31.5.06

A têmpera de um povo


Casimiro sai da obra ao fim de mais uma cansativa jorna. Ainda vem imundo, as mãos sujas do cimento amassado, o cabelo desgrenhado e áspero – naquele dia estava vento e a poeira do cimento andava à solta, encontrando pousio nos cabelos dos trolhas. Casimiro monta na sua Famel Zundapp. A mota está um mimo. Devota-lhe mais carinho que à mulher e aos dois filhos. Encera-a mais vezes que os seus sapatos. Casimiro pode aparentar o que é, na descuidada imagem de quem está “estabelecido na vida” (tradução: família feita), mas a motoreta é o orgulho que o mantém esclarecido – isso e o grandioso Benfica, mas só quando as vitórias marcam encontro com o “maior clube do mundo”.

Monta na Zundapp, de regresso a casa. Coloca o capacete – ou o esboço de capacete que, contrariado, lhe traz incómodo na viagem até ao lar. Nem sequer se pode chamar capacete. Para falar com verdade, aquilo parece um penico: um semi-círculo que protege a parte superior da cabeça, pois a nuca vai apenas com a protecção de uma napa mal amanhada. Está tudo estudado, cientificamente. Se ele tiver um acidente, as hipóteses de bater com a nuca são escassas. Aliás, se Casimiro pudesse mandar nos destinos do país, das primeiras decisões que tomava era proibir a obrigação do uso do capacete para os motociclistas. É um incómodo desnecessário.

No caminho para casa, paragem obrigatória na tasca. Sempre se encurta a presença no lar – quanto menos tempo aturar a sua Segismunda, mais o Cláudio Rafael e a Sónia Carina (ler como se o segundo nome levasse acento no primeiro “a” – “Cárina”), a prole com oito e três anos respectivamente, quanto menos tempo os aturar depois de um cansativo dia de trabalho, melhor. A companhia dos compinchas dos copos é preferível. Ao menos pode arrotar sem levar com o ar enojado de Segismunda. E todos apreciam, lá na tasca, a curvilínea apresentadora de um concurso de fim de tarde que passa num canal de televisão (diz-se “telvisão”), enquanto tragam os “copos de três” de tinto do Bombarral e degustam umas sandes de couratos. O vernáculo é escorreito. As promessas de façanhas sexuais são dirigidas para o ecrã, ao bom estilo do cão que ladra mas não morde. Uma liturgia colectiva que se repete, dia após dia.

Chega a casa quando o jantar começa a esfriar dentro dos tachos e da frigideira. Não consente protestos da Segismunda, ou a pesada mão direita levanta-se, brusca, e cai sobre a infeliz consorte. Como ela já conhece os predicados do esposo, cala-se a bem da integridade física. Casimiro sabe que no matrimónio o homem manda e a mulher nasceu para ser obediente. Senta-se à mesa ainda imerso na imundície da obra. Nem sequer lavar as mãos preciso é. Devora a pratada que a dedicada mulher lhe serve. Acompanhada por uma garrafa de tinto carrascão que veio lá da aldeia – “vinho avariado”, como ouve numa reportagem da televisão, acenando com a cabeça em tom de reprovação, dizendo: “estes maricas têm a mania das higienes. Ainda nos hão-de matar com a mania das higienes”. Cláudio Rafael mostrava resistência em comer o que lhe estava destinado, fazendo orelhas moucas aos apelos da paciente mãe. Casimiro chegou a mão direita atrás e lançou-a com fragor na cara do petiz. As palavras vieram depois da estalada: “come minha besta, ou apanhas outra igual”.

Fim do jantar. Casimiro levanta-se da mesa assim que acaba de comer. Não lhe interessa que o resto do agregado ainda esteja a meio da refeição. Levantar a mesa é para a mulher – as lides da casa são coisas de mulheres. Homem que se preze não se dedica a essas mariquices. Esse é um dos mandamentos repetidos até à exaustão na sua tertúlia, por entre o fumo dos cigarros e o discernimento toldado pelo álcool abundante. Vai para a sala, descalça os sapatos e estende os pés em cima da mesa de centro. O farto repasto começa a dar frutos: a flatulência dá notícias, com sonoros trovões que empestam a sala com um cheiro nauseabundo. O filho mais velho entra na sala e, desprevenido, descai-se: “que cheiro!”. O pressuroso pai olha-o de lado e ameaça: “vê lá se queres mais do que comeste ao jantar”.

É dia de aniversário da prima Tânia Vanessa. Apesar do cansaço, não se regateia uma festança com mais uns comes e uns bebes valentes. Até porque depois do bolo de aniversário há espumante – coisa só para dia de festa. Viaja o agregado na motoreta, conduzido por Casimiro já etilizado. Não há problema. Ele acha que conduz melhor depois de emborcar uns copos. Capacetes, só para os adultos. Os petizes vão ensanduichados entre os progenitores. Sem capacetes, pois na sua imensa sapiência, Casimiro sabe que não há hipóteses de acidente. E mesmo que houvesse, as crianças iam protegidas ao estarem emparedadas entre o pai e a mãe. Nunca seriam projectadas, nem caíram com estrépito no chão – para quê pôr-lhes capacetes na cabeça?
Regressam à meia-noite. Com a consciência de um motociclista que conduz a família com uma taxa de alcoolémia que dava prisão.

30.5.06

Os cábulas


Por estes dias, a notícia de que somos cábulas congénitos. Uma significativa percentagem dos inquiridos (quase 75%) confessou que recorreu aos métodos fraudulentos, que pelo menos uma vez na vida foram cábulas. Algumas reacções foram de admiração. Não sei se pelo resultado divulgado, se pela frontalidade de quem confessou a tentação do pecadilho do copianço. A própria forma como a notícia foi apresentada deixou-me confuso: não consegui perceber se a intenção era censurar o resultado, ou passar a mensagem que a prática está enraizada com tamanha expressão que os petizes podem burilar os truques sem que nada lhes aconteça – a infracção parece compensar, é a mensagem enviada.

Copiar é uma arte. A arte de ser imaginativo ao ponto de conceber os auxiliares de memória sem que o professor os consiga descobrir. A parte sublime da arte está em iludir o professor. Copiar sem que o professor desconfie. Por isso costumo dizer aos alunos, em tom de brincadeira, quando eles correm desalmadamente para os lugares na última fila da sala, que é mais fácil copiar na primeira fila, mesmo nas barbas do professor. Nesta arte o que recompensa é a descontracção. Qualquer atitude suspeita, um gesto nervoso, fermenta a desconfiança do docente, que concentra o olhar no aluno suspeito. Este fica estático durante uns minutos, com manobras evasivas. Como se estivesse mergulhado em dúvidas profundas sobre o que é perguntado no teste. Mas apenas à espera que o professor deixe de o contemplar com o olhar assassino que o paralisa.

A arte de enganar o professor. Mas não só. É também o dom de enganar os colegas. Quantas vezes os “honestos” (aqueles que não copiaram, ou que não copiaram com tanta extensão) protestam porque o colega do lado não estudou nada, colou-se aos auxiliares de memória aproveitando a distracção do professor, e tirou melhor nota? Já soube de histórias ainda mais obtusas. Cábulas profissionais, não predestinados para o estudo, ou entregues a tarefas mais nobres (que isto do estudo é uma perda de tempo…), parasitam um colega, copiam-lhe o teste, e o acaso encarrega-se de atribuir uma classificação melhor ao parasita. O que foi parasitado reclama, sente-se injustiçado. Questiona o professor pelos critérios de avaliação. Protesta a injustiça. Raramente denuncia o parasita, pois a solidariedade corporativa fala mais alto. É um risco da actividade de cábula – neste caso, um risco para quem consente ser parasitado.

O mais curioso é que os cábulas se enganam a si mesmos, sem o perceberem. De cábula em cábula, passando os calafrios de quem se arrisca a ser apanhado a meio do exame na posse de auxiliares de memória, os cábulas profissionais vão obtendo aproveitamento sem saberem o mínimo. Servem-se de meios fraudulentos para dobrar as dificuldades de mais uma disciplina. Não é o seu conhecimento que está a ser avaliado. O problemático está na auto-ilusão que se apodera dos cábulas. Eles acham que estão a enganar o professor. Alguns fazem disso motivo de garbo, como se fossem um D. Quixote dos bancos da universidade que arrebata a Dulcineia temerosa (mais uma disciplina do plano). Quando, no fundo, se enganam a si mesmos. Não percebem que quando saírem da universidade, canudo na mão (se algum dia isso acontecer), entram na selva do trabalho e não há lugar aos expedientes a que se habituaram enquanto estudantes. Porventura confiam na capacidade de improvisação para saldarem com êxito os desafios. Entregam-se nas mãos do aleatório. Por vezes os resultados são um grande amargo de boca.

Tenho colegas que convivem pacificamente com a arte de copiar. Argumentam que copiar tem algo de pedagógico: explicam que enquanto o aluno gasta tempo a preparar os auxiliares de memória toma contacto com as matérias da disciplina. Logo, não vai virgem (de conhecimentos) para o exame. Percebo a teoria. Só me custa a aceitar que durante o exame esse aluno tire da algibeira os auxiliares de memória, os esconda algures e se sirva deles para responder a uma pergunta que é incapaz de responder sem a ajuda dos copianços. Isto é batota. Dúvidas houvesse porque nos colamos o rótulo de povo Chico-esperto, a confissão da fraude académica desfazia-as em duas penadas.
Regresso à notícia que revela a percentagem astronómica que confessa ter copiado nos tempos de estudante. Por um momento, faço de conta que este governo é a representação fiel do povo português. Portanto, três em cada quatro governantes terão copiado na escola e na universidade. São, caso ainda restassem dúvidas, uma fraude em pessoa. E deito-me a imaginar: qual a minoria que se encaixa na escassa percentagem que nunca copiou?

29.5.06

Corrupção, o que é isso?


Uma organização não governamental (cujo nome não retive na memória) publicou um relatório sobre corrupção no mundo. Portugal é motivo de orgulho. Como a última condenação por corrupção data de 1984, podemos considerar que somos um país limpo. Um exemplo para todos os lugares onde a corrupção grassa, endémica, falseando resultados, enriquecendo uns à custa de tantos, desvirtuando a ética nas relações humanas.

Este relatório é uma pedrada no charco. Uma lição para velhos do Restelo que insistem em ver porcaria em todo o lado. Arautos da teoria da conspiração no seu expoente máximo, estes desconfiados metódicos dizem que a corrupção está enraizada nos hábitos – desde a grande corrupção, que move avultadas quantias, passando pelo tráfico de influências, terminando na comezinha pequena corrupção, feita de pequenos favores que são pagos, e com juros, mais tarde, da palmadinha nas costas pois “ tudo se arranja”. A organização não governamental mostrou ao mundo – e, a começar, aos nativos lusitanos – que a corrupção foi varrida do mapa há vinte e dois anos. O nirvana!

Os que desconfiam que as decisões do governo são alimentadas por generosas compensações financeiras que correm debaixo da mesa; os que denunciam a corrupção instalada nos municípios, onde a construção civil enriquece autarcas com um espólio que nem um primeiro prémio na taluda permitiria; os que acreditam que os resultados no futebol são fruto de tráfico de influências, com imensos actores à mistura, farto dinheiro distribuído por “empresários”, presidentes de clubes, árbitros e sabe-se lá quem mais; quando se pensa que a atribuição de subsídios às empresas (sempre de mão estendida à espera da generosidade estatal) é feita ao empresário que conhece o primo da mulher do assessor do ministro; aos que estão convencidos que no mundo da susbsídio-dependência por excelência – a cultura – as verbas vão para os amigos, para os comparsas partidários, para os artistas a quem é conveniente subsidiar; estes cépticos foram derrotados com o relatório da organização não governamental. Eles só conseguem nutrir suspeitas. Os factos desmentem-nos. Estão errados. Este é um país de invejável condição.

