Numa manifestação bem encenada, os produtores de leite assentam arraiais na Avenida dos Aliados. Protestam contra a imposição de quotas à produção. Habituados à generosidade da política agrícola europeia (o cancro da União Europeia), sabiam que podiam produzir o que quisessem sem perderem os prémios de produção. Daí aos “lagos de leite” e “montanhas de manteiga” – vocábulos que entraram na gíria como sinónimos dos excedentes do sector.
Os produtores de leite endereçam as culpas para o governo. Que não soube defender os interesses dos agricultores nacionais. Como se o governo de um país insignificante como Portugal pudesse impor a sua vontade aos demais parceiros da União Europeia, sobretudo aos mais poderosos. Não lhes interessam as considerações geopolíticas. Ou por ignorância ou por oportunismo, é uma variável que lhes escapa. Apenas querem passar para o público a imagem de que são prejudicados, que as quotas de produção trazem a penúria. A cereja em cima do bolo é a dimensão afectiva do protesto. Encenam a distribuição gratuita de leite à populaça que passa pelo local e que, “a cavalo dado não se olha o dente”, embolsa uns litros de leite agradecendo a ocasional generosidade. A encenação atinge o zénite com uma mensagem disparada em direcção do lacrimejante coração de cada lusitano: eles protestam porque se sentem prejudicados e, soam as trompetas, porque são os “interesses nacionais” que estão em causa.
O interesse nacional é uma vaca sagrada que mobiliza audiências num coro que grita, em uníssono, o fervor nacionalista. Em homenagem ao interesse nacional, falam mais alto as vozes emocionadas que perdem o fio à meada da racionalidade. E, quantas vezes, invocar o “interesse nacional” não passa de um embuste para mascarar a ausente razão dos que se fazem passar por advogados do tal “interesse nacional”. Quando, mesmo à superfície, é visível a confusão entre o “interesse nacional” e o interesse particular.
Mas o rótulo pega. Quem emprega a mágica expressão “interesse nacional” está no bom caminho para ver as suas reivindicações satisfeitas. Ou, na pior das hipóteses, sentir-se reconfortado por saber que a turba patriótica se aliou à causa. A turba não percebe que dispara um tiro no pé ao escancarar o coração aos oportunistas que se aproveitam do “interesse nacional” para arregimentar fidelidades. Quando os produtores de leite reclamam contra as quotas que os obrigam a entrar nos eixos da racionalidade produtiva, querem manter privilégios suportados pelos consumidores. Estes têm sido os financiadores dos produtores de leite. Com uma factura que lhes passa despercebida: pagam o leite a um preço elevado.
Era bom que alguém interpelasse os produtores de leite. Pedindo-lhes para explicarem como é que a defesa dos seus interesses coincide com o “interesse nacional”. Como é que o sacrifício de alguns milhões de consumidores, forçados a pagar leite mais caro, é aceitável como meio de manter uns milhares de produtores? Será o desencontro entre os interesses da larga maioria e da minoria bafejada pelos privilégios espelho do “interesse nacional”, ou apenas do interesse particular de quem produz leite? Atender os interesses da minoria corresponde aos parâmetros democráticos (governo da maioria para a maioria, é bom recordá-lo)? Os ingénuos que se deixam levar no engodo do putativo interesse nacional deviam olhar para as moedas de euro que tilintam na sua carteira. E perceber que o interesse nacional não coincide com o bem-estar da maioria da população. Esse bem-estar é sacrificado para satisfazer caprichos de uma minoria bem instalada na vida à custa dos subsídios endossados para a larga maioria.
Mudança de cenário. Há dias, numa aula, provocava os alunos com o exemplo da Lear – uma fábrica de cablagens que está, aos poucos, a desmantelar as fábricas em Portugal. Argumentava que não me causa espécie a deslocalização. Não tanto pelos interesses da empresa norte-americana, que tem o direito de investir os seus capitais onde considera que as condições lhe são mais favoráveis. (É patético ver sindicalistas, como se ainda vivessem no século XIX, a exigir do governo uma “intervenção” para obrigar a empresa a manter-se no país…) A mudança da empresa é virtuosa porque vai para a Roménia, onde a pobreza é maior do que em Portugal. Vai para a Roménia criar postos de trabalho – e, sei-o bem, em busca de lucros maiores. É um importante contributo para o aumento de bem-estar da população romena.
Podem-me dizer que o “interesse nacional” não se compadece com as necessidades de criação de riqueza na Roménia ou em qualquer outro país. Mas quando tanto se fala nos imperativos de consciência social, devem eles cingir-se ao espartilho das fronteiras nacionais? A consciência social não tem uma dimensão internacional? Zelar pela diminuição da pobreza em locais recônditos não é um imperativo da humanidade? E, já agora, este imperativo de consciência, que cobre a humanidade com uma dimensão universal, não se deve sobrepor à tacanhez do risível “interesse nacional”?
Gostamos do nosso umbigo. Enaltecemos a pertença e deixamo-nos conduzir por um ilusório devir colectivo. Tenho para mim que ser português – argentino, senegalês, ou indiano – é apenas um acidente geográfico. Podíamos ter nascido croatas, belgas, mexicanos ou iranianos. O nacionalismo, apenas mais uma forma de religiosidade que aliena o indivíduo.
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