22.7.04

Dilema sobre a confiança

É um dilema profissional. Não é um caso insólito, agora que o calendário de exames está em pleno. Por esta altura os alunos tentam levantar as mais variadas excepções para justificar insucessos ou faltas a exames. Desta vez o caso mudou de figura, porque a argumentação do aluno pôs-me na dúvida. A novidade vem de facto de em ocasiões anteriores ter rejeitado sem hesitações apelos idênticos.
 
A história conta-se em poucas palavras. O regulamento de avaliação da universidade coloca duas condições para que os alunos possam estar presentes em exame final. Em primeiro lugar, têm que marcar presença num dos momentos intercalares de avaliação (as frequências), nem que seja para apenas preencher o cabeçalho da folha de teste e entregá-la em branco. Em segundo lugar, há um requisito relacionado com assiduidade. A regra estabelece um mínimo de 40% de presenças para que possam ser submetidos a exame final. Para os alunos que beneficiam do estatuto de trabalhador-estudante, cada professor tem liberdade para os isentar desta regra.
 
Há dias, um dos alunos presente num exame estava bem longe de cumprir o requisito da assiduidade. Tive o cuidado de confirmar o seu estatuto: não era trabalhador-estudante. Automaticamente não corrigi o seu exame. Na pauta apareceu o “E” de “excluído”, conforme consta do regulamento. No dia seguinte à afixação da pauta, o aluno contactou-me por e-mail. Manifestava estranheza pelo “E”, já que não constava qualquer explicação para a exclusão. Em resposta expliquei-lhe as razões da sua exclusão (e da omissão na pauta: apesar de as ter mencionado no espaço dedicado às observações – no rodapé da pauta – por lapso dos serviços essa informação foi tapada por outra pauta).
 
Poucos minutos depois recebi outro e-mail do aluno, que pretendia justificar o sucedido. O teor era o seguinte:
 
Venho desta forma (já que sou de longe e não posso ir sempre para o Porto) apelar à sua compreensão e sensibilidade para o meu caso, já que a universidade assim não o fez. O que é verdade é que eu durante o período de aulas estava a morar no Porto enquanto estudava e à noite trabalhava num bar/café na cidade do Porto. Porém este trabalho não era declarado no IRS, era apenas em "part-time" (para ajudar a pagar os estudos). Expliquei esta situação à universidade que mesmo assim nada fez para me ajudar! Como deixei a sua disciplina para exame final faltei um pouco mais a esta cadeira por causa do trabalho, mas admito que pensei que tivesse mais presenças. Estudei bastante para tentar passar neste exame, mesmo tendo outro exame no mesmo dia e um outro no dia anterior, pois não sabia que estava excluído a esta cadeira. Apelo mais uma vez à sua compreensão e sensibilidade para este meu caso, e espero que o Dr. reconsidere a minha situação.
 
Ao fim de mais de dez anos de ensino fui-me habituando a um rol infindável de justificações e desculpas, umas mais elaboradas e outras com menor sofisticação, apresentadas pelos alunos para explicar mil e uma coisas. Também os fui habituando a não resvalarem para atitudes choramingas, que comigo não pegam. Soube construir uma carapaça, porque da conversa com outros colegas percebi que os alunos são mestres em arranjar pretextos mil para justificar as suas faltas. Era até acusado de ser insensível perante situações deste calibre.
 
Quando li este e-mail fiquei sem saber como reagir. Por um lado, pensei que era mais uma artimanha para tirar dividendos de uma situação que foge aos regulamentos. O pedido do aluno teria que ser rejeitado na hora. Lembrei-me de todos os casos em que os alunos recorrem à fértil imaginação para adiantaram as justificações mais implausíveis de que há memória. Interroguei-me se este não seria o caso. Mas a outra metade de mim levantou outra questão: e se a história relatada pelo aluno corresponde à verdade? O aluno continua, ainda assim, fora do regulamento. No entanto, atendendo aos elementos apresentados pelo aluno, não deverei ser flexível? Não deveria levar em consideração o que foi contado pelo aluno e fazer vista grossa do regulamento, corrigindo-lhe o exame e lançando a nota?
 
Logo de seguida as dúvidas suscitadas pelo outro meridiano vieram ao de cima: e se o aluno congeminou uma história bem contada apenas para suscitar a compaixão do professor? Ele nunca me contactou, durante o semestre, para me colocar ao corrente da sua situação – ou seja, trabalhava sem beneficiar do estatuto de trabalhador-estudante. À boa maneira das gerações actuais (ou será um problema congénito?), deixa-se rolar o tempo na expectativa de que os problemas não surjam. Quando eles batem à porta, deixando as pessoas com as calças na mão, tenta-se então resolver o problema como for possível.
 
Encontrei uma solução airosa: sugeri que o aluno submetesse o caso ao director da faculdade. Já sei, sacudi a água do capote, mas evitei cair em contradição com o regulamento. Ao menos este episódio serviu para registar que ando com o coração menos empedernido do que o habitual. Pelos menos as dúvidas que o caso suscitou são a revelação de que “amoleci”. Só me falta descobrir o significado deste sintoma. 
 

3 comentários:

Anónimo disse...

crescimento meu caro crescimento

Carter

Anónimo disse...

Mais importante do que o significado do sintoma é saber como te sentes.

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

A realidade dos factos põe-nos frequentemente entre a espada e a parede. No entanto, deveremos sempre optar por estar bem com a nossa consciência. Neste caso, vislumbra-se uma certa falta de cuidado por parte do aluno em questão. Se bem estava a prover pelo seu sustento presente, também deveria ter cuidado pelo seu futuro, contactando o ou os professores e transmitindo-lhes a sua situação. A solução escolhida foi ajustada.
Yorgas ;)