23.7.04

Carlos Paredes

Foi a primeira notícia da manhã: depois de anos de sofrimento, definhado por uma doença que o consumiu até às entranhas, Carlos Paredes morreu. Não vou fazer a elegia. Como escrevi há tempos, repugna-me elogiar as pessoas no momento da sua morte. Prefiro recordar a sua música, as sensações que me trouxe. Festejar a alegria, a melancolia, os segredos dos acordes da música que Carlos Paredes compôs, é a melhor forma de esconder as sombras que acompanham as carpideiras que vertem lágrimas pela morte do artista.

Tomei contacto com a sua obra através de uma parceria ocasional com os Madredeus. Foi essa colaboração que despertou a minha curiosidade, que me levou a procurar alguma da discografia de Carlos Paredes. Admito que apenas conheço uma ínfima parte da extensa obra. O que conheço é suficiente para nutrir uma profunda admiração pela música de Paredes.

Ao escutar a sua música, o traço mais saliente é a enxurrada de imagens que transpira de cada acorde dedilhado. O espírito é assaltado por múltiplos quadros com tonalidades diferentes, ao sabor do ritmo e da melodia. Fechando os olhos na audição de uma música, vejo as ruelas íngremes de Lisboa, calcorreadas pelas varinas, numa vida sofrida mas feliz; imagino as crianças que soltam a alegria esfuziante nas brincadeiras na pausa da escola; vejo como os pescadores regressam de uma árdua labuta, depois de mais uma faina em mar tempestuoso.

Ouvir Paredes é sentir a música feita de sons que sussurram palavras singulares. A guitarra portuguesa, tratada com mestria, liberta sons que se traduzem em palavras que ecoam nos ouvidos. Como se trauteasse a melodia e, com ela, subissem as palavras escondidas por detrás dos acordes. Lembro-me de uma fase em que tentava fazer poesia; a música de Carlos Paredes servia de inspiração para tentar encontrar as palavras perdidas no cosmos. Era a música de Carlos Paredes que me levava a agarrar algumas das palavras que andavam à solta, tentando dar-lhes forma de poema. Porque a música de Paredes é poesia musicada. Poema sem palavras, que a música traz até ao espírito do ouvinte.

Na música de Carlos Paredes misturam-se os sentidos e as artes. Se os sons são palavras tocadas pelos dedos mágicos do músico, a música tanto se desfaz em poesia como se molda num quadro idílico. Talvez esta representação dos sentidos seja facilitada pela ausência de palavras. É uma música que permite um acto de libertação do ouvinte. A concentração nos sons, nas imagens que os sons sugerem, deixam a flutuar na atmosfera as imagens construídas ao sabor de quem escuta a música. Certa música consegue ter estes predicados – mas pouca é a música que alcança esta dimensão.

Ao regressar a casa, deparei com a música de Carlos Paredes na TSF. Não foi surpresa escutar aquela que é, talvez, uma das músicas mais conhecidas de Paredes, o “Canto de embalar”. Uma música sublime, de uma beleza arrepiante, uma excursão pelos sentimentos ternurentos que sugerem uma noite mal dormida pelo filho recém-nascido que não consegue dormir. Esta música sempre me trouxe a mesma sensação: imaginar-me pai, mesmo quando nem sequer sonhava que pudesse vir a sê-lo, e embevecer-me com o esforço de tentar levar ao sono o meu filho.

Anos mais tarde, Pedro Ayres de Magalhães escreveu um poema singelo que trouxe outra roupagem ao “Canto de embalar”. Então a música ficou no limiar da perfeição, com os sons da guitarra de Paredes, as palavras de Ayres de Magalhães e a voz aveludada de Teresa Salgueiro.

Lá vai ao fundo a sereia
Ouviu à noite cantar
Andava à noite à candeia
Andava à noite no mar

Eu fui contigo ao inferno
Fomos ao fundo do mar
Ó meu amor que eu mais amo
Deixa-me eu te embalar

Uma, duas ou três
Tantas, não sei contar:
Eu sei lá quantas vezes
Sai o barco para o mar;
Mas à noite há segredos
Deixa-me eu te embalar

4 comentários:

Anónimo disse...

Atrás dessa tua capa de cepticismo há um ser com uma sensibilidade fantástica.
Às vezes penso se o teu lado corrosivo, que tão bem transpiras na maioria destes teus textos, não será um escape para a tua dificuldade em expor este teu outro lado (o do teu verdadeiro Eu). Enfim, o texto de hoje mostra que já não te é assim tão difícil.
Como dizem os franceses, "keep on going!"

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Atrás dessa tua capa de cepticismo há um ser com uma sensibilidade fantástica.
Às vezes penso se o teu lado corrosivo, que tão bem transpiras na maioria destes teus textos, não será um escape para a tua dificuldade em expor este teu outro lado (o do teu verdadeiro Eu). Enfim, o texto de hoje mostra que já não te é assim tão difícil.
Como dizem os franceses, "keep on going!"

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Confesso que não costumo comentar estas coisas dos blogs e nem tenho tempo para ler todos os dias.
O amigo Felino é, no entanto, um caso insólito: tanto escreve textos cáusticos e de exactidão por vezes um pouco distorcida, como brinda o incauto leitor com prosa poético-lamechas.
Enfim, todos temos direito aos momentos lamechas, e espero sinceramente que a música de C.Paredes o ajude a adormecer os seus filhos.
Quanto aos textos cáusticos, o amigo é mesmo assim ou isto só um hobby?
Eu pergunto-me: qual o mal de fazer elogios a quem morre? A escolha da palavra "repugna-me" não terá sido exagerada? Não é característico do ser humano só dar valor ao que tem quando o perde? E porque não aproveitar esses momentos para uma reflexão mais profunda sobre a vida de cada um baseada no elogio àquele que morre?

E o seu texto de hoje? Não é um elogio a Carlos Paredes no dia da sua morte? Não terá o amigo sido traído pelas suas próprias palavras?

Um abraço do Verdadeiro Artista

Anónimo disse...

Amanhã precisarei de ajuda. Quem ma deu, sem perguntas, sem hesitações, de todos os meus tão justamente ocupados amigos, foi o felino.

(dito por quem conhece pessoalmente o felino, para quem não conhece quase nada do felino, e sabendo que o felino não apreciará este meu tipo de intromissão).