina fosse tão diferente do sangue e da carne que compõem o sexo masculino.
Intriga-me esta valorização excessiva da mulher, que tem correspondência numa atitude oposta de flagelar o papel do sexo masculino – esse hediondo opressor, fautor de todos os males que afligem o mundo. Vejo estes cantores da superioridade feminina como alguém que não conseguiu resolver conflitos interiores. Como se quisessem ser mulheres mas não consigam libertar-se da asfixiante marca da masculinidade que transportam consigo.
A outra parte de mim não consegue compreender a necessidade de vincar a toda a hora uma igualdade forçada de sexos que é responsável por tantas situações de desigualdade que castigam o sexo masculino. Isto soa-me a uma vingança com o passado em que os homens, por sua culpa, devotaram um papel secundário às mulheres e nunca hesitaram em espezinhar os direitos mais básicos delas enquanto seres humanos. Ignorar esta realidade é de um autismo atroz que, creio, nenhum homem consciente se atreverá a fazer.
Não é com erros iguais aos do passado que se constrói um futuro isento de mácula. Não é com a tenebrosa discriminação positiva que se eleva a mulher a um papel de igualdade forçada com o homem. Como se tudo tivesse que respeitar quotas assépticas, em que mulheres e homens repartam por igual cargos na administração pública, na política, nas direcções de empresas, etc. Caminhar neste sentido é negar o papel do mérito e nivelar por baixo a qualificação da sociedade.
Numa era em que os dias internacionais de tudo-e-de-mais-alguma-coisa acabam por retirar sentido ao que se pretende comemorar, festejar o dia internacional da mulher apenas relembra o passado obscuro. Uma cruz que a humanidade tem que carregar para todo o sempre. Como se a humanidade não aprenda com os erros do passado. Insistir nestas comemorações – que, ano após ano, se vão esvaziando de conteúdo – é o caminho mais insensato para fazer da mulher aquilo que os movimentos feministas não querem que ela seja – o sexo menor.
5.3.04
21 gramas
O filme é perturbante e, ao início, confuso. Esta confusão explica-se pela técnica narrativa escolhida pelo realizador, Alejandro González Iñárritu. Ao fim de alguns minutos entende-se que o filme se desenrola em quatro momentos temporais diferenciados. É uma sucessão vertiginosa de momentos, em que o filme salta dos vários passados para o presente e regressa a momentos intermédios para voltar ao presente, com novas passagens pelos diferentes passados. Compreende-se esta alternância temporal pelos diferentes estados de alma e sobretudo físicos das personagens.
A personagem desempenhada por Sean Penn é um professor de matemática, na casa dos quarenta anos, que padece de uma grave doença de coração e necessita de um transplante. Espera com sofrimento em sua casa, preso a uma garrafa de oxigénio que lhe permite ultrapassar as dificuldades respiratórias. Eis senão quando a sua vida se cruza com a de outra personagem que se ia sucedendo em fases distintas do filme, até então sem qualquer ligação. A do marido daquela que virá a ser a sua companheira dois anos mais tarde. Este homem e as suas duas pequenas filhas são atropelados pela terceira personagem central do filme: um ex-condenado por vários pequenos crimes, que encontrou na fé cristã a regeneração interior que lhe permitiu reerguer a sua vida, reconstruir uma família. Pai e filhas morrem em consequência do acidente.
Como o primeiro ainda chegou com vida ao hospital, mas sem esperança de fugir a uma vida vegetativa, põe-se a questão de doar o seu coração. É aqui que as vidas das três personagens se entrecruzam definitivamente. Porque quem decide anuir na doação do coração é a mulher que acaba de perder o marido e as duas filhas. Mais tarde, já recuperado da cirurgia que lhe pôs um coração novo, este homem sente um chamamento interior para descobrir quem lhe doou o coração. É aqui que entra em contacto com a viúva e se apaixona por ela. É também aqui que a mulher desperta do entorpecimento em que viveu mergulhada durante meses e anseia por vingança, procurando matar o homem que ceifou a vida das filhas e do marido.
