18.5.06

Inventamos as nossas doenças? (Título alternativo: ajuizar em causa própria)


Ouço a alusão de um especialista em saúde ocupacional a estudos que “provam” que as profissões com maior contacto com o público estão expostas a desgaste emocional e psicológico. Fornece os exemplos do pessoal que trabalha no sector da saúde e dos professores. Não consigo evitar um esgar: quem falava era, ao mesmo tempo, professor e profissional da saúde.

O primeiro pensamento que me ocorre é este: quem chega a estas conclusões não está a ajuizar em causa própria? Quem trabalha no sector da saúde tem um contacto muito próximo com os utentes. Mas está treinado para passar ao lado dos dramas pessoais, do sofrimento de quem recebe cuidados de saúde. Quem ensina está obrigado, pela natureza das funções, a lidar de perto com pessoas – os alunos. Há outras profissões que também lidam de perto com pessoas. Não há notícia, pelo menos nestes estudos científicos que “provam” os achaques psicológicos que se abatem sobre médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar médico e professores, que as mesmas mazelas tombem sobre as outras categorias que têm um contacto próximo e assíduo com pessoas.

Terá razão um professor quando reclama da “pressão” sentida ao longo de anos a fio de ensino? Assim como assim, um professor tem uma rica vida, vida de descanso…Fará sentido chamar um médico para avaliar o impacto psicológico do exercício da profissão de médico? Num como noutro caso, as conclusões são uma entorse da realidade. Há uma contrariedade que inquina o exercício: quando fazemos auto-análise, não nos conseguimos desprender da parcialidade. Mesmo que seja feito um esforço titânico para embelezar a análise com um manto de imparcialidade, mesmo que os investigadores estejam convencidos que actuaram com imparcialidade. Sem darem conta, há o estigma de estarem a apreciar algo em causa própria. O que perturba o rigor, enfim, a cientificidade das conclusões.

Ouvir um professor argumentar que a função de professor é das que tem maior desgaste emocional, deixa-me perplexo. E sou professor. Imagino o argumento escutado por quem não seja professor: adivinho o sorriso cínico a esboçar-se no canto da boca, um aceno de cabeça em tom de reprovação. Haverá outras profissões sem contacto com pessoas e que, pela sua dureza, têm elevado desgaste emocional. Até porque comparar a crueza das profissões sem atirar para cima da mesa a variável humana é uma abordagem parcial, uma generalização que prejudica a validade da conclusão. As pessoas variam muito na personalidade, na forma como reagem a adversidades. Dizer-se que ser professor é uma profissão de risco é englobar no mesmo barco todos os professores, como se todos tivessem problemas da mesma grandeza no contacto com os alunos. O mesmo se diga dos médicos. Quem nunca se deparou com um médico de coração empedernido, insensível à doença e ao sofrimento de uma pessoa que foi parar ao hospital? Uns reagem desta forma desumana: é uma defesa pessoal que os resguarda do sofrimento alheio; outros serão mais sensíveis, mostrando uma capa humanizada. Sofrem por igual?

Esta tendência para ajuizar em causa própria faz-me lembrar as doenças que parecem inventadas à medida de certas especialidades que são um fruto da modernidade (ainda não percebi se é a doença que arrepia caminho à especialidade, ou se é a especialidade que semeia a doença). Um exemplo: hoje é fácil depararmos com pessoas que estão com uma depressão. Tudo e mais alguma coisa é motivo para o afundamento numa depressão. Tenho a impressão que as pessoas que numa determinada fase mais complexa da vida se sentem cercadas pelo incómodo do mau estar, quando visitam médicos da especialidade saem do consultório ainda mais doentes.

Sou leigo na matéria, note-se. O tema (depressão) é estudado a fundo por especialistas. O que me causa espécie é haver tanta gente mergulhada em depressões, dependente de drogas anti-depressivas; e a proliferação de psiquiatras que não hesitam um segundo em diagnosticar depressões ou maleitas afins. Quantas vezes exercitar a mente não bastava para dar a volta aos problemas? Um diagnóstico lapidar – “a senhora tem depressão”, enquanto vai gatafunhando a receita com o cocktail de drogas – não é meio caminho para afundar ainda mais aquela pessoa num estado, esse sim, depressivo?

Esta classe ajuíza em causa própria. Adivinhe-se o caos para a classe se, de repente, a saúde psíquica da população passasse a ser invejável. O que passariam os especialistas dos males da mente a fazer? Escondiam a pujante sanidade mental das pessoas?

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