Itália, por exemplo, devia pôr os olhos em nós. Ao covil da corrupção, a pátria da máfia, oferecemo-nos para ensinar como ter sucesso com uma operação que varre a corrupção do mapa. As operações “mãos limpas” que trouxeram um poder desmesurado à magistratura italiana não passam de uma encenação. Itália continua a ter condenações por corrupção. E quando alguns dos juízes que estiveram no epicentro da moralização da política e dos negócios se deixaram seduzir pela política, eis a prova de como a corrupção não foi banida. Têm que aprender com Portugal. Não cansa repetir: desde 1984 nenhum tribunal profere sentença condenando alguém por crime de corrupção.

Abafem-se as vozes dos que mostram curiosidade em ir mais longe na exegese da situação. Teimosos, continuam a mostrar a sua desconfiança. Continuam firmes na convicção de que a história está mal contada. Tentam esgravatar no lodaçal e encontrar explicações nas camadas mais profundas do lodo. Dirão: é verdade que desde 1984 não há condenações por corrupção, porque é dos crimes mais difíceis de provar. Ora porque não deixa vestígios – o crime consuma-se em dinheiro vivo, que não deixa pistas –, ora porque os proventos materiais ficam registados na prole e adjacências, nunca no nome do corrupto. O problema mantém-se: como se prova a suspeita? O pessoal do Direito estará na linha da frente para nos relembrar o axioma que responde às dúvidas: não se pode condenar ninguém sem prova consistente do crime. Na dúvida, vence a absolvição. E se desde 1984 não há condenações por corrupção – não me canso de o repetir à exaustão, tanto o orgulho que isto me causa – é porque não há corrupção. Sem discussão.
Por uma vez, estamos no topo dos rankings que comparam a performance dos países. Na maior parte das vezes, as notícias sobre estes rankings não são famosas para a auto-estima nacional: é preciso ler o ranking de cabeça para baixo para estarmos nos lugares cimeiros. O da corrupção veio desmentir que somos um país desgraçado. Com a vantagem adicional: estamos a falar do comportamento humano. Com este ranking, o orgulho supremo de sermos uma lição para os demais povos. Somos mais íntegros. Um exemplo de ética. Características que são incomensuráveis. De valor inestimável. Muito mais valioso do que PIB per capita, ou taxas de desemprego, ou níveis de escolaridade, ou índices de criminalidade. Um país por excelência!

26.5.06

Deslumbramentos idiomáticos (“queensdom”)

No rádio, uma música desconhecida. Chama-me a atenção o refrão, quando a intérprete repete a palavra “queensdom”. Procuro uma tradução. Não existe. Nem uma tradução literal, como tantas vezes se faz sem cuidar de verificar se a tradução faz sentido quando colocada no devido contexto; nem sequer uma tradução contextual. Uma palavra que existe em inglês não encontra correspondência no idioma português.

Dizem os adeptos da portugalidade que também temos termos que são exclusivos da língua portuguesa. Remetem-nos para a palavra “saudade”, ao que dizem insusceptível de tradução para outro idioma – pelo menos nos idiomas mais correntes. Recorro ao dicionário. Reparo que o cruzamento de dicionários – português-inglês, primeiro, e inglês-português, depois – encaminha para um desencontro. Introduzo a palavra “saudade”. Em inglês corresponde a “longing” e “homesickness”. Descarto o último termo, na verdade uma palavra compósita (“a falta que a casa nos faz”, numa tradução arrevesada). Pego em “longing” e mudo-me para o dicionário de inglês-português. O resultado é este: “anseio, desejo veemente”. Contrasto “saudade” com o dicionário de língua portuguesa: “melancolia causada por um bem de que se está privado; nostalgia; mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções; pesar”. A tentativa de arranjar sinónimo para “saudade” em inglês leva a um resultado que não coincide com o significado de saudade.

Da mesma forma que os povos que falam inglês não são acometidos por “saudade”, nos países da língua portuguesa nunca seria possível termos um “queensdom”, acaso eles regressassem ao regime monárquico. À letra, “queensdom” é o domínio da rainha, aquilo que se convencionou chamar, na língua portuguesa, “reino” (o equivalente de “kingdom”). Mesmo em países que têm uma rainha como primeira figura do Estado (o Reino Unido e a Holanda são os exemplos que me ocorrem) a língua portuguesa só encontra forma de os caracterizar como “reinos”. Ainda que o suserano seja uma rainha. O domínio não é de um rei, e ainda assim o país chama-se reino.

O exemplo ilustra o enviesamento do idioma português. Ainda está dominado pela indiferenciação de género, algo que cai no campo do politicamente incorrecto. Os linguistas deviam passar por um período de reciclagem, receber a influência dos novos ventos que forjam a igualdade de sexos – até na língua isso será de bom tom. Basta ver a moda nos estudos científicos escritos em inglês, onde os exemplos que apelam à utilização de um sujeito surgem sempre com dupla possibilidade sexual. Por exemplo, quando em português dizemos “o seu” e tanto vale para o feminino como para o masculino, em inglês está na moda escrever “her/his” para acautelar ambas as possibilidades e não destacar um sexo em detrimento do outro.

Esta abertura à diversidade de género na língua é uma riqueza que a língua inglesa comporta. No universo da língua portuguesa ainda estamos nas trevas. O artigo indefinido usado no masculino é sinal de indiferenciação de género – mas a verdade é que se usa no masculino, que tanto vale para o masculino como para o feminino. Se nos queremos referir à humanidade, a palavra “Homem” (com maiúscula) vem à superfície. É verdade que até em inglês há destas manifestações bolorentas (diria uma feminista convicta) de machismo. Humanidade é “mankind” – em tradução literal, a “espécie do Homem”. Dir-se-á que as trevas remontam às origens etimológicas, ao latim que designou o homo sapiens, o homem de Neandertal, etc.

A verdade é que “queensdom” não consta do dicionário de língua inglesa que consultei. Será um neologismo, ou a adaptação de uma palavra. Pelo menos essa adaptação é possível em inglês. Mas vedada em português. Ainda que se faça um esforço para tentar adaptar “queensdom” para a língua portuguesa, a tarefa é infrutífera. Se “reino” se decompõe em “rei” e “no” – e aqui “no” será o referencial ao domínio (do rei) – como construiríamos a palavra adaptada com rainha? Entramos no domínio da impossibilidade. Quando muito teríamos que responder: “domínio da rainha”, tradução literal de “queensdom” (“dom” para “domínio”, “queen” para “rainha”). Mas já não seria uma palavra (como “reino” é), mas três palavras.
Lição: a comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres (e esta designação não é, em si, discriminatória? O sexo masculino não tem direitos?) tem aqui a sua próxima cruzada: pressionar a academia das letras para que se estude a melhor maneira de desfazer as desigualdades de género que enxameiam o idioma português. Será altura dos discípulos de Lindley Cintra varrerem a poeira dos calhamaços e darem vivacidade à língua, de a reconciliar com os parâmetros do politicamente correcto que se impõe. Para a língua ser representativa da diversidade sexual. Para não ser uma fonte de discriminação de género.

25.5.06

As mulheres e o futebol


Pelas causas, a imaginação tem momentos arrebatadores. Um génio qualquer puxa lustro à lâmpada de Aladino e, num passe de magia, a solução milagrosa esparge-se, de supetão. Agora que uma campanha importantíssima para o brio nacional(ista) se aproxima – o campeonato do mundo de futebol, que, consta, vamos ganhar – das cartolas dos curandeiros de imagem saiu o último coelho mágico. Depois das bandeiras semeadas em varandas e janelas do casario lusitano, agora a palavra de ordem é mobilizar o sexo feminino em torno da “selecção de todos nós”.

Há dias entrámos para o Guiness à custa da santa aliança entre futebol e mulherio. Formámos a maior bandeira humana alguma vez criada. Quinze mil senhoras espalhadas no relvado do Estádio do Estado Novo, para animar a malta que há-de andar aos pontapés na bola dentro de dias, na Alemanha. E para espicaçar o brio nacional, que nestas alturas desperta da longa hibernação. É de vir às lágrimas – de emoção, de emoção! – ver a bandeira pacientemente edificada com quinze mil mulheres envergando capas vermelhas e verdes. Não há insensibilidade nacionalista que não se comova com a manifestação de fervor patriótico. Com o alto patrocínio das autoridades, como convém: ter a turba pacificada em torno de um “desígnio nacional” é o truque para esquecer outras misérias da governação (e não são poucas).

As tentativas de entrada no Guiness deixam-me desorientado. Para além do brio pessoal de quem se aventura em façanhas individuais premiadas com a entrada no livro dos recordes, mesmo que à custa de bizarrias impensáveis, estes marcos históricos têm muito de terceiro-mundista. Não me dei ao trabalho de investigar o livro de recordes. Mas aposto que as façanhas que lá aparecem devem ter origem sobretudo em países do terceiro mundo. Que nos queiramos alistar nestas fileiras, diz muito de como somos pacóvios e, quem sabe sem dar conta, nos auto-diminuímos ao ponto do nosso abrigo ser o grupo do terceiro mundo. Porventura é só o espelho do que somos.

De regresso à campanha de sedução do sexo feminino pela selecção de Portugal. Parece-me que há aqui uma campanha orquestrada dos expoentes do marialvismo doméstico. Os homens sabem que em ano de esperado torneio de futebol, as caras metade andam esbaforidas, antecipando a injecção de futebol que vão apanhar pela frente. Para algumas será boa nova: essas até desejariam que competições deste tipo se repetissem todos os anos, para não aturarem o incorrigível marido que lá anda por casa. Para estes casos, aconselhamento matrimonial. Para os outros casos, as senhoras percebem que o futebol entre nações lhes rouba a companhia do homem amado. Mais tempo dedicado a futebol, ao cubo: a maratona de jogos e a discussão do rescaldo nas tabernas e mesas dos cafés com os compinchas. Mais tempo para o futebol, ainda menos tempo para dedicar atenção às excelsas esposas.

Ora se o problema está instalado, e se não se equaciona terminar com o império do futebol – ninguém deseja uma rebelião em massa – a forma de dar a volta ao problema é aliciar as mulheres para o campeonato. Por sorte, a equipa de Portugal está na fase final. Ficássemos pelo caminho e mais desavenças conjugais consumiriam o final de Primavera de muitos casais. Querendo a “selecção das quinas” (expressão de gosto duvidoso…) mostrar que é melhor que todas as rivais, as mulheres têm que se empenhar no mesmo espírito de conquista. Afinal não são apenas os maridos que têm orgulho na portugalidade. Elas também fazem parte das levas de “ínclitas gerações” que souberam construir o garbo pátrio.

Trazê-las para o futebol é meio caminho andado para um ambiente conjugal mais saudável. Daqui a uns anos há-de haver um cientista social que vai descobrir que a taxa de divórcios desceu estrondosamente. Com outra vantagem: agora vale a pena estar atento às imagens que passam no intervalo dos jogos. É o zénite de um jogo de futebol (até porque o futebol está cada vez mais desinteressante, com as tácticas defensivas, a apologia do anti-jogo e os clones de Mourinho por aí semeados). Seguir as câmaras que farejam à distância os belos exemplares do sexo feminino espalhados pelas bancadas, quantas vezes trajando pouca roupa, é o melhor do futebol.

Por tudo isto, o aplauso aos inventores da estratégia de sedução das mulheres, tentando conciliá-las com o (mais outro lugar comum) “desporto rei”!
Post-scriptum – Não há bela sem senão: há dois anos, a visão dantesca da “primeira-dama” envergando um top com as cores da bandeira. Cenário fantasmagórico que se adivinha: a equipa nacional com um sucesso retumbante, até à final do torneio. Razão de Estado para a deslocação do presidente da república para ver o jogo da final. Teremos a nova “primeira-dama” trajando um juvenil top verde-rubro?