Imersos na cumplicidade do amor, os dois lançam-se em busca do homem que entretanto cumpriu dois anos de cadeia e renegou a sua família e a fé cristã, sentindo-se abandonado por um deus que ele serviu durante anos de forma tão dedicada. É num hotel de terceira categoria, situado à beira da estrada, que o encontro se dá. O homem, já novamente em sofrimento por o seu organismo ter rejeitado o coração que lhe foi transplantado, arma uma cilada ao assassino involuntário mas poupa-lhe a vida. Horas mais tarde, é este que arromba a porta do quarto onde o casal se encontrava e se oferece para sacrificar a sua vida. É ele que pega na arma e a coloca sob pressão junto à sua veia jugular, empurrando a mão do outro homem prestes a sucumbir à asfixia da doença. A mulher, cega pela sede de vingança, desata a bater violentamente com um candeeiro na cabeça de quem lhe roubou a vida das pessoas tão queridas. Eis senão quando o outro homem, jazendo em sofrimento, dispara um tiro em si mesmo.
As cenas finais são as de uma mulher que é informada que está grávida do homem que está na sala de operações. E de um homem que conseguiu ultrapassar os fantasmas do atropelamento e regressa a casa, para junto da sua família. A terceira personagem divaga, nos momentos finais da sua vida. Desta vez uma divagação matemática sobre a morte. Anuncia que no exacto momento em que o ser humano parte da vida perde vinte e um gramas. Vinte e um gramas. Será o peso da alma que se esvai no momento em que a vida se despede?
Apaga-se o homem que tinha a vida emprestada desde que recebeu um coração de outrem. Com a sua morte termina o filme. Deixa a sua marca na barriga da mulher. Que se sente vingada da morte do anterior marido e das duas filhas, ao saber que no seu ventre está um bebé que também é património de parte daquela vida familiar que foi tirada no fatal atropelamento. O homem que a ajudou a conceber aquele filho transportava o coração de quem gerou as duas meninas cuja vida foi roubada pelo jipe do fanático religioso. Era um ciclo que se completava. Perdida a vida de quem tinha pedido um coração emprestado, mas prolongada a sua existência numa vida que estava a ser gerada na gravidez, findava a sede de vingança desta mulher e o carrasco podia regressar, finalmente apaziguado, à sua vida normal.
A personagem desempenhada por Sean Penn é um professor de matemática, na casa dos quarenta anos, que padece de uma grave doença de coração e necessita de um transplante. Espera com sofrimento em sua casa, preso a uma garrafa de oxigénio que lhe permite ultrapassar as dificuldades respiratórias. Eis senão quando a sua vida se cruza com a de outra personagem que se ia sucedendo em fases distintas do filme, até então sem qualquer ligação. A do marido daquela que virá a ser a sua companheira dois anos mais tarde. Este homem e as suas duas pequenas filhas são atropelados pela terceira personagem central do filme: um ex-condenado por vários pequenos crimes, que encontrou na fé cristã a regeneração interior que lhe permitiu reerguer a sua vida, reconstruir uma família. Pai e filhas morrem em consequência do acidente.
Como o primeiro ainda chegou com vida ao hospital, mas sem esperança de fugir a uma vida vegetativa, põe-se a questão de doar o seu coração. É aqui que as vidas das três personagens se entrecruzam definitivamente. Porque quem decide anuir na doação do coração é a mulher que acaba de perder o marido e as duas filhas. Mais tarde, já recuperado da cirurgia que lhe pôs um coração novo, este homem sente um chamamento interior para descobrir quem lhe doou o coração. É aqui que entra em contacto com a viúva e se apaixona por ela. É também aqui que a mulher desperta do entorpecimento em que viveu mergulhada durante meses e anseia por vingança, procurando matar o homem que ceifou a vida das filhas e do marido.
Imersos na cumplicidade do amor, os dois lançam-se em busca do homem que entretanto cumpriu dois anos de cadeia e renegou a sua família e a fé cristã, sentindo-se abandonado por um deus que ele serviu durante anos de forma tão dedicada. É num hotel de terceira categoria, situado à beira da estrada, que o encontro se dá. O homem, já novamente em sofrimento por o seu organismo ter rejeitado o coração que lhe foi transplantado, arma uma cilada ao assassino involuntário mas poupa-lhe a vida. Horas mais tarde, é este que arromba a porta do quarto onde o casal se encontrava e se oferece para sacrificar a sua vida. É ele que pega na arma e a coloca sob pressão junto à sua veia jugular, empurrando a mão do outro homem prestes a sucumbir à asfixia da doença. A mulher, cega pela sede de vingança, desata a bater violentamente com um candeeiro na cabeça de quem lhe roubou a vida das pessoas tão queridas. Eis senão quando o outro homem, jazendo em sofrimento, dispara um tiro em si mesmo.
