A nobre arte do toureio, prática milenar que simboliza a cultura popular. Um traço identificativo de um povo bravo, mais bravo que a bravia besta negra com cornos afiados que se debate numa luta contra o homem. Até vergar o touro, no sofrimento humilhante da derrota, o preço que o homem faz pagar pela ousadia de desafiar a superioridade humana. Dizem os aficionados: isto é tradição, cultura popular. Digo eu, ao ver a degradante expressão de um espectáculo que exulta com o sofrimento de um animal: é grande o comprazimento de me saber “inculto”.
Há sempre novos episódios de saber cultural espalhados pela geografia. Durante muito tempo suportei a pesporrência dos barranquenhos, na reiterada ilegalidade da matança do touro em plena arena. Um ministro socialista, com a tibieza que os distingue (e com a incompetência de quem tomou a decisão – Fernando Gomes), pôs uma pedra sobre a polémica que pontuava Agosto, todos os anos. Abriu uma excepção para Barrancos, caucionando os touros de morte. Barrancos desapareceu do mapa, tão depressa como tinha sido atirado para as luzes da ribalta. Agora Samora Correia veio para o mapa. A localidade quis entrar para o Guiness com uma maratona de largada de touros. Pelo caminho, um morto e alguns feridos.
Já o disse, acho as touradas degradantes. Uma luta desigual entre homem e touro. Mesmo quando estão em planos iguais, desapossado o homem de armas que criam a desigualdade (seja o cavalo que o coloca num plano superior, sejam as estúpidas bandarilhas cravejadas no dorso do touro, ou a espada que os espanhóis desembainham para a estocada final, que ajoelha o marruaz no derradeiro sopro de vida). Até as pegas de caras são um combate desigual: um animal e uma chusma de destemidos forcados que se alinham para dominar a força da besta, entretanto já cansada pela sucessão de maldades infligidas pelos circenses anteriores.
Consigo tolerar as largadas de touros. É um espectáculo pouco recomendável para enaltecer a inteligência do ser humano, a não ser quando se solta uma gargalhada pelas piruetas inconsequentes de um valente de serviço que acaba debaixo dos cascos do touro, a defender-se das marradas furiosas que o levantam no ar com estrépito. As largadas de touros são um entretenimento sem o plano inclinado a favor do homem. Não há artimanhas pelo caminho. (A não ser que se confirme que, tal como nas touradas, os touros são preparados para chegarem à praça já extenuados: transportados em más condições, com as patas traseiras num plano mais elevado; picados no cachaço e nos testículos, dizem os entendidos para espicaçar a fúria da rês, dizem os defensores dos animais que é apenas para enfraquecer a força brutal do touro.) Quando o touro é largado, vemos os corajosos que se põem a jeito das cornadas aleatórias do bicho, desafiando-o a poucos metros, ensaiando correrias loucas quando o touro desperta do torpor e começa a correr a uma velocidade estonteante.
E depois há os bravos que fazem números de circo. Por vezes, a “arte” termina com uma visita ao hospital. As radiografias ditam a sentença: uns ossos partidos, uns tempos de baixa, que o descanso do trabalho também é terapêutico. Outras vezes, a folia salda-se por músculos lacerados pela cornadura do touro. Quando o touro esvoaça os chifres numa dança de morte, o chifre perfura uma artéria vital. É o encontro com a morte do circense de serviço, que jamais entrará em largadas de touros, jamais terá as delícias de assistir aos maus-tratos a touros durante a faena. Como dizem os entendidos da tourada, num fantástico lampejo de retórica desculpabilizante, quando o touro solta o suspiro final depois de receber a estocada mortal do toureiro, ele “cai com uma dignidade própria dos grandes”. Apetece, pois, dizer que os valentes que arriscam a vida numa largada de toiros, também tombam com a dignidade própria dos grandes. Sem lamentações, sem comiseração pela vida que partiu.
Podem esboçar as teorias mais sofisticadas acerca da grandeza da tourada. Podem até tentar certificar os incautos que é expressão da nobreza tão própria da cultura popular. Se isto é cultura popular, prefiro o recato das elites tão distanciadas do povo ululante. Prefiro, até, que me apelidem de ignaro que desconhece – e vitupera – as tradições ancestrais (como se o simples facto de ser ancestral fizesse das tradições uma realidade inamovível…).
Que continuem as touradas e, sobretudo, as largadas de touros. Ao menos, com estas, vão largas as gargalhadas quando os vejo, aos bravos, a roçar-se na poeira do chão no desespero de fugirem das investidas do touro enfurecido. Nas touradas divertem-se com o sofrimento do touro. Nas largadas de touros que passam, em excertos, na televisão, divirto-me com as tristes figuras de quem tenta fugir do touro.
1 comentário:
Por um Campo Pequeno sem Touradas, livre de sofrimento, de sangue e tortura de animais.
Manifestação
18 Maio
20h00
Campo Pequeno
www.animal.org.pt
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