24.5.06

Entregues à bicharada


O bicho é enternecedor. O lobo, expoente da vida selvagem que encontramos nas serranias do norte. Está em extinção. Daí que mereça a protecção das autoridades. Ai de quem se aventure em maus-tratos a um lobo – crime de lesa-majestade. E até quando a alcateia esfomeada desce à aldeia e entra nos currais e nos galinheiros para se saciar, o Estado (todos nós, supostamente…) não hesita em pagar compensações aos proprietários afectados. Acho bem que se espalhe a pedagogia que repudia os maus-tratos a animais. Faz ainda mais sentido quando os animais correm risco de extinção.

Mas tudo tem um limite. Soube há dias, por notícia no Expresso, que a auto-estrada entre Vila Real e Chaves vai sofrer um desvio não programado, nas cercanias da Serra do Alvão, para não afectar o habitat de sete lobos. Coisa para custar a módica quantia de cem milhões de euros. Já foram várias as vezes que escrevi em defesa dos direitos dos animais. Já fui acusado de tecer loas aos animais e de desconsiderar o ser humano, pois parece que dou primazia aos animais e relego a pessoa para plano secundário. Quando li esta notícia fui tomado pela incomodidade: gastar cem milhões de euros para desviar a auto-estrada do habitat de sete lobos é um luxo que nem sequer países mais ricos ousam cometer.

Gostava de ser elucidado por um biólogo – um biólogo imparcial, sem estar acometido pelo dogmatismo ambientalista – porque motivo a construção da auto-estrada pode levar à extinção dos lobos. A ideia que passa é a de que os lobos, habituados ao seu território, estão condenados a morrer se o habitat for invadido – primeiro pela maquinaria pesada que constrói a auto-estrada, depois pelo bulício de automóveis em alta velocidade. Será que os lobos não têm capacidade de adaptação? E se acaso por lá aparecesse um predador que pusesse em risco a sua sobrevivência, os lobos não tinham o instinto de mudar de território? Parece redutora a ideia de que os lobos ou vivem confinados àquela parcela de terreno, ou morrem. E sinal de um fundamentalismo ambiental que faz mossa: como se o lobby ambiental quisesse vincar a sua posição, para que as pessoas percebam que o seu poder é imenso. Ainda que infundamentado e irracional.

Também importa perceber quem errou ao projectar a auto-estrada. Quando se sabe que a União Europeia (generosa financiadora destas obras) impõe requisitos apertados em termos ambientais; quando seria de esperar que na fase do projecto, quando se define o local por onde passa a auto-estrada, os projectistas se certificassem se havia impedimentos ambientais; como justificar a obra em cima do joelho? O preço é elevado: mais cem milhões de euros. Que todos suportamos, pagadores de impostos sem possibilidade deles fugirmos. Os (ir)responsáveis que não foram a tempo de descobrir que naquele sítio havia uma alcateia continuam impunes, prontos a projectar outra obra, preparados para causar mossa nos dinheiros públicos.

Um autarca local (de Vila Pouca de Aguiar) insurgia-se contra o desperdício. Protestava, dizendo que o município vive à míngua, não pode satisfazer necessidades básicas das populações locais. Dava o exemplo das gentes isoladas na serra do Alvão, sem acessibilidades decentes, sem saneamento e fornecimento de água. E indignava-se com a desigualdade que a factura de cem milhões de euros representa. Para proteger sete lobos há dinheiro; para necessidades básicas de um punhado de pessoas que já tem uma vida difícil no meio da serra, o orçamento de Estado é um mar de dificuldades, portas que se fecham de par em par. O autarca tentava desmascarar o ridículo da situação com um cálculo: proteger cada lobo vai custar quase quinze milhões de euros. Lobos de luxo, mais caros que um jogador de futebol!

Eu fazia os cálculos de outra forma. Proteger aqueles lobos vai custar doze euros e meio a cada contribuinte (seremos quase oito milhões). Porventura é este o cálculo que convém aos extremosos ambientalistas convencidos da bondade do desvio da auto-estrada. É mais cómodo dizer, entre a falácia das médias, que a factura não pesa tanto quando dividida por cada contribuinte. Doze euros e meio: fardo suportável. Dourar-se a pílula, afastando o dantesco cálculo do presidente da câmara de Vila Pouca de Aguiar. Não fico convencido. É mais uma factura que temos que pagar, o que me faz chorar o dinheiro que me roubam, ao fim de todos os meses, a título de impostos. Já que os temos que pagar (o que é discutível, mas enfim…), que as despesas que os impostos financiam não sejam absurdas. Estes cem milhões de euros que vêm encarecer a auto-estrada são uma despesa absurda.

Estamos entregues à bicharada. Literalmente.

23.5.06

A fábula do bombeiro

Muitas vezes, em criança, gostaríamos de ser bombeiros ao atingir a idade adulta. Os bombeiros transpiram a aura de heroísmo que encanta os petizes. Eles combatem os fogos, dias e noites a fio, entram na fornalha e disparam os jactos de água contra as maléficas chamas que tudo consomem. Quando os incêndios estão espalhados por todo o lado, os bombeiros desmultiplicam-se num esforço sobre-humano. Daí que no imaginário popular tenha vingado a expressão “só os bombeiros é que acorrem a todos os fogos”.

E há outro tipo de bombeiros. Estes são heróis deles mesmos. Têm um ponto em comum com os bombeiros: também acorrem a todos os fogos, só que agora a chama que os incendeia é a chama do conhecimento. Por estarem na linha da frente de todos os tipos de conhecimento, por conseguirem dar resposta a solicitações tão diversificadas, é como se fossem os bombeiros que conseguem acorrer a todos os fogos. São os bombeiros da ciência. Sabem de tudo um pouco. Colocam o pé em ramos de conhecimento que, para o observador desatento, não têm nenhum fio condutor a uni-los. Mas lá estão, céleres, a construir curriculum baseado na prolífica actividade que abriga heterogéneos saberes.

Estes bombeiros fazem lembrar aquelas agremiações desportivas que se gabam do eclectismo das actividades. Têm atletismo, hipismo, pólo aquático, andebol, hóquei em patins, remo, ginástica rítmica, natação. E até chegam a aceitar inscrições para o afamado curling. Os bombeiros da ciência andam pela sociologia, pela economia, pela ética, pelo direito, pela ciência política, inevitavelmente pela filosofia. E até conseguem dar uma perninha na psicologia. Em público, dissertam sobre todos os saberes. É só uma questão de afinar a agulha, sintonizar os meridianos e lá sai abundante prosápia. O que causa estranheza é que num mundo tão exigente na especialização dos saberes haja quem aposte na heterogeneidade, que seja ecléctico. Destes desconfio logo à partida: vejo-os a saberem de muitas coisas, mas suspeito que saibam muito pouco de cada coisa onde colocam o seu dedo sapiente.

Enalteçam-se os bombeiros da ciência: documentam-se. São ascetas do saber. Diria, auto-didactas. Onde não se supõe que haja lugar a essa faceta. O diletantismo é adversário do rigor que a ciência exige. E apesar do notável esforço de documentação dos bombeiros da ciência, dali não sai obra que se distinga pela qualidade excepcional. Serve apenas para discorrer umas banalidades, ou para a audiência apreciar os dotes de leitor de quem se documentou com um punhado de obras escolhidas ao acaso. Hoje, com a Internet, é tão fácil ter acesso às fontes documentais. A tarefa dos bombeiros da ciência fica facilitada, o que os leva a saltar da toca como coelhos ensandecidos em tempo de cio.

Os bombeiros da ciência são clones dos artistas de circo que, multifacetados, se desdobram em imensos números circenses. Ora trapezista, ora tripulando a mota no poço da morte, ora adestrador de animais ferozes, ora palhaço. Continuo convencido que os verdadeiros bombeiros são treinados para apagar os fogos em todas as frentes onde eles apareçam. Não têm o dom da ubiquidade, desmentindo o adágio que o povo (outra vez erradamente) foi tecendo. Nem os bombeiros conseguem acorrer a todos os fogos. Nem os bombeiros. E se a ubiquidade não existe sequer pelos lados dos bombeiros, sinal de que os eclécticos saberes fazem dos bombeiros da ciência um embuste.
Ser bombeiro da ciência é apenas uma máscara. Para quem está disposto a fazer-se passar como entendido de saberes mil. Apetece usar outro aforismo consagrado pelo povo: "quem tudo quer tudo perde". Estes mágicos do conhecimento, que cirandam por ramagens diversas do conhecimento, hão-de ser conhecidos por nada saberem a fundo. Desmascarados. Ficam-se pela superficialidade dos saberes que vão tocando. Para além de não poderem ser ubíquos, escapa-se-lhes o dom da omnisciência. Não faltaria muito e teríamos os bombeiros da ciência a rivalizar em fonte de conhecimentos com uma qualquer entidade divina. Para mal de todos os males, ser bombeiro da ciência é como ser o senhorio de um albergue espanhol – cabe lá tudo e mais alguma coisa, sem reserva de direito de admissão. Conceda-se, coisa pouco recomendável.

22.5.06

Das comédias românticas


O actor, compungido, olha para o firmamento. Interroga o destino. Interroga-o pelo desamor que teima em estar com ele. Algures, no mesmo momento, a actriz pena-se no sofrimento de um amor desencontrado. Vertem-se lágrimas furtivas, nos caminhos descompassados que trazem o desencontro ao amor. Lá mais para a frente, assim que o argumento se aproximar do final, um passe de magia há-de recompor os sentimentos. As duas almas hão-de afinar pelo mesmo diapasão. E se o passado foi feito de noites mal dormidas pelas chagas abertas no coração, por andar o Cupido desatento, há-de chegar o momento da reconciliação. De tudo com todos. Do argumentista para com a audiência, e entre os protagonistas da história. À saída do cinema, percebe-se que a história acabou como devia – um típico final feliz. A avaliar pelo ar de satisfação do público.

As comédias românticas não são o meu estilo preferido de cinema. Mas elas devem continuar a preencher as salas de cinema. Servem para manter a alienação do público, daquelas almas que não recebem a visita do amor, ou que andam desconsoladas pela ausência do romantismo de outrora. As comédias românticas são o sucedâneo necessário. Permitem “amar” por interposta pessoa. Preenchem o imaginário de desafortunadas donzelas, habituadas ao desamor ou aos desenganos provocados por filisteus garanhões que não cumprem ilusórias promessas de amor. As comédias românticas são o altar sagrado de uma mistificação. Da sagração do amor como ele é idealizado. De como se ensina aos incautos que amor é entrega descomprometida, como se fosse obrigatório perder o eu em nome da pessoa amada.

Se digo que as comédias românticas são um embuste – porque o amor não é aquilo que lá vem retratado – que não seja pretexto para uma interpretação errada: continuo a dizer que as comédias românticas devem existir. Eu, que aqui me confesso corrosivo crítico do género, também confesso que a espaços me apetece ver uma comédia romântica. É um exercício de oxigenação interior. Acontece mais quando ando em busca de reorientação. Ver uma comédia romântica ensina-me a antítese de amar. É propedêutico. Ser testemunha de juras de amor, que prometem a perenidade do amor, nem que a eternidade se consuma na voragem do momento. Ver a demissão do eu em nome do outro, como se fosse possível abdicar da personalidade com o fito de cativar os favores da pessoa amada.

As comédias românticas resvalam para o patético quando se entaramelam na lamechice. É quando nos tentam fazer passar a ideia de que “o amor é cego” – outro lugar comum pespegado, convocando a irracionalidade do sentimento, fazendo crer que somos capazes das coisas mais absurdas em prol do sentimento que tonifica a existência (ou será que a asfixia?). E digo: quando o amor é isto, é doença. Quando me dizem que “o amor é cego”, a irracionalidade da afirmação explica o desatino de quem vê nisto o amor. E quando as comédias românticas me trazem personagens que são capazes de abdicar de si mesmas pela pessoa amada, vejo nisso a perda de amor-próprio, como se fosse possível viver na figura da pessoa amada. Como se houvesse uma osmose, dos dois amantes emergisse um só corpo, um só espírito.

