23.5.06

A fábula do bombeiro

Muitas vezes, em criança, gostaríamos de ser bombeiros ao atingir a idade adulta. Os bombeiros transpiram a aura de heroísmo que encanta os petizes. Eles combatem os fogos, dias e noites a fio, entram na fornalha e disparam os jactos de água contra as maléficas chamas que tudo consomem. Quando os incêndios estão espalhados por todo o lado, os bombeiros desmultiplicam-se num esforço sobre-humano. Daí que no imaginário popular tenha vingado a expressão “só os bombeiros é que acorrem a todos os fogos”.

E há outro tipo de bombeiros. Estes são heróis deles mesmos. Têm um ponto em comum com os bombeiros: também acorrem a todos os fogos, só que agora a chama que os incendeia é a chama do conhecimento. Por estarem na linha da frente de todos os tipos de conhecimento, por conseguirem dar resposta a solicitações tão diversificadas, é como se fossem os bombeiros que conseguem acorrer a todos os fogos. São os bombeiros da ciência. Sabem de tudo um pouco. Colocam o pé em ramos de conhecimento que, para o observador desatento, não têm nenhum fio condutor a uni-los. Mas lá estão, céleres, a construir curriculum baseado na prolífica actividade que abriga heterogéneos saberes.

Estes bombeiros fazem lembrar aquelas agremiações desportivas que se gabam do eclectismo das actividades. Têm atletismo, hipismo, pólo aquático, andebol, hóquei em patins, remo, ginástica rítmica, natação. E até chegam a aceitar inscrições para o afamado curling. Os bombeiros da ciência andam pela sociologia, pela economia, pela ética, pelo direito, pela ciência política, inevitavelmente pela filosofia. E até conseguem dar uma perninha na psicologia. Em público, dissertam sobre todos os saberes. É só uma questão de afinar a agulha, sintonizar os meridianos e lá sai abundante prosápia. O que causa estranheza é que num mundo tão exigente na especialização dos saberes haja quem aposte na heterogeneidade, que seja ecléctico. Destes desconfio logo à partida: vejo-os a saberem de muitas coisas, mas suspeito que saibam muito pouco de cada coisa onde colocam o seu dedo sapiente.

Enalteçam-se os bombeiros da ciência: documentam-se. São ascetas do saber. Diria, auto-didactas. Onde não se supõe que haja lugar a essa faceta. O diletantismo é adversário do rigor que a ciência exige. E apesar do notável esforço de documentação dos bombeiros da ciência, dali não sai obra que se distinga pela qualidade excepcional. Serve apenas para discorrer umas banalidades, ou para a audiência apreciar os dotes de leitor de quem se documentou com um punhado de obras escolhidas ao acaso. Hoje, com a Internet, é tão fácil ter acesso às fontes documentais. A tarefa dos bombeiros da ciência fica facilitada, o que os leva a saltar da toca como coelhos ensandecidos em tempo de cio.

Os bombeiros da ciência são clones dos artistas de circo que, multifacetados, se desdobram em imensos números circenses. Ora trapezista, ora tripulando a mota no poço da morte, ora adestrador de animais ferozes, ora palhaço. Continuo convencido que os verdadeiros bombeiros são treinados para apagar os fogos em todas as frentes onde eles apareçam. Não têm o dom da ubiquidade, desmentindo o adágio que o povo (outra vez erradamente) foi tecendo. Nem os bombeiros conseguem acorrer a todos os fogos. Nem os bombeiros. E se a ubiquidade não existe sequer pelos lados dos bombeiros, sinal de que os eclécticos saberes fazem dos bombeiros da ciência um embuste.
Ser bombeiro da ciência é apenas uma máscara. Para quem está disposto a fazer-se passar como entendido de saberes mil. Apetece usar outro aforismo consagrado pelo povo: "quem tudo quer tudo perde". Estes mágicos do conhecimento, que cirandam por ramagens diversas do conhecimento, hão-de ser conhecidos por nada saberem a fundo. Desmascarados. Ficam-se pela superficialidade dos saberes que vão tocando. Para além de não poderem ser ubíquos, escapa-se-lhes o dom da omnisciência. Não faltaria muito e teríamos os bombeiros da ciência a rivalizar em fonte de conhecimentos com uma qualquer entidade divina. Para mal de todos os males, ser bombeiro da ciência é como ser o senhorio de um albergue espanhol – cabe lá tudo e mais alguma coisa, sem reserva de direito de admissão. Conceda-se, coisa pouco recomendável.

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