As cenas finais são as de uma mulher que é informada que está grávida do homem que está na sala de operações. E de um homem que conseguiu ultrapassar os fantasmas do atropelamento e regressa a casa, para junto da sua família. A terceira personagem divaga, nos momentos finais da sua vida. Desta vez uma divagação matemática sobre a morte. Anuncia que no exacto momento em que o ser humano parte da vida perde vinte e um gramas. Vinte e um gramas. Será o peso da alma que se esvai no momento em que a vida se despede?
Apaga-se o homem que tinha a vida emprestada desde que recebeu um coração de outrem. Com a sua morte termina o filme. Deixa a sua marca na barriga da mulher. Que se sente vingada da morte do anterior marido e das duas filhas, ao saber que no seu ventre está um bebé que também é património de parte daquela vida familiar que foi tirada no fatal atropelamento. O homem que a ajudou a conceber aquele filho transportava o coração de quem gerou as duas meninas cuja vida foi roubada pelo jipe do fanático religioso. Era um ciclo que se completava. Perdida a vida de quem tinha pedido um coração emprestado, mas prolongada a sua existência numa vida que estava a ser gerada na gravidez, findava a sede de vingança desta mulher e o carrasco podia regressar, finalmente apaziguado, à sua vida normal.
4.3.04
Preservativos subversivos no Zimbabué
Fiquei atónito com uma notícia que ontem escutei na TSF. O governo do tiranete Robert Mugabe lançou um aviso à população. Neste alerta era difundida a informação de que andavam a circular no mercado preservativos com mensagens escondidas apelando à revolta contra o regime ditatorial do presidente Mugabe. A origem destes preservativos seria, ao que consta, os Estados Unidos.
Como é possível alguém se deixar invadir por tanta paranóia e ver em todo o lado a suspeita da conspiração que pode derrubá-lo da cadeira do poder? Nem sei se hei-de catalogar este episódio como uma manifestação de desesperada desinspiração ou, pelo contrário, como o exemplo acabado de uma imaginação delirante que tantos publicitários gostariam de ter com mais frequência. Não é qualquer um que acorda depois de uma noite de sono tormentoso – com pesadelos das sevícias que tem praticado contra as liberdades individuais – e arranja energia para maquinar a delirante suspeita de insubordinação veiculada através de preservativos.
Este acontecimento vem provar como Mugabe está esclerosado. Caiu em desgraça devido aos constantes atropelos às liberdades individuais. Aniquilou a liberdade de expressão e o direito à dissidência de opinião. É useiro e vezeiro em subtrair a propriedade privada de fazendeiros brancos para pagar favores aos militares que estendem a mão desde o tempo da descolonização. Por tudo isto o execrável ditador tem os dias contados. Está ostracizado na Commonwealth, tal é o descrédito que os seus parceiros lhe votam pelos desmandos que não se cansa de cometer.
Um dia ainda acordamos com notícias mais mirabolantes, dando corpo aos fantasmas imaginários que pontuam o íntimo desta atroz personagem. Quem sabe se as próximas ameaças ao seu consulado despótico não virão de esquemas tão sofisticados como mensagens indeléveis que penetram no subconsciente dos cidadãos do Zimbabué através dos rótulos de garrafas de Coca-Cola. Ou se não será o vento que sopra do Atlântico a sussurrar aos ouvidos dos súbditos de Mugabe para se sublevarem contra ele. Não será mesmo de estranhar que as próprias nuvens que anunciam as chuvas das monções tragam hologramas de Bush e de Blair, com mensagens cifradas apelando à revolta. E por aí fora, tudo dependendo da imaginação que Mugabe e os seus lacaios consigam ter para varrer os fantasmas que não os deixam dormir um sono sossegado.
Volto à notícia que me deixou boquiaberto. E ponho-me a pensar como os sectores feministas têm nela terreno fértil para mais uma investida carregada de sexismo às avessas. Elas podem-se indignar contra a estratégia gizada por Mugabe, acusando-o de discriminação. Melhor dizendo: a comprovar-se que as desconfianças macacóides do tirano a prazo vão para além de simples alucinações esquizofrénicas, as feministas podiam verter o seu ódio contra Bush.