E apetece perguntar: o amor não é um acto de egoísmo? Para dar resposta, há que fugir da retórica das comédias românticas. Aí é tudo entrega, desprendimento, altruísmo, a vontade de tudo fazer para agradar à outra pessoa. Fora do casulo das comédias românticas, onde o sentimento é real, já amadurecido, não vivido com a ingenuidade própria da adolescência, não há um acto de egoísmo? Na escolha não há satisfação pessoal, critérios individuais em andamento, a consagração da plenitude do eu através do amor encontrado noutra pessoa? É uma partilha, dir-me-ão. E quando mo disserem, já estamos a caminho para destruir o mito das comédias românticas. Vou mais longe: uma partilha, decerto, onde cada um põe o que tem de bom para partilhar.
Quando há esta entrega, ela não é descomprometida. Procura algo em troca. O amor é como os mercados, uma mercantilização de afectos, em troca recíproca onde cada um dá algo de si porque em troca recebe algo que o recompensa. Neste exercício anti-lamechas do amor, o repto que fica: na troca, não sabemos que temos que pôr algo de nós para recebermos aquilo que buscamos? Isto não é entrega descomprometida. Não são as pétalas cor-de-rosa do amor idílico que só existe nas comédias românticas. E se me dizem que é possível o contrário, se me dizem que pode haver entrega total sem querer nada em troca, direi que isso é a antítese do amor. Será a cegueira – não do amor, mas de um desprendimento que leva à abdicação da pessoa.

19.5.06

Há sempre um “muro de Berlim” por erguer

Nos últimos dias, por várias vezes, o problema da imigração ilegal tem-se cruzado comigo. Em notícias de televisão, vendo o presidente dos Estados Unidos em declarações de uma dureza incompreensível. Numa carta anónima a um inquérito sobre imigração feito por um colega. Nas reacções absurdas à instalação de uma comunidade de imigrantes brasileiros para evitar a desertificação de Vila de Rei. Ou um português que foi preso pela polícia espanhola por transportar no seu barco imigrantes ilegais da África sub-sahariana, prestes a entrar em Espanha.

É convenção enraizada: o discurso xenófobo anti-imigrante é caucionado pela extrema-direita caceteira. É de lá que vêm as manifestações mais ruidosas contra a profusão de imigrantes. Só que o discurso xenófobo não é exclusivo da extrema-direita. De outros sectores chegam exibições mais discretas de repúdio pelo outro que decide vir tentar a sua sorte até nós. A diferença está no ruído dos protestos, mais notório na extrema-direita. Há que o assumir: vinga uma intolerância geral pelo outro.

Ontem tomei conhecimento de uma carta anónima que chegou à universidade em resposta a um inquérito sobre a imigração. O inquérito era do tipo fechado – perguntas que continham três ou quatro possibilidades de resposta. O covarde anónimo que decidiu escrever uma carta com uma dúzia de páginas dissertava a lógica mais bafienta acerca da imigração. Os clichés execráveis do costume: o mal do país está nos imigrantes que cá chegam, eles roubam empregos aos nossos concidadãos, são um foco de criminalidade, não manifestam vontade de se adaptarem aos usos nacionais. No fim da página um, quando li “Portugal para os portugueses”, decidi que já tinha a dose necessária para não voltar a folha, para não ler nada mais do que estava ali vomitado.

Horas mais tarde, notícia de os Estados Unidos vão construir um muro de seiscentos quilómetros que preenche a fronteira com o México. Rumsfeld advertia que o muro terá um patrulhamento intenso, que fará parte do treino de uns quaisquer militares. A imagem seguinte mostrava Bush Jr. num discurso empolado contra os imigrantes. Retive estas palavras: “aos que já cá estão, e que cá chegaram ilegalmente, têm que pagar multas, aprender a falar inglês, têm que mostrar que encontraram emprego, e dizer-lhes para irem para o fim da fila, para trás dos cidadãos americanos”. Trata-se de um país que foi construído pelos imigrantes vindos das mais variadas origens. É o mesmo país que abraça uma perseguição furiosa contra os imigrantes ilegais que já conseguiram entrar no território. O mesmo país que ergue um vergonhoso muro para estancar o fluxo diário de mexicanos que dão o salto para o eldorado que, tantas vezes, não passa de uma miragem.

Por cá, deu brado a ideia da presidente da câmara de Vila de Rei. Dando conta da progressiva desertificação do concelho, um misto de envelhecimento da população e de êxodo dos mais jovens para a grande Lisboa, apanhou o avião para o Brasil e encontrou, algures numa cidadezinha perdida no interior, algumas famílias dispostas a mudar de vida para Vila de Rei. Fez-lhes promessas de trabalho e deu-lhes habitação. A chegada das famílias brasileiras engalanou-se com o espectáculo do mediatismo.

Entretanto, lucubravam-se os que nada têm a ver com a realidade local de Vila de Rei mas se acham empossados da moralidade necessária para reprovar aquela imigração. As vozes nacionalistas condoeram-se. Denunciaram o ridículo de trazer brasileiros aos magotes para repovoação do interior que se desertifica a cada passo. Sentenciam a ameaça desta imigração maciça: qualquer dia já nem portugueses conseguimos ser, tal a osmose com tantos estrangeiros que por cá assentam vida, que há-de lançar as sementes de desidentificação de um povo. Retórica incompreensível. O que é preferível? Que desertificadas terras perdidas no interior vegetem lentamente, condenadas a uma agonia sem solução? Protestam os penhores da pureza da portugalidade: a cada imigrante que entra há um português na fila do desemprego. Gostaria que me respondessem: quantos portugueses, sobretudo dos que estão em desemprego há longo tempo, estariam dispostos a refazer a vida em Vila de Rei?

Há nesta xenofobia que cresce a olhos vistos uma retórica do esquecimento do passado. Quando éramos emigrantes, estávamos dispostos a fazer os trabalhos que os luxemburgueses, franceses, alemães e ingleses rejeitavam nas suas terras. Não nos caíam os parentes na lama. Agora que passamos de país emigrante para país imigrante, a acusação de que os imigrantes ficam com o emprego destinado aos nacionais. Esquecendo que os imigrantes fazem o que nós fazíamos quando éramos emigrantes: ficam com os empregos que restam, que agora não queremos fazer na nossa própria terra.

Perturba-me a sanha persecutória aos imigrantes, aqui como em qualquer sítio. É um definhamento mesquinho, uma intolerância para com o outro, uma reacção contra a possibilidade de pessoas pobres poderem melhorar a sua condição de vida na sociedade que somos. Um ensimesmamento egoísta. Anacrónico, quando tanto se disserta sobre a globalização de tudo e mais alguma coisa. Para os detractores da imigração, as pessoas devem ficar excluídas da globalização. Quando ouço que a fronteira entre o México e os Estados Unidos vai ficar separada por um intransponível muro de seiscentos quilómetros, pergunto-me se a vergonha do muro de Berlim serviu para alguma coisa. É curta a memória dos homens.

18.5.06

Inventamos as nossas doenças? (Título alternativo: ajuizar em causa própria)


Ouço a alusão de um especialista em saúde ocupacional a estudos que “provam” que as profissões com maior contacto com o público estão expostas a desgaste emocional e psicológico. Fornece os exemplos do pessoal que trabalha no sector da saúde e dos professores. Não consigo evitar um esgar: quem falava era, ao mesmo tempo, professor e profissional da saúde.

O primeiro pensamento que me ocorre é este: quem chega a estas conclusões não está a ajuizar em causa própria? Quem trabalha no sector da saúde tem um contacto muito próximo com os utentes. Mas está treinado para passar ao lado dos dramas pessoais, do sofrimento de quem recebe cuidados de saúde. Quem ensina está obrigado, pela natureza das funções, a lidar de perto com pessoas – os alunos. Há outras profissões que também lidam de perto com pessoas. Não há notícia, pelo menos nestes estudos científicos que “provam” os achaques psicológicos que se abatem sobre médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar médico e professores, que as mesmas mazelas tombem sobre as outras categorias que têm um contacto próximo e assíduo com pessoas.

Terá razão um professor quando reclama da “pressão” sentida ao longo de anos a fio de ensino? Assim como assim, um professor tem uma rica vida, vida de descanso…Fará sentido chamar um médico para avaliar o impacto psicológico do exercício da profissão de médico? Num como noutro caso, as conclusões são uma entorse da realidade. Há uma contrariedade que inquina o exercício: quando fazemos auto-análise, não nos conseguimos desprender da parcialidade. Mesmo que seja feito um esforço titânico para embelezar a análise com um manto de imparcialidade, mesmo que os investigadores estejam convencidos que actuaram com imparcialidade. Sem darem conta, há o estigma de estarem a apreciar algo em causa própria. O que perturba o rigor, enfim, a cientificidade das conclusões.

Ouvir um professor argumentar que a função de professor é das que tem maior desgaste emocional, deixa-me perplexo. E sou professor. Imagino o argumento escutado por quem não seja professor: adivinho o sorriso cínico a esboçar-se no canto da boca, um aceno de cabeça em tom de reprovação. Haverá outras profissões sem contacto com pessoas e que, pela sua dureza, têm elevado desgaste emocional. Até porque comparar a crueza das profissões sem atirar para cima da mesa a variável humana é uma abordagem parcial, uma generalização que prejudica a validade da conclusão. As pessoas variam muito na personalidade, na forma como reagem a adversidades. Dizer-se que ser professor é uma profissão de risco é englobar no mesmo barco todos os professores, como se todos tivessem problemas da mesma grandeza no contacto com os alunos. O mesmo se diga dos médicos. Quem nunca se deparou com um médico de coração empedernido, insensível à doença e ao sofrimento de uma pessoa que foi parar ao hospital? Uns reagem desta forma desumana: é uma defesa pessoal que os resguarda do sofrimento alheio; outros serão mais sensíveis, mostrando uma capa humanizada. Sofrem por igual?

Esta tendência para ajuizar em causa própria faz-me lembrar as doenças que parecem inventadas à medida de certas especialidades que são um fruto da modernidade (ainda não percebi se é a doença que arrepia caminho à especialidade, ou se é a especialidade que semeia a doença). Um exemplo: hoje é fácil depararmos com pessoas que estão com uma depressão. Tudo e mais alguma coisa é motivo para o afundamento numa depressão. Tenho a impressão que as pessoas que numa determinada fase mais complexa da vida se sentem cercadas pelo incómodo do mau estar, quando visitam médicos da especialidade saem do consultório ainda mais doentes.

Sou leigo na matéria, note-se. O tema (depressão) é estudado a fundo por especialistas. O que me causa espécie é haver tanta gente mergulhada em depressões, dependente de drogas anti-depressivas; e a proliferação de psiquiatras que não hesitam um segundo em diagnosticar depressões ou maleitas afins. Quantas vezes exercitar a mente não bastava para dar a volta aos problemas? Um diagnóstico lapidar – “a senhora tem depressão”, enquanto vai gatafunhando a receita com o cocktail de drogas – não é meio caminho para afundar ainda mais aquela pessoa num estado, esse sim, depressivo?

Esta classe ajuíza em causa própria. Adivinhe-se o caos para a classe se, de repente, a saúde psíquica da população passasse a ser invejável. O que passariam os especialistas dos males da mente a fazer? Escondiam a pujante sanidade mental das pessoas?

17.5.06

Quando o direito ao bom nome tresanda a censura encapotada: Margarida Rebelo Pinto e o livro “Couves e alforrecas”

Margarida Rebelo Pinto não caiu no goto dos críticos literários afamados. E, no entanto, é um dos nomes com mais cartel no mercado livreiro. Um caso típico de desfasamento entre a putativa influência dos críticos literários e a audiência. Esta não se deixa seduzir pela crítica especializada. Em vez disso, o povo que se quer literato entrega-se no regaço da chamada “literatura light”. Um produto das revistas cor-de-rosa, que até escritores repescados do jet set consegue fabricar.