A dar-se como provado que nos preservativos se encerram as tais mensagens subversivas, elas terão todo o direito ao protesto e à indignação. Porque motivo, poderão elas perguntar, apenas os homens zimbabueanos são os destinatários desta mensagem de mudança? Porque ficam as mulheres de fora (assumindo que não são elas que usam preservativos...)? O potencial revolucionário resume-se ao sexo masculino? Ou será que Mugabe vê no sexo feminino uma base sólida de apoio ao seu regime, e por isso só está preocupado com o potencial de ataque vindo do sexo masculino – justamente o que manipula os preservativos?
Como é possível alguém se deixar invadir por tanta paranóia e ver em todo o lado a suspeita da conspiração que pode derrubá-lo da cadeira do poder? Nem sei se hei-de catalogar este episódio como uma manifestação de desesperada desinspiração ou, pelo contrário, como o exemplo acabado de uma imaginação delirante que tantos publicitários gostariam de ter com mais frequência. Não é qualquer um que acorda depois de uma noite de sono tormentoso – com pesadelos das sevícias que tem praticado contra as liberdades individuais – e arranja energia para maquinar a delirante suspeita de insubordinação veiculada através de preservativos.
Este acontecimento vem provar como Mugabe está esclerosado. Caiu em desgraça devido aos constantes atropelos às liberdades individuais. Aniquilou a liberdade de expressão e o direito à dissidência de opinião. É useiro e vezeiro em subtrair a propriedade privada de fazendeiros brancos para pagar favores aos militares que estendem a mão desde o tempo da descolonização. Por tudo isto o execrável ditador tem os dias contados. Está ostracizado na Commonwealth, tal é o descrédito que os seus parceiros lhe votam pelos desmandos que não se cansa de cometer.
Um dia ainda acordamos com notícias mais mirabolantes, dando corpo aos fantasmas imaginários que pontuam o íntimo desta atroz personagem. Quem sabe se as próximas ameaças ao seu consulado despótico não virão de esquemas tão sofisticados como mensagens indeléveis que penetram no subconsciente dos cidadãos do Zimbabué através dos rótulos de garrafas de Coca-Cola. Ou se não será o vento que sopra do Atlântico a sussurrar aos ouvidos dos súbditos de Mugabe para se sublevarem contra ele. Não será mesmo de estranhar que as próprias nuvens que anunciam as chuvas das monções tragam hologramas de Bush e de Blair, com mensagens cifradas apelando à revolta. E por aí fora, tudo dependendo da imaginação que Mugabe e os seus lacaios consigam ter para varrer os fantasmas que não os deixam dormir um sono sossegado.
Volto à notícia que me deixou boquiaberto. E ponho-me a pensar como os sectores feministas têm nela terreno fértil para mais uma investida carregada de sexismo às avessas. Elas podem-se indignar contra a estratégia gizada por Mugabe, acusando-o de discriminação. Melhor dizendo: a comprovar-se que as desconfianças macacóides do tirano a prazo vão para além de simples alucinações esquizofrénicas, as feministas podiam verter o seu ódio contra Bush.
A dar-se como provado que nos preservativos se encerram as tais mensagens subversivas, elas terão todo o direito ao protesto e à indignação. Porque motivo, poderão elas perguntar, apenas os homens zimbabueanos são os destinatários desta mensagem de mudança? Porque ficam as mulheres de fora (assumindo que não são elas que usam preservativos...)? O potencial revolucionário resume-se ao sexo masculino? Ou será que Mugabe vê no sexo feminino uma base sólida de apoio ao seu regime, e por isso só está preocupado com o potencial de ataque vindo do sexo masculino – justamente o que manipula os preservativos?
3.3.04
O paradoxo da descentralização: do exemplo Ferreira Torres
O triste espectáculo oferecido por Avelino Ferreira Torres, num dos muitos condóminos público-privados a que deu o seu nome, merece uma atenta reflexão. Não vou pelos caminhos da maioria dos analistas. Não vou enfatizar o atroz espectáculo. Não vou apontar a dedo as consequências negativas da invasão de campo e das ameaças dirigidas ao árbitro. Também a mansidão patética da GNR não merece alongados comentários (fosse outro o indivíduo e a GNR teria agido energicamente, com bastonadas dissuasoras). Não me vou demorar nas manifestações do pior latino-americanismo de quem devia ter tento na língua (e na cabeça). Nem uma palavra vou dizer sobre a verborreia indigesta que o autarca marcoense verteu em sucessivos canais televisivos, sem ter a consciência de que a cada palavra que debitava mais e mais se enterrava no lodaçal em que tão bem vegeta.
O episódio de domingo veio pôr em destaque algo mais importante: as consequências da descentralização. Sou favorável a uma ampla descentralização política e financeira, quer no país quer no quadro da União Europeia. Sou-o por convicção, por acreditar num modelo de filosofia política que destaca os benefícios de uma acção política conduzida o mais próximo possível dos cidadãos.
Para quem se afirma partidário da descentralização, o municipalismo é um dos seus esteios. Aliás, a história de Portugal é pródiga numa forte tradição municipalista. Os problemas sentidos à escala local devem ser resolvidos a esse mesmo nível. Sem a interferência de burocratas sentados no remanso dos seus recônditos gabinetes num qualquer ponto de Lisboa, sem nunca terem ido aos locais onde os problemas reais são sentidos. Defendo uma descentralização efectiva, não apenas uma descentralização mascarada que consista na atribuição de competências aos municípios sem haver a distribuição de poderes ao nível financeiro.
No entanto, o cadastro autárquico do país é tão assustador que fico num beco sem saída. Não é apenas o exemplo de Avelino Ferreira Torres. Este é apenas um entre muitos exemplos de autarcas que se perpetuam no poder, que constroem fortunas fabulosas enquanto lideram os destinos do município, que fidelizam clientelas perversas que partilham as migalhas de um bolo que serve para manter sempre os mesmos no poder, cultivando o caciquismo que subverte a democracia.
O autarca do Marco é apenas um exemplo entre os seus pares. Basta percorrer a geografia nacional de lés a lés para encontrar outros casos perigosos. Citando de cor, Narciso Miranda, Mário de Almeida, Fernando Gomes, Fátima Felgueiras, Daniel Campelo, Isaltino Morais, Abílio Fernandes (e assim percorremos todo o arco político nacional, com a excepção dos neófitos bloquistas de esquerda) não andam longe de Ferreira Torres na prática governativa. Descontando os excessos de linguagem que fazem do autarca do Marco uma figura trágico-cómica do panorama político nacional, as diferenças não são acentuadas.
É com esta paisagem de desconfiança que me interrogo: se o modelo de descentralização que defendo fosse levado à prática; com o panorama perverso que já hoje observamos no mapa da política autárquica, ainda que esta gente seja responsável pela gestão de recursos limitados; o que teríamos se lhes fosse dada a possibilidade de deitarem a mão aos meios financeiros que a descentralização lhes traria? Eis o meu dilema: defender um modelo de descentralização que teoricamente tem todas as condições para funcionar, mas reconhecer que com os espécimes que povoam a política autárquica nacional esta opção poderia ser trágica para o país.
O episódio de domingo veio pôr em destaque algo mais importante: as consequências da descentralização. Sou favorável a uma ampla descentralização política e financeira, quer no país quer no quadro da União Europeia. Sou-o por convicção, por acreditar num modelo de filosofia política que destaca os benefícios de uma acção política conduzida o mais próximo possível dos cidadãos.
Para quem se afirma partidário da descentralização, o municipalismo é um dos seus esteios. Aliás, a história de Portugal é pródiga numa forte tradição municipalista. Os problemas sentidos à escala local devem ser resolvidos a esse mesmo nível. Sem a interferência de burocratas sentados no remanso dos seus recônditos gabinetes num qualquer ponto de Lisboa, sem nunca terem ido aos locais onde os problemas reais são sentidos. Defendo uma descentralização efectiva, não apenas uma descentralização mascarada que consista na atribuição de competências aos municípios sem haver a distribuição de poderes ao nível financeiro.
No entanto, o cadastro autárquico do país é tão assustador que fico num beco sem saída. Não é apenas o exemplo de Avelino Ferreira Torres. Este é apenas um entre muitos exemplos de autarcas que se perpetuam no poder, que constroem fortunas fabulosas enquanto lideram os destinos do município, que fidelizam clientelas perversas que partilham as migalhas de um bolo que serve para manter sempre os mesmos no poder, cultivando o caciquismo que subverte a democracia.