Nunca li os livros da autora. As poucas experiências que tive com a sua escrita foram crónicas de página inteira no Jornal de Notícias. Li um punhado delas, só para “saborear” o travo da escrita da autora que começava a fazer tanto furor no mercado editorial. Para apreciar o fenómeno e ter uma aproximada ideia da sua escrita. Meia dúzia de crónicas foram suficientes. Para sequer continuar a ler as crónicas que semanalmente dava à estampa naquele jornal, muito menos para gastar o meu precioso dinheiro na profusa obra que a autora vem lançando.

Há semanas foi publicado um livro – “Couves e alforrecas” – que pretende desmistificar Margarida Rebelo Pinto como autora de sucesso. O autor, João Pedro George, meteu ombros a uma obra homérica: devorar a “obra” completa de Margarida Rebelo Pinto. Dissecou-a como um patologista trata um cadáver numa autópsia. E descobriu que a autora faz plágio a si mesma. Em “Couves e alforrecas”, George denuncia Margarida Rebelo Pinto como um embuste. Fazer plágio de outrem é crime punido por lei. Quando alguém se auto-plagia comete a desonestidade intelectual de enganar os leitores. Estes, por distracção, ou por memória curta, ou por terríveis incapacidades hermenêuticas, compram e compram e compram cada livro assinado pela autora e não detectam nada. O diagnóstico é pouco simpático para a turba de admiradores da autora “pop”: ignorância, ou gosto pelo repetitivo.

Margarida Rebelo Pinto enfureceu-se quando soube que alguém se aprestava a publicar um livro que a acusava de auto-plágio. Reagiu com vigor: através de providência cautelar, tentou impedir a publicação do livro de João Pedro George. Invocou ofensas ao bom nome. E alegou que com “Couves e alforrecas”, George estava na senda do sucesso editorial à custa do seu nome de autora. Por outras palavras, acusou George de ser um parasita que queria chegar aos píncaros do sucesso editorial usando o nome da conceituada autora. Pelo caminho, argumentou que o seu nome artístico é uma marca. Como George não tinha pedido autorização para utilizar a “marca”, o livro estava preenchido de ilegalidades por todos os lados.

Percebe-se a reacção desabrida de Margarida Rebelo Pinto. Pisaram-lhe o calo e ela doeu-se. A ser verdadeira a tese de George, Margarida Rebelo Pinto é uma falsária. Um caso de locupletamento autoral. Se é verdade o que George mostra no seu livro, Margarida Rebelo Pinto não tem direito a sentir-se ofendida. Ela devia sentar-se no banco dos réus por ter defraudado todas as pessoas – e são muitas – que compraram os seus livros. E é patético alegar que o nome artístico “Margarida Rebelo Pinto” é uma marca. As marcas são coisas, um nome artístico pertence a uma pessoa. Não se imaginava que a autora, por portas travessas, se coisificasse a si mesma.

Há aqui uma tentativa de exercício de censura. Se George consegue provar, de forma articulada e sem resvalar para a ofensa pessoal, que a autora se auto-plagiou consecutivamente, não há motivos para ela se sentir ofendida. As pessoas não se podem ofender com a verdade. A reacção agreste, ao tentar censurar pela via judicial a publicação de um livro que não é simpático para o seu nome, é isso mesmo – censura e nada mais. E quando já estávamos acostumados a viver sem a censura institucionalizada do Estado Novo, temos esta erupção de censura individual. Pela parte que me toca, se nenhuma simpatia existia em relação a Margarida Rebelo Pinto, a coisa entra agora no plano dos odiozinhos de estimação.

E, no entanto, há algo de estranho em todas estas manobras. Suspeito que, no rescaldo da polémica, Margarida Rebelo Pinto aumente as suas vendas. O povinho português adora praticar comiseração com as vítimas de males execráveis. Margarida Rebelo Pinto há-de aparecer como a vítima, perseguida por alguém que engrossa as fileiras da elite intelectual – esses abjectos seres que deploram o povo, que se alcandoram ao altar de superioridade moral, tão distantes do povo rasteiro, tão intocáveis. Margarida Rebelo Pinto empreende a saga da coitadinha. Irá recolher os frutos dessa estratégia. Terá João Pedro George feito um favor à autora light?

16.5.06

Obra colectiva

Tinha parado na fila para o semáforo, diante de um infantário. Os olhos desviaram-se para a direita, para as cores garridas que debruavam a parede do infantário. Era um quadro grande, com pinceladas esparsas. O contributo das crianças de três, quatro e cinco anos do infantário – a mensagem encimava a tela. Lamentei não trazer a máquina fotográfica para guardar a imagem do quadro.

Nos instantes que estive ali parado, os olhos passearam-se pela tela das cores garridas. Pelo tamanho do quadro, diria que emoldurava as impressões digitais de mais de vinte crianças. A obra colectiva no aprumo do esforço individual. O acervo de personalidades que se formam, as maneiras diferentes de retratar o imperceptível que lhes percorre a mente. Uns escolheram o vermelho vivo, esgravataram pinceladas sem nexo. Outros quiseram pintar em tons de azul mais calmo. Houve alguns que optaram pelo amarelo, em pinceladas revolvidas. Os verdes também marcavam presença na policromia da tela. Nuns casos, pinceladas redondas, com aprumo. Noutros, pinceladas desorganizadas, rebeldes. Tudo junto, numa federação de vontades individuais tão diferentes. A tela era a casa onde todos eles, diferentes, se mostravam irmanados numa causa comum.

A imagem povoou largos momentos do dia. Os pormenores da tela iam-se perdendo à medida que me tentava lembrar dela. Tinham sido uns escassos momentos a observá-la. A imagem da obra comum exposta aos transeuntes era a mensagem sublime do infantário para o mundo dos adultos. Uma lição para os adultos que fazem de divergências irremissíveis desavenças. Lançando a rede da especulação, a adivinhação de que havia ali meninos de outras nacionalidades, para perceber como há coisas tão mais importantes do que o bilhete de identidade que revela o país de onde somos. No infantário mais próximo, caso fosse mostrada tela com as pinceladas das crianças que lá habitam, a policromia seria diferente, as formas seriam diferentes. Não é preciso pular a fronteira para descobrir matizes diferentes nas obras colectivas legadas pelos infantários espalhados pelo mundo. A diversidade está nas diferenças entre duas crianças, mesmo que vivam porta com porta.

Naquela tela, onde uma embriaguez de cores e desenhos disformes falava bem alto, estavam universos pessoais tão díspares. Influências que já se notam, nos genes como na educação que vai sendo assimilada. O que me despertou a curiosidade foi esboçar outro exercício de adivinhação: tentar saber como seria a tela pintada pelas mesmas crianças daqui a cinco anos, daqui a quinze anos, daqui a trinta anos. E colocar os quatro quadros lado a lado, em sequência cronológica, sem identificação pessoal dos artistas que contribuíram para a obra colectiva. Só para perceber como evoluem as cores e as formas, o que é retratado ao longo da evolução que os encaminha para o amadurecimento. Quem sabe, para observar o escurecimento das cores, o entristecimento das formas, nuns casos o lugar para mais espaços vazios, noutros casos o preenchimento do espaço com traços vigorosos mas enegrecidos pelas vicissitudes da vida.

Aquela vintena de crianças é penhor do seu futuro. Por um momento, comovido pela tela que se oferecia diante dos meus olhos, apeteceu-me ter o dom da ubiquidade para acompanhar o crescimento daquela vintena de crianças. Perceber os caminhos gizados, alegrias recebidas, tristezas calcorreadas. Para saber como crescem. E depois desafiá-las para repetirem o esboço da obra em comum. Só para ver até que ponto crescem em uníssono, ou se as veredas diferentes por onde andam as levam a dobrar esquinas que se opõem nas recompensas que trazem. Seria apenas um vigilante não interventivo, um curador sem acção no percurso destas crianças. Para, daqui a uns anos, elas voltarem a expor a sua obra colectiva, serem as testemunhas do passado que assimilaram.

É pena que as crianças cresçam. Que se façam adultos. Que percam a ingenuidade de quem não percebe a perfídia do mundo das pessoas que cativam responsabilidade para decidir irresponsáveis coisas.

15.5.06

Arrivismo social

Por vezes intrigo-me como as revistas cor-de-rosa têm tanto sucesso. Interrogo-me: qual o interesse de notícias sobre os aspectos mais mundanos da vida de personagens que, no momento, irromperam no estrelato social? Quais os mistérios que conduzem a curiosidade pela vida alheia? Como se fosse tão importante saber que fulano, recém-casado com sicrana, teve uma lua-de-mel deslumbrante num local paradisíaco. Ou que um actor de telenovela tropeçou ao sair do centro comercial e a indiscreta câmara fotográfica lá estava, em cima do acontecimento, no registo para a posteridade.

A estranheza com o fenómeno das revistas cor-de-rosa desfaz-se quando, olhando em redor, se percebe como aspirantes à popularidade social se põem em bicos de pés. Desdobram-se em atenções oportunistas, estendem a passadeira vermelha aos contactos certos no momento certo. Sabem que essa é a condição para franquearem os portões do estrelato. Quando vêm do nada e ascendem ao cintilante néon social, o expoente máximo que cativa a atenção de uma turba de aspirantes que, no seu íntimo, congemina a mesma escalada. As revistas cor-de-rosa resumem-se a isto: alimentar sonhos de ascensão social, aspirações de reconhecimento público pela imagem. Podem ser personagens imersas na mais completa das vacuidades. Isso não interessa.

Contaram-me pormenores deliciosos de uma personagem que é o exemplo acabado deste arrivismo social. Com a agravante de vegetar no limbo do arrivismo social há duas décadas. Tem uma aura de figura sebastiânica, alimentada por conveniências políticas. É uma espécie de prometida figura salvífica, aquele que esconde em si uma varinha mágica capaz de mudar o rumo dos acontecimentos, para retirar a economia da letargia em que se encontra há tanto tempo. Nem interessa que já tenha sido ministro das finanças: aliás, a aura que teimam em colar-lhe (uma certa imprensa estranhamente enfeitiçada pela figura; e certos figurões que o colocaram no altar dos senadores da nação) explica-se pela imagem que auto-cultiva – um excelente ministro das finanças, ainda que a biografia se esqueça de revelar a sorte de o ter sido quando os ventos da economia sopravam bonançosos.

Saiu da política envolvido num escândalo de vícios privados, ou de como os arrivistas sociais querem ir ao pote de uma vez só. No tempo em que aproveitou as benesses da sinecura, ficou conhecido pela ostentação social que ele e a consorte espalharam pela Lisboa que lhes era estranha. Desembarcados do norte, no afã de pulularem na nata social lisboeta, entregaram-se a tiques parolos. Pesporrência e arrogância a rodos. Misturada com um ar blasé, a imagem de uma sofisticação inalcançável.

O tirocínio político foi curto. Encostado à parede pelo escândalo denunciado por um jornal, a demissão era inevitável. Um rude golpe que ainda hoje não perdoou ao primeiro-ministro que o escolheu. Consta que este é outro dos predicados da personagem: cuspir constantemente na sopa que lhe deram a comer. Tem o desplante de acusar o tal primeiro-ministro de ser o “pai do monstro” – como se ele não tivesse sido ministro das finanças de um dos governos que concebeu esse monstro. Mais tarde aceitou um lugar de relevo num banco e desdenhava publicamente de quem lhe ofereceu a prebenda.