O autarca do Marco é apenas um exemplo entre os seus pares. Basta percorrer a geografia nacional de lés a lés para encontrar outros casos perigosos. Citando de cor, Narciso Miranda, Mário de Almeida, Fernando Gomes, Fátima Felgueiras, Daniel Campelo, Isaltino Morais, Abílio Fernandes (e assim percorremos todo o arco político nacional, com a excepção dos neófitos bloquistas de esquerda) não andam longe de Ferreira Torres na prática governativa. Descontando os excessos de linguagem que fazem do autarca do Marco uma figura trágico-cómica do panorama político nacional, as diferenças não são acentuadas.
É com esta paisagem de desconfiança que me interrogo: se o modelo de descentralização que defendo fosse levado à prática; com o panorama perverso que já hoje observamos no mapa da política autárquica, ainda que esta gente seja responsável pela gestão de recursos limitados; o que teríamos se lhes fosse dada a possibilidade de deitarem a mão aos meios financeiros que a descentralização lhes traria? Eis o meu dilema: defender um modelo de descentralização que teoricamente tem todas as condições para funcionar, mas reconhecer que com os espécimes que povoam a política autárquica nacional esta opção poderia ser trágica para o país.
2.3.04
Sobre a falsa modéstia
O futebolista Nuno Gomes estava a ser entrevistado na televisão. A certa altura, o entrevistador disparou a seguinte pergunta: “achas que és um homem bonito? Pelo menos tens a consciência que há muitas fãs que te consideram um homem bonito?” O atleta esboçou um ar de surpresa, de perturbação, talvez por não estar à espera de semelhante pergunta. Não é para menos. O entrevistador decidira resvalar para questões bem ao jeito das lamentáveis revistas cor-de-rosa que tanto gostam de se perder com estas minudências. A resposta, após alguns segundos de hesitação, saiu ao bom estilo do politicamente correcto.
Porque motivo se encontra enraizada, na maneira de ser da generalidade das pessoas, a queda para a falsa modéstia? Apenas me interessa reflectir sobre a atitude comum que é a das pessoas que têm certos atributos (profissionais, artísticos, humanos, etc.) aparecerem em público a negar que essas qualidades possam ser tão valorizadas quanto o são por outras pessoas. Porque a falsa modéstia é uma das maiores expressões de vaidade que pode existir.
Se possuímos certos dons acima da média, porque motivo não reconhecemos isso mesmo? Se alguém se olha no espelho e se sente especialmente belo, porque não se há-de sentir satisfeito consigo mesmo pela beleza que julga ser esplendorosa? Sem descair para excessos de narcisismo, ao bom estilo do “espelho meu, espelho meu, há alguém mais belo do que eu?”, é saudável admitirmos aquilo de bom que somos ou que possuímos, sobretudo quando questionados por outros nesse sentido. Fico perplexo com uma das orientações dominantes do contemporâneo politicamente correcto: é mais fácil virmos a público admitir as nossas fraquezas do que as nossas virtudes. Quiçá este seja um legado da matriz cristã, bem interiorizado no nosso subconsciente, que prega a humildade e a abnegação, o auto-compungimento, a negação do ser pleno que habita dentro de nós.
Negar a evidência, transmitindo a falsa aparência de que estamos apenas a ser modestos, para que outros que não têm os mesmos dons não fiquem atormentados, apenas serve para mentir. É uma mentira que esconde uma forma suprema de vaidade, aquela que exterioriza a necessidade de passar ao lado das virtudes que temos apenas para não ofender a maioria que não está empossada desses dons. Quando confrontado com a pergunta do entrevistador, o futebolista do Benfica poderia ter respondido discretamente com uma única palavra: sim. Alguém o podia acusar de alguma coisa, sobretudo quando estava a ser verdadeiro consigo mesmo?
O grande problema das falsas modéstias é que as pessoas julgam que não admitir os especiais dons que têm é meio caminho andado para não serem acusadas de vaidade. É bom separar as águas. Uma coisa é, de forma discreta, admitir as características que temos e que nos distinguem da média. Outra é pavonear a todo o tempo essas mesmas características, esfregando na cara de toda a gente a superioridade em relação ao cidadão comum. Neste caso, a vaidade é inflamada por traços de arrogância, levando aqui sim a um comportamento censurável.
Porque motivo se encontra enraizada, na maneira de ser da generalidade das pessoas, a queda para a falsa modéstia? Apenas me interessa reflectir sobre a atitude comum que é a das pessoas que têm certos atributos (profissionais, artísticos, humanos, etc.) aparecerem em público a negar que essas qualidades possam ser tão valorizadas quanto o são por outras pessoas. Porque a falsa modéstia é uma das maiores expressões de vaidade que pode existir.