De regresso ao norte natal, vinha de peito cheio. O estágio em Lisboa dera-lhe arcaboiço social que o distinguia entre os pacóvios nortenhos que cerziam a passadeira social local. Ter sido governante era o lastro necessário para o relevo entre os demais inúteis que gravitam nesta feira de vaidades. Foi cimentando o seu lugar entre os patriarcas do alegado jet set da paróquia. Ao que acrescentou o lugar, que foi pacientemente edificando, de reserva moral da nação, sempre pronto a perorar com eloquência do Porto vigilante.

Hoje, contam-me, afastado de sinecuras, dedica-se a atrair o socialite nortenho a um restaurante que o filho abriu. Aos sábados ao jantar, ele e a pindérica consorte sentam-se numa mesa central do restaurante e distribuem acenos de cabeça, sorrisos e cumprimentos discretos pela clientela que experimenta o restaurante. O mundo tem destas coisas: de como prometida figura sebastiânica, afastada dos palcos que esteve habituado a frequentar, se dedica a promover a imagem do restaurante do filho. Não há surpresa nisto: ontem como hoje, só soube cultivar a imagem. Nada mais do que a imagem. A turba de seguidores, os aspirantes a algum dia serem algo de parecido com o que esta avestruz conseguiu ser, contenta-se com os pozinhos mágicos aspergidos pelo culto da imagem. Sabe-lhes bem o repasto, por terem como aperitivo um cumprimento afável de tão importante personagem.

Nestas alturas apetece-me ser comunista.

12.5.06

Duas notas finais sobre a questão do nacionalismo (em jeito de réplica)

Numa manifestação bem encenada, os produtores de leite assentam arraiais na Avenida dos Aliados. Protestam contra a imposição de quotas à produção. Habituados à generosidade da política agrícola europeia (o cancro da União Europeia), sabiam que podiam produzir o que quisessem sem perderem os prémios de produção. Daí aos “lagos de leite” e “montanhas de manteiga” – vocábulos que entraram na gíria como sinónimos dos excedentes do sector.

Os produtores de leite endereçam as culpas para o governo. Que não soube defender os interesses dos agricultores nacionais. Como se o governo de um país insignificante como Portugal pudesse impor a sua vontade aos demais parceiros da União Europeia, sobretudo aos mais poderosos. Não lhes interessam as considerações geopolíticas. Ou por ignorância ou por oportunismo, é uma variável que lhes escapa. Apenas querem passar para o público a imagem de que são prejudicados, que as quotas de produção trazem a penúria. A cereja em cima do bolo é a dimensão afectiva do protesto. Encenam a distribuição gratuita de leite à populaça que passa pelo local e que, “a cavalo dado não se olha o dente”, embolsa uns litros de leite agradecendo a ocasional generosidade. A encenação atinge o zénite com uma mensagem disparada em direcção do lacrimejante coração de cada lusitano: eles protestam porque se sentem prejudicados e, soam as trompetas, porque são os “interesses nacionais” que estão em causa.

O interesse nacional é uma vaca sagrada que mobiliza audiências num coro que grita, em uníssono, o fervor nacionalista. Em homenagem ao interesse nacional, falam mais alto as vozes emocionadas que perdem o fio à meada da racionalidade. E, quantas vezes, invocar o “interesse nacional” não passa de um embuste para mascarar a ausente razão dos que se fazem passar por advogados do tal “interesse nacional”. Quando, mesmo à superfície, é visível a confusão entre o “interesse nacional” e o interesse particular.

Mas o rótulo pega. Quem emprega a mágica expressão “interesse nacional” está no bom caminho para ver as suas reivindicações satisfeitas. Ou, na pior das hipóteses, sentir-se reconfortado por saber que a turba patriótica se aliou à causa. A turba não percebe que dispara um tiro no pé ao escancarar o coração aos oportunistas que se aproveitam do “interesse nacional” para arregimentar fidelidades. Quando os produtores de leite reclamam contra as quotas que os obrigam a entrar nos eixos da racionalidade produtiva, querem manter privilégios suportados pelos consumidores. Estes têm sido os financiadores dos produtores de leite. Com uma factura que lhes passa despercebida: pagam o leite a um preço elevado.

Era bom que alguém interpelasse os produtores de leite. Pedindo-lhes para explicarem como é que a defesa dos seus interesses coincide com o “interesse nacional”. Como é que o sacrifício de alguns milhões de consumidores, forçados a pagar leite mais caro, é aceitável como meio de manter uns milhares de produtores? Será o desencontro entre os interesses da larga maioria e da minoria bafejada pelos privilégios espelho do “interesse nacional”, ou apenas do interesse particular de quem produz leite? Atender os interesses da minoria corresponde aos parâmetros democráticos (governo da maioria para a maioria, é bom recordá-lo)? Os ingénuos que se deixam levar no engodo do putativo interesse nacional deviam olhar para as moedas de euro que tilintam na sua carteira. E perceber que o interesse nacional não coincide com o bem-estar da maioria da população. Esse bem-estar é sacrificado para satisfazer caprichos de uma minoria bem instalada na vida à custa dos subsídios endossados para a larga maioria.

Mudança de cenário. Há dias, numa aula, provocava os alunos com o exemplo da Lear – uma fábrica de cablagens que está, aos poucos, a desmantelar as fábricas em Portugal. Argumentava que não me causa espécie a deslocalização. Não tanto pelos interesses da empresa norte-americana, que tem o direito de investir os seus capitais onde considera que as condições lhe são mais favoráveis. (É patético ver sindicalistas, como se ainda vivessem no século XIX, a exigir do governo uma “intervenção” para obrigar a empresa a manter-se no país…) A mudança da empresa é virtuosa porque vai para a Roménia, onde a pobreza é maior do que em Portugal. Vai para a Roménia criar postos de trabalho – e, sei-o bem, em busca de lucros maiores. É um importante contributo para o aumento de bem-estar da população romena.

Podem-me dizer que o “interesse nacional” não se compadece com as necessidades de criação de riqueza na Roménia ou em qualquer outro país. Mas quando tanto se fala nos imperativos de consciência social, devem eles cingir-se ao espartilho das fronteiras nacionais? A consciência social não tem uma dimensão internacional? Zelar pela diminuição da pobreza em locais recônditos não é um imperativo da humanidade? E, já agora, este imperativo de consciência, que cobre a humanidade com uma dimensão universal, não se deve sobrepor à tacanhez do risível “interesse nacional”?

Gostamos do nosso umbigo. Enaltecemos a pertença e deixamo-nos conduzir por um ilusório devir colectivo. Tenho para mim que ser português – argentino, senegalês, ou indiano – é apenas um acidente geográfico. Podíamos ter nascido croatas, belgas, mexicanos ou iranianos. O nacionalismo, apenas mais uma forma de religiosidade que aliena o indivíduo.

11.5.06

Os riscos de uma vida asséptica


Quando um médico dispara o interrogatório clínico, pouco falta para arrebatar o campeonato das virtudes. Nada de tabaco, drogas, doenças, agora nem sequer consumo de bebidas alcoólicas. Faço muito exercício físico. Não tenho inestéticas adiposidades a adejar o corpo. Concedo, podia a alimentação ser melhor – se engrossar o coro dos que ensinam que cozidos e grelhados, legumes abundantes e pouca carne vermelha, são ingredientes de uma alimentação saudável. Descontando o ligeiro deslize alimentar, levo vida regrada.

E, no entanto, não sinto que seja motivo para me gabar. Todas as opções de vida são conscientes. Nunca fumei, nunca experimentei o alucinante mundo dos estupefacientes, agora até sou abstémio. Nunca foram opções determinadas pelo exterior. Sempre respostas instintivas quando era colocado perante a opção de fumar, de embarcar com amigos e vizinhos na espiral das drogas, agora até de não beber álcool. Nunca impus sacrifícios para não fumar, para não me drogar. Já tenho mais dificuldade em levar uma alimentação equilibrada, porque as demoníacas tentações da gula estão à espreita. É difícil resistir-lhes. A mais recente “virtude” é a abstémia alcoólica. E vale a pena tanta virtude junta, tanta vida regrada, se acaso a disciplinada forma de viver se aproxima de uma asséptica vida?

Os prazeres da vida têm preços proibitivos. Os fumadores compulsivos arriscam-se a morrer pela nicotina que envenena os pulmões. Os bebedores afamados prestam contas às cirroses que destroem o fígado. Os amantes da boa mesa, de petiscos descuidados com carradas de gordura poli-saturada, debatem-se com o colesterol, sentem a ameaça de ataques cardíacos ou tromboses que, quando não ceifam a vida, findam o bem-estar que ela merece. As drogas diversas causam a dependência consabida. E pergunto-me se, afinal, todos os casos não serão drogas.

Quando vejo tantas doenças que minam a saúde pública e detecto a relação causal entre estes vícios privados e as maleitas que se deitam nas pessoas, meio caminho andado para um amante da vida se entregar no desvelo da vida regrada. Emerge um dilema, porém: o prolongamento da vida merece o preço a pagar pela vida asséptica que anda de braço dado com a vida regrada? Abdicamos desses prazeres e entramos num deserto dos sentidos, numa redução do bem-estar pessoal que tabaco, drogas, álcool, gastronomia significam? Onde pára o fiel da balança: viver pouco e muito, intensamente, retirando cada grama incomensurável dos prazeres proibidos pelos guardiães da saúde pública? Ou deixar a “boa consciência falar”, entrar na espiral da moderada forma de viver, esticar a vida até mais tarde, ainda que ela perca o sal e a pimenta que a condimentam?

O dilema cresce quando a reflexão parte de um agnóstico, para quem a vida se consome com a passagem pela dimensão terrena. A angústia da morte é um convite à limpeza dos “maus hábitos”, o escadote para o lado de lá da margem, onde está à espera a promessa de vida longa e desencontrada de enfermidades. Haverá para os agnósticos militantes um sucedâneo de deus, o estigma da vida regrada que extingue as tentações que levam ao definhamento?

Debruço-me nestes dilemas, agora que decidi deixar de beber – e não que a bebida fosse companhia assídua, que apenas me visitava em ocasiões solenes, em jantares opíparos, ou na cerveja de Verão que ajuda a refrescar o corpo do calor sentido. Depois de dar este passo, olhei para trás e parei no apeadeiro da reflexão. Dei comigo um passo mais adiante na “purificação de hábitos”. Para alguns, um exemplo invejável – sem tabaco, drogas, álcool, com muito exercício físico, vá lá, com uma alimentação a melhorar. Não me orgulho do “feito”. De repente, apetece voltar atrás com a palavra firmada com a consciência. Regressar à cerveja que acompanha um dia de calor, ao vinho tinto companhia ideal de um manjar de deleites. Sinto-me dividido. Temo entrar no albergue da vida asséptica, longe dos prazeres dos sabores, longe do júbilo e do desembaraço esfusiante que vem com a etilização.

De momento, é mais forte o lado da recusa. Vinga a rejeição do mau estar que chega depois do álcool – se ele chega ao sangue em quantidades que proíbem deitar ao volante. Será esta a espontaneidade que me conduziu à abstémia? Será espontaneidade, de todo? Acaso seja o instinto a falar mais alto, há lugar à perplexidade se sentir que me aproximo de uma vida asséptica? Para o bem-estar só contam estes prazeres que se materializam? Não há outras fugas que compensem a expurgação de “maus hábitos”?

10.5.06

“São novos, não pensam…”

…sentencia o povo, sempre sapiente no que se convencionou chamar “sabedoria popular” (a negação do seu próprio postulado: “sabedoria” e “popular” são antinómicas palavras). O povo amadurecido, carnes curtidas pelo cansaço da vida, olha para os imberbes foliões e condescende: a juventude tolda o discernimento. Daí o lapidar “são jovens, não pensam”.

Vem isto a propósito da semana da queima das fitas que está a decorrer. Pela manhã, enquanto faço jogging no Parque da Cidade, sinto o perfume da queima das fitas. O recinto está paredes-meias com o Parque da Cidade. Quando lá chego, a festa está no rescaldo. Cruzo-me com os últimos resistentes, que calcorreiam os caminhos do parque a passo lento, alguns cambaleando com a ajuda etílica acumulada durante a noite. Olham para mim como se fosse o extra-terrestre. Um lunático que corre àquela hora, acompanhado pelo canídeo, fomenta a estranheza. Tenho a impressão que alguns, os mais embriagados, se interrogam se o que vêm não é uma miragem alimentada pelo álcool.

É fácil aos que já dobraram alguma idade, e que tiveram no calendário o seu tempo de folia, apontar o dedo aos foliões que exaurem energias ao longo de uma louca semana de festejos académicos. Esquecem-se que outrora foi a sua vez de arrastar o corpo pelas tropelias tão próprias da idade. Haverá excessos, lamentáveis como todos os excessos que colocam os fautores no limiar da demência. Lembro-me, ainda estudante, de histórias narradas nos jornais que me causavam uma profunda revolta: de como uns energúmenos eram assaltados por instintos mórbidos e degolavam os cisnes do Palácio de Cristal. Desvarios deste calibre serão excepções no imenso mar de festejos.

As pitonisas da moralidade e da decência insurgem-se contra o elevado consumo de álcool durante a queima das fitas. Aliás, é pretexto para os viúvos do capitalismo denunciarem a alienação das almas estudantis, que se entregam aos deleites do sumo de cevada para agrado da caixa registadora que contabiliza os lucros das empresas cervejeiras. Uns e outros, aposto, não consomem cerveja. É o que se adivinha, pela firmeza com que deploram os incontáveis barris de cerveja que, é inevitável, acabam por desaguar num mictório (ou goela fora, no regurgitamento dos compulsivos bebedores). Apraz-me ver estes arautos dos comportamentos aceitáveis, dedo erguido, acenando a cabeça com o ar de reprovação esboçado por professores no ralhete às criancinhas impertinentes. Olhassem para o seu umbigo, para logo perderem as carradas de razão moralista de quem se dizem penhores.

Os estudantes merecem esta semana de folia excessiva. Dentro de poucas semanas entram na clausura dos exames. A queima das fitas é um paradoxal estágio para o tormento que se avizinha. O stress do estudo às três pancadas, a incerteza com que saem de uma sala de exame, a angústia que os vai acometer de cada vez que se acercarem de uma pauta de exame. Os críticos das celebrações estudantis queriam uma horda de alunos bem comportados, fechados num castelo rodeado de livros, como se estivessem prometidos a um sacerdócio que renega a folia nocturna. Congeminar este protótipo de estudante é embrutecer ainda mais um tristonho povo. Nas poucas vezes que um grupo de pessoas traz para a rua a febril fobia pela pândega, logo surgem os zurzidores profissionais que gostariam de reprimir a libertação dos espíritos. Depois admiram-se quando insuspeitos observadores (estrangeiros, por norma) estranham como somos tão diferentes dos outros povos latinos – mais enfadonhos, nostálgicos, emudecidos na libertação da nossa espontaneidade.

São eles que olham para o corrupio de ambulâncias a zunir sirenes como prova da degradação dos festejos. Sentenciam os comas alcoólicos: jovens excessivos sem noção dos limites, passam a fronteira do que o organismo aguenta, têm como destino uma maca do hospital enquanto o álcool não se evapora. Eles, que nunca apanharam uma bebedeira de caixão à cova, para poderem pairar sobre os estudantes que querem beber cerveja até não aguentarem mais. Chamem-lhe alienação, chamem-lhe o que quiserem. Alguém pode censurar os outros pelas tristes figuras a que se entregam? Mesmo que os censuradores, ciosos da “boa ordem social” (coisa tão importante…), tenham uma vida asséptica e sejam paradigmas do “comportamento exemplar”.

Prefiro a vida desregrada destes espontâneos que acordam todos os dias desta semana de festejos com uma terrível cefaleia. Prefiro ver as inocentes raparigas, desabituadas a bebidas alcoólicas, a perderem o juízo com os primeiros vapores etílicos. Prefiro-os a todos, instintivos, do que os amordaçados detentores da superioridade moral. Quem o diz é alguém que teve os seus descaminhos pontuais enquanto estudante, não alguém que se entregou de corpo e alma a uma semana intensa de festejos.

9.5.06

Optimismo europeísta

No dia da Europa, faz sentido (a quem é convictamente europeísta) dar o seu testemunho do optimismo na construção europeia. Até para, em continuação do texto de ontem, onde (mais uma vez) ficou patente a descrença nacional do autor, não ficar a imagem de um niilista sem redenção. Que é como quem diz: desmotivado português, entusiasmado europeu. Por uma vez, palavras construtivas por aqui.

É redundante lembrar como a construção europeia foi um legado inestimável para as gerações futuras. A Europa estava a sarar as feridas de duas sangrentas guerras mundiais. O mostruário da estupidez humana em toda a sua potência. A ilusão do nacionalismo, de como as arreigadas convicções patrióticas levam os povos ao abismo. Esses conflitos mostraram, acaso ainda fosse necessário numa era tributária da “modernidade”, que a entrega de vidas humanas no altar de valores tão incertos como a defesa do país era um absurdo.

Milhões de mortos depois, tanta terra queimada pelas bombas que consumiram espuriamente recursos económicos, os líderes dos principais países europeus compreenderam que tinha chegado o momento de mudar de vida. Abria-se o caminho a um futuro em conjunto, uma soberania que ia ser partilhada entre todos. E todos sentiram a necessidade de encontrar soluções conjuntas para os problemas que sentiam. Os países soltavam-se das fronteiras, das amarras pútridas do nacionalismo. Entrava-se na “pós-modernidade”, o supranacional a ganhar terreno ao nacional.

Há muitas maneiras de encarar a construção europeia. Há os que a renegam, saudosistas do umbiguismo nacional, como se ainda fosse possível cada país viver mergulhado no isolamento. Ou os que a renegam por desavenças ideológicas, porque a União Europeia foi traçando opções que se encontram nos antípodas das escolhas ideológicas destes sectores. Depois há os cépticos: condescendem com a construção europeia, mas temem que venha a nascer algo parecido com os Estados Unidos da Europa, o aniquilamento dos Estados-nação, uma esponja sobre o passado comum cimentado em séculos de história a ferro e fogo, muito sangue derramado. Há os realistas, para quem a União Europeia é um processo onde os Estados são os protagonistas (porque as grandes decisões exigem o seu consentimento), reconhecendo que o tempo trouxe evoluções que diminuíram a margem de manobra dos países. No fim da escala, os “euro-entusiastas” e os “eurofilos”. Distingue-os o tipo de compromisso à construção europeia. Os primeiros concordam com todos os passos dados pela União, professando uma crença inabalável em todas as decisões tomadas. Os segundos acusam a União de pecar por defeito, de falta de ambição. Gostariam de ver a União assemelhar-se a um super Estado, uma federação com forte centralização de poderes.

Onde me situo? Algures entre os euro-entusiastas e os eurofilos. Não partilho do entusiasmo militante dos devotos da construção europeia. Há avanços que aplaudo, outros que significam uma deriva social-democrata desnecessária. Retrocessos que ilustram a falta de coragem dos Estados, sequiosos do poder que temem perder para uma União na qual a sua mão controladora vai perdendo eficácia. Não sou eurofilo. Recuso ver a União transformada num super-Estado europeu. Os eurofilos desejam replicar na União o modelo do Estado que está em avançada decadência. Ignoram que o poder pode ser exercido de outras formas, que não apenas a tradicional soberania estadual.

Há opções que tomamos que são o produto de um oportunismo estratégico. (Sem que a palavra “oportunismo” assuma aqui a conotação negativa que costuma ter.) Estando a meio caminho entre os euro-entusiastas e os eurofilos, admito que a construção europeia é um instrumento para a diminuição de importância da nacionalidade (no que me interessa, da nacionalidade portuguesa). Duas são as motivações: o anarquismo ideológico que me influencia; e a descrença na qualidade dos políticos nacionais para levar a nau por boas águas.

Para um anarquista, menos Estado é uma excelente notícia. Interpreto a construção europeia como um caminho que enfraquece os Estados sem representar, ao mesmo tempo, um correspondente engordar da União. Aqui não há um jogo de soma zero: o que é perdido pelos Estados não é sinónimo de conquista de poderes pela União. Aprofundar a construção da União Europeia emagrece os Estados – o que me basta para ser adepto da construção europeia. Por outro lado, a soberania partilhada implica que menos sejam os assuntos decididos a sós pela casta de políticos nacionais. É sintoma do avanço de que somos testemunhas. Se continuássemos entregues aos devaneios e incompetências dos políticos domésticos, acaso teríamos inflação onde está, ou taxas de juro tão favoráveis? O bom da União Europeia é que amarra as mãos e os pés das autoridades de Lisboa (e dos outros Estados, mas com isso não me importo – não é aí que vivo). O belo da construção europeia é a sua natureza transnacional. Muitas pessoas nem percebem que são governadas, cada vez mais, de fora para dentro (da União para Portugal). O que faz dos políticos nacionais meros verbos de encher.

A União Europeia foi o golpe fatal (e final) no sebastianismo que, como peça da idiossincrasia nacional, nos mergulha na nostalgia e afocinha numa esperança nebulosa que está para vir mas nunca mais chega. Se soubermos mudar a agulha, se soubermos ser optimistas europeus e enterrar os laivos de sebastianismo que ainda perduram, quem sabe se ainda temos futuro. Há quem veja nisto uma manifestação pós-moderna de lealdade política, não apenas jurada ao país onde se arregimentou nacionalidade. Chamam-lhe um “patriotismo europeu”. A palavra “patriotismo” causa-me comichão. Prefiro falar do “optimismo europeísta”.

Há uma grande dose de oportunismo nesta visão pessoal da construção europeia. Sou adepto da União Europeia porque continuar a construir o edifício da União representa o emagrecimento de Portugal. Nisso, concedo, perdura uma linha niilista.

8.5.06

O iberista crucificado


Há dias desabou o Carmo e a Trindade quando um ministro foi a Santiago de Compostela confessar o seu iberismo. Os nomes nos bois: Mário Lino, ministro das obras públicas da república portuguesa, pôs a dita república em estado de choque quando disse, pela primeira vez em público, que gostaria de ver a Península Ibérica coincidir com um só país. Soa a penitência descarregada na Catedral do Botafumeiro, como se a purificação da alma iberista só fosse possível em terras espanholas.

Foi grande o burburinho entre as lusitanas almas perturbadas pelo crime de lesa-majestade do ministro. Sem ponta de piedade, apedrejaram o ministro em público. Não lhe perdoam a heresia. Se já fica mal a qualquer cidadão com bilhete de identidade português mostrar a sua simpatia pela causa iberista, a diagnose piora quando um governante o faz. Argumentam que um ministro pode pensar certas coisas com os seus botões, depositar essas confissões na quietude do travesseiro, ou na intimidade do matrimónio. Pode-as pensar, nunca dizê-las em público. Eu acrescentaria, para adensar a vaga já gigantesca de lapidação pública do ministro: o homem jurou solenemente, na tomada de posse como ministro, respeitar certos deveres que a declaração pública em Santiago de Compostela veio negar. Aqui há lugar ao estafado diagnóstico: “se fôssemos um país normal” (que, como é sabido, não somos), a demissão estaria à espera do ministro no regresso à pátria renegada.

Muito me custa defender o ministro. Primeiro, porque as alergias se reanimam só de pensar que, por um momento, tenho que dar razão a um ministro socialista (ou comunista reciclado, que a diferença não é de monta). Segundo, Lino é o ministro mais perigoso deste governo. O mentor de elefantes brancos como o aeroporto da Ota e o TGV, que nos vão custar os olhos da cara. Terei que deixar a incomodidade de lado, perplexo pelo coro de virgens ofendidas que protestam bem alto contra a heresia do ministro. Pergunto-me: então não é verdade que cultivamos a liberdade de expressão? Podemos condicionar o direito à opinião de um homem porque ele ocupa uma pasta ministerial? Acaso um ministro, por o ser, carrega a cruz da diminuição da liberdade de expressão?