Se possuímos certos dons acima da média, porque motivo não reconhecemos isso mesmo? Se alguém se olha no espelho e se sente especialmente belo, porque não se há-de sentir satisfeito consigo mesmo pela beleza que julga ser esplendorosa? Sem descair para excessos de narcisismo, ao bom estilo do “espelho meu, espelho meu, há alguém mais belo do que eu?”, é saudável admitirmos aquilo de bom que somos ou que possuímos, sobretudo quando questionados por outros nesse sentido. Fico perplexo com uma das orientações dominantes do contemporâneo politicamente correcto: é mais fácil virmos a público admitir as nossas fraquezas do que as nossas virtudes. Quiçá este seja um legado da matriz cristã, bem interiorizado no nosso subconsciente, que prega a humildade e a abnegação, o auto-compungimento, a negação do ser pleno que habita dentro de nós.
Negar a evidência, transmitindo a falsa aparência de que estamos apenas a ser modestos, para que outros que não têm os mesmos dons não fiquem atormentados, apenas serve para mentir. É uma mentira que esconde uma forma suprema de vaidade, aquela que exterioriza a necessidade de passar ao lado das virtudes que temos apenas para não ofender a maioria que não está empossada desses dons. Quando confrontado com a pergunta do entrevistador, o futebolista do Benfica poderia ter respondido discretamente com uma única palavra: sim. Alguém o podia acusar de alguma coisa, sobretudo quando estava a ser verdadeiro consigo mesmo?
O grande problema das falsas modéstias é que as pessoas julgam que não admitir os especiais dons que têm é meio caminho andado para não serem acusadas de vaidade. É bom separar as águas. Uma coisa é, de forma discreta, admitir as características que temos e que nos distinguem da média. Outra é pavonear a todo o tempo essas mesmas características, esfregando na cara de toda a gente a superioridade em relação ao cidadão comum. Neste caso, a vaidade é inflamada por traços de arrogância, levando aqui sim a um comportamento censurável.
1.3.04
Parque da cidade, outra vez
Depois de três meses de ausência, de volta às corridas matinais. Mas não é a apologia do exercício físico que me faz escrever. Antes as sensações variadas trazidas pelo amanhecer nestes dias de um Março que acaba de entrar no calendário e anuncia o final do Inverno.
À hora a que chego ao parque é ainda noite cerrada. Os minutos iniciais fazem-se em direcção ao mar, a poente. O que os olhos alcançam é o breu, uma escuridão que não permite distinguir onde acaba o mar e começa o céu. Só quando o rumo se curva para norte, e quando o olhar se desvia para a direita, começo a notar uma coloração diferente no céu. Já não é a escuridão que o tinge. Um tom mais claro, um cinzento ocre que se tenta emancipar do preto dominante da noite, ergue-se hesitante. Com os minutos a passarem compassadamente, a aurora anuncia-se no firmamento. A cada minuto que se sucede, o escuro que preencheu a noite vai dando lugar à claridade, ainda sem sinais do sol que se apresta a romper no fio do horizonte.
Nova esquina virada e os olhos dão de caras com nascente. O céu, preenchido por umas nuvens tímidas e esparsas que não chegam para o esconder, dispara um esplendoroso vermelho-alaranjado nutrido pelos primeiros raios do sol que está quase a despontar. O quadro é magnífico. As nuvens ganham aquela cor vermelho-alaranjada, como se estivessem a gritar de saudade pelo breu da noite que vem dar lugar à claridade do dia. As cores que se misturam nas nuvens dispersas e no firmamento descoberto são de uma beleza singular. Revigorante.
A acompanhar os primeiros sinais do dia que nasce, as aves despertam do sono nocturno. Começam a chilrear, treinado as cordas vocais e comunicando entre si. As mais ávidas pelo dia que se estende pela frente começam a esvoaçar, em desordenados mas garbosos voos rasantes pela relva e pelos lagos. Também os patos e os cisnes entram na cantoria. Alguns levantam-se de um sono refrescante e entram na água para o primeiro passeio matinal.