Há mais interrogações a colocar: ser iberista é demoníaco? É conspirativo? Os que defendem uma união ibérica são vendilhões do templo, a soldo do imperialismo castelhano que asfixia as nacionalidades espalhadas dentro da artificial Espanha (galegos, bascos, catalães, agora até os andaluzes esboçam um fermento de nacionalismo)? Alguém acredita que os iberistas convictos querem entregar a Espanha, de mão beijada, o multissecular Portugal, para o aniquilar, para prover a decadência de quem vive nesta que seria então mais uma província de Espanha?

A história carrega os seus fantasmas. A culpa, dos pedagogos que enviesaram a história de Portugal contada às criancinhas nos bancos da escola. Uma história de Portugal que cimenta a fidelidade nacional, inculca o espírito de pertença que, junto com o culto da bandeira que volta a estar em voga, sedimenta a identificação nacional. É nessa história de Portugal que navega muito do sentimento anti-espanhol. Muitas foram as guerras com Castela. Há o “estigma” dos sessenta anos em que tivemos dois reis espanhóis. Ainda pesa muito o adágio consabido: “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. (Quem inventou este ditado nunca terá ido a Espanha. Ou teria visto como deslumbrantes são as mulheres espanholas. Logo não teria concluído que de lá não vem bom casamento…)

Não sou iberista. Mas custa-me suportar a verborreia patriótica que resvala para um chauvinismo patético – talvez só comparável ao que caracteriza os espanhóis, em rivalidade com os franceses, que se auto-retratam como povos predestinados, os eleitos entre os eleitos, incapazes de perceberem os defeitos que os distinguem como colectivos. A civilidade pós-moderna exige que se ultrapassem estes quadros mentais herméticos que constrangem. O culto do nacionalismo saloio, agora que tanto se fala de globalização (até de costumes), é uma tábua lançada para um passado que pouco dignificou a natureza humana: um passado de guerras por antagonismos nacionais.

A civilidade pós-moderna traz outro tipo de desafio. Reconhecer que há países melhores para se viver. Sem a estúpida deriva patrioteira que acredita que as idiossincrasias nacionais são virtuosas: é aí que cabe o descabido sentimento de que os nossos piores defeitos são melhores que as grandes virtudes dos outros povos. Custa alguma coisa admitir que muitos outros são melhores que nós?

5.5.06

Portugal futuro, máquina de fazer meninos

Por momentos pensei que o Eng. Guterres ainda fosse primeiro-ministro. O homem engravatado que falava para as câmaras era um zeloso orador da Opus Dei, enaltecendo as virtudes da família, só da família, como cada cidadão deve contribuir para a renovação da população. Afinal o Eng. era outro. Descobriu as delícias das famílias rodeadas de um rebanho de filhos. Será conhecido como o arquitecto de nova teoria demográfica, que combate a tendência de envelhecimento da população que ameaça destruir pela raiz um dos esteios dessa coisa tão bela que se chama “modelo social europeu” – as pensões de reforma.

O primeiro-ministro foi o porta-voz da ideia inusitada. Está-se a ver, para o futuro, os seus colegas dos outros países europeus a cumprimentarem-no efusivamente pela descoberta da pólvora. Seremos conhecidos como o país que mostrou ao mundo o caminho a percorrer. Depois de Vasco da Gama, o Sócrates das reformas dos velhinhos.

O líder deste governo veio anunciar, com uma candura que se mistura com indisfarçáveis laivos de arrogância de quem governa com maioria absoluta: quem for prolífico na reprodução da espécie será premiado quando chegar o momento de calcular a reforma. Os outros – os que não conseguiram o feito de multiplicarem a prole, os que padecerem de problemas de infertilidade, os que tentarem a adopção mas esbarrarem na monstruosa burocracia, os que forem homossexuais – serão “ligeiramente penalizados”, nas palavras do socialista que nos governa. Chegarão mais tarde à idade de reforma, ou terão que aumentar os seus descontos se quiserem atingir a reforma ao mesmo tempo dos que se fartaram de produzir filhos para a reposição demográfica.

Há ideias que podem ser boas no papel, ou nos insondáveis corredores das mentes que se acotovelam em gabinetes esconsos. É pena que estes planificadores não tentem descer do pedestal e procurem perceber como funcionam as teorias quando entram na vida real das pessoas. Este governo está a enviar uma mensagem clara: portugueses, reproduzam-se com fartura. Para aqueles que cumprirem este novo “desígnio nacional” (como se diria em bom sampaiês), o generoso e paternalista Estado está atento com regalias avantajadas. Se isto não é uma interferência nas escolhas pessoais de cada um, então já não percebo nada.

Faço um esforço para perceber a ideia mirabolante. Vejo duas explicações. Primeira, o governo foi infectado pelo vírus Mourinho – todos os meios são legítimos para atingir os fins. Que interessa se a decisão de diferenciar o acesso à reforma em função da produção de crianças é uma intrusão no livre arbítrio de cada pessoa, ou uma clara desigualdade? Há que não esquecer, estamos na presença de socialistas, mestres na arte de fazer engenharia social, pródigos em interferir na vida pessoal por ninharias. É a finalidade que interessa (contribuir para a diminuição do envelhecimento da população). Como se lá chega, pouco importa. Segunda explicação: até faz sentido recompensar os progenitores que se desmultiplicaram em filhos vários. Deram um inestimável contributo à sociedade. Esta reconhece-o, premiando aqueles que tiveram a canseira de se esforçar até à exaustão para alcançar o enésimo filho. O prémio chega com a reforma antecipada. É o descanso dos guerreiros.

Não me comovem as explicações que vou buscar ao baú do inexplicável. Não há semana sem medidas que vêm interferir mais na nossa vida. É o Estado socialista, versão vigilante, que nos cerca por todos os lados, num acantonamento que ameaça diluir o livre arbítrio em nada. Para não se pensar que apenas enveredo pela crítica destrutiva, deixo aqui três sugestões (portanto, um laivo de construtivismo). Por um lado, proibir a venda de qualquer tipo de contraceptivo. É garantido o sucesso quando se ambiciona aumentar a taxa de natalidade. Ao mesmo tempo, a igreja agradecia o aliado inesperado (quem sabe se Sócrates, como Guterres, também é Opus Dei…). Segunda medida: esqueçam a tontice da liberalização do aborto, que está prestes a ir a referendo (outra vez). Pode ser uma bandeira política que arregimenta fidelidades sectoriais. Contudo, o objectivo prioritário (a linha de montagem em série das criancinhas) não permite que se desperdice um único feto. Finalmente, o governo deve premiar os angariadores de mulheres estrangeiras que são espalhadas pelas casas de alterne de norte a sul. À sua maneira, estes empreendedores dão um contributo valioso para a reposição da população.

Quando vejo as sucessivas intromissões na esfera pessoal, quando vejo o plácido Sócrates a avisar-nos que devemos procriar até à exaustão, apetece-me, de repente, não ter mais filhos.

4.5.06

Da política show off


Leio uma crónica de Vicente Jorge Silva, no Diário de Notícias, que me espicaça a curiosidade sobre o discurso político contemporâneo. O jornalista denuncia a vacuidade discursiva dos políticos, daqueles que dão a cara perante o eleitorado e o seduzem com a generosidade que caracteriza campanhas eleitorais. Investidos no poder depois de escolhidos pela maioria, esquecem-se de compromissos, fazem tábua rasa de promessas que cativaram o voto de quem os escolheu. Chamo a isto decepção eleitoral. Ou a diminuição da democracia que se exerce episodicamente, de quatro em quatro anos, quando cumprimos o “dever de votar”, esse emblema máximo da condição cívica de cada um.

Para mascarar a inépcia, mais visível quando a globalização diminui a margem de manobra de quem governa, emerge a espectacularidade da imagem. A retórica bem pensada, uma estratégia gizada ao milímetro que concentra a atenção na forma e marginaliza o conteúdo. Governar, fazer política, é cada vez mais uma arte do engano, uma sucessão de simulacros que levam o incauto no engodo. Todos os dias, adocicados rebuçados são passados pela nossa boca, com o espectáculo mediático montado, os pequenos nadas que parecem coisas espontâneas sendo encenações maquinalmente montadas pela entourage que cuida da imagem dos políticos. Nós, o público que consome o produto, ficamos com a boca presa no isco lançado.

Vicente Jorge Silva dá conta de um exemplo que ilustra a pestilência da fabricação de uma imagem: “daí que se procure esconder e disfarçar, através de uma estratégia de simulacros de marketing, os constrangimentos que hoje se deparam à acção política. É o que acontece quando assessores, consultores e tutti quanti decretam com a maior desenvoltura do mundo que “fazer jogging em Luanda vale mais que 30 discursos”. Mesmo que isso seja eventualmente factual – e porventura até é, segundo os códigos da lógica espectacular vigente –, não deixa de parecer obscena a celebração eufórica e cínica dessa constatação, como se o apagamento do valor da palavra, do discurso, a favor de um show-off inócuo e burlesco representasse o triunfo definitivo da pós-modernidade política e um progresso para a democracia”. Para os esquecidos, quem fez jogging na marginal de Luanda, sob os holofotes da comunicação social, foi o actual primeiro-ministro.

Tenho pena de não ser político, nem sequer de aspirar à ambiciosa condição de governante. Só por este critério tinha o sucesso garantido, com o meu jogging matinal de trinta minutos todos os dias da semana. Não apenas para “inglês ver”, no esporádico exercício encenado pelos gurus do marketing político do primeiro-ministro. O que interessa que o homem tenha corrido a passo de caracol e, mesmo assim, acabado a corrida com os bofes de fora, mostrando que aquilo não passava de uma prosápia?

Agora nem sequer é a força da palavra que conta – nem que seja a fatuidade da palavra, o discurso redondo, impregnado de clichés que soam a nada quando a mensagem é espremida. Agora contam os gestos estudados. É a corrida no calor húmido e sufocante de Luanda. É a abertura das portas da residência oficial do primeiro-ministro à populaça curiosa, com o inquilino a fazer de mestre-de-cerimónias, num mal disfarçado incómodo por ser coagido pelos fabricantes da sua imagem a conviver com a gentalha por entre salas, corredores e jardins do palácio. Um dia destes vamos almoçar em directo com Sócrates. Vamos com ele ao cinema, a osmose entre governante e governados, voyeurismo mórbido do público alimentado por quem o governa. Qualquer dia mostram-nos sinais que revelam alguns hábitos da intimidade do primeiro-ministro: a marca da espuma de barba, o champô que usa, os chinelos ordeiramente colocados ao fundo da cama. Humanize-se o homem, aproxime-se dos mortais que ele governa. Para a populaça o ver como um dos seus, ali, tão íntimo, tão próximo, com os hábitos comezinhos a entrarem lares adentro.

Pelo caminho, compõe-se a imagem e branqueia-se o que o governo vai fazendo (ou desfazendo, falando com propriedade). Não é tendência que revele idiossincrasia doméstica. É tendência que se estende a todo o mundo onde a escolha por eleições funciona, onde o espectáculo do marketing se impôs à substância da mensagem, da actuação política. São os políticos embrulhados num vistoso papel de celofane, vazios por dentro.

É-nos vendido o produto por que tanto ansiamos. Queremos a humanização das figuras políticas. Que interessa se elas são vazias de conteúdo, se governam num limbo muito próximo da ausência? Porventura, tudo isto funciona às mil maravilhas. Porque tudo isto é o émulo da nossa imagem. Chegando a esta conclusão, só mais uma pergunta: qual o mal dos que governam fabricarem uma imagem à imagem dos que são governados?

Olho para tudo isto e renovo o meu catecismo abstencionista.