Nova esquina dobrada fez-me orientar a bússola para poente, voltando as costas ao vistoso espectáculo de luz radiosa que o sol, ainda escondido, pintava o céu. Ainda consegui ver como essa luz irradiava nas árvores à minha frente. Como se elas perdessem, por um momento, o castanho dos troncos e o verde das folhas e subitamente ganhassem aquele vermelho-alaranjado vindo da aurora.
O exercício aproxima-se do final. Com nova curva dada regresso ao ponto de partida, com o nascente no firmamento. Ainda não vejo o sol na sua grandeza, essa bola incandescente que a esta hora da manhã rompe com timidez a linha do horizonte. Apenas descubro uma cor alterada a tingir a mistura de céu e de nuvens por cima da minha cabeça. Já não o vermelho-alaranjado etéreo de há pouco, mancha celestial de pouca duração. Agora apodera-se uma transmutação luminosa onde refulge um amarelo que altera o laranja que há pouco dominava. Um amarelo radioso, que começa a encher o céu até que os primeiros raios são trazidos com grandiloquência pelo astro rei que cresce, imparável, para lá do horizonte.
Eis uma experiência que as pessoas deviam ter. Não digo que cometam a loucura de correr meia hora expostas ao frio invernal. Apenas despertar mais cedo para testemunharem com os seus olhos a grandiosidade da contemplação que tentei descrever. O dia fica ganho logo na alvorada.
À hora a que chego ao parque é ainda noite cerrada. Os minutos iniciais fazem-se em direcção ao mar, a poente. O que os olhos alcançam é o breu, uma escuridão que não permite distinguir onde acaba o mar e começa o céu. Só quando o rumo se curva para norte, e quando o olhar se desvia para a direita, começo a notar uma coloração diferente no céu. Já não é a escuridão que o tinge. Um tom mais claro, um cinzento ocre que se tenta emancipar do preto dominante da noite, ergue-se hesitante. Com os minutos a passarem compassadamente, a aurora anuncia-se no firmamento. A cada minuto que se sucede, o escuro que preencheu a noite vai dando lugar à claridade, ainda sem sinais do sol que se apresta a romper no fio do horizonte.
Nova esquina virada e os olhos dão de caras com nascente. O céu, preenchido por umas nuvens tímidas e esparsas que não chegam para o esconder, dispara um esplendoroso vermelho-alaranjado nutrido pelos primeiros raios do sol que está quase a despontar. O quadro é magnífico. As nuvens ganham aquela cor vermelho-alaranjada, como se estivessem a gritar de saudade pelo breu da noite que vem dar lugar à claridade do dia. As cores que se misturam nas nuvens dispersas e no firmamento descoberto são de uma beleza singular. Revigorante.
A acompanhar os primeiros sinais do dia que nasce, as aves despertam do sono nocturno. Começam a chilrear, treinado as cordas vocais e comunicando entre si. As mais ávidas pelo dia que se estende pela frente começam a esvoaçar, em desordenados mas garbosos voos rasantes pela relva e pelos lagos. Também os patos e os cisnes entram na cantoria. Alguns levantam-se de um sono refrescante e entram na água para o primeiro passeio matinal.
Nova esquina dobrada fez-me orientar a bússola para poente, voltando as costas ao vistoso espectáculo de luz radiosa que o sol, ainda escondido, pintava o céu. Ainda consegui ver como essa luz irradiava nas árvores à minha frente. Como se elas perdessem, por um momento, o castanho dos troncos e o verde das folhas e subitamente ganhassem aquele vermelho-alaranjado vindo da aurora.
O exercício aproxima-se do final. Com nova curva dada regresso ao ponto de partida, com o nascente no firmamento. Ainda não vejo o sol na sua grandeza, essa bola incandescente que a esta hora da manhã rompe com timidez a linha do horizonte. Apenas descubro uma cor alterada a tingir a mistura de céu e de nuvens por cima da minha cabeça. Já não o vermelho-alaranjado etéreo de há pouco, mancha celestial de pouca duração. Agora apodera-se uma transmutação luminosa onde refulge um amarelo que altera o laranja que há pouco dominava. Um amarelo radioso, que começa a encher o céu até que os primeiros raios são trazidos com grandiloquência pelo astro rei que cresce, imparável, para lá do horizonte.
Eis uma experiência que as pessoas deviam ter. Não digo que cometam a loucura de correr meia hora expostas ao frio invernal. Apenas despertar mais cedo para testemunharem com os seus olhos a grandiosidade da contemplação que tentei descrever. O dia fica ganho logo na alvorada.
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