Há dias desabou o Carmo e a Trindade quando um ministro foi a Santiago de Compostela confessar o seu iberismo. Os nomes nos bois: Mário Lino, ministro das obras públicas da república portuguesa, pôs a dita república em estado de choque quando disse, pela primeira vez em público, que gostaria de ver a Península Ibérica coincidir com um só país. Soa a penitência descarregada na Catedral do Botafumeiro, como se a purificação da alma iberista só fosse possível em terras espanholas.
Foi grande o burburinho entre as lusitanas almas perturbadas pelo crime de lesa-majestade do ministro. Sem ponta de piedade, apedrejaram o ministro em público. Não lhe perdoam a heresia. Se já fica mal a qualquer cidadão com bilhete de identidade português mostrar a sua simpatia pela causa iberista, a diagnose piora quando um governante o faz. Argumentam que um ministro pode pensar certas coisas com os seus botões, depositar essas confissões na quietude do travesseiro, ou na intimidade do matrimónio. Pode-as pensar, nunca dizê-las em público. Eu acrescentaria, para adensar a vaga já gigantesca de lapidação pública do ministro: o homem jurou solenemente, na tomada de posse como ministro, respeitar certos deveres que a declaração pública em Santiago de Compostela veio negar. Aqui há lugar ao estafado diagnóstico: “se fôssemos um país normal” (que, como é sabido, não somos), a demissão estaria à espera do ministro no regresso à pátria renegada.
Muito me custa defender o ministro. Primeiro, porque as alergias se reanimam só de pensar que, por um momento, tenho que dar razão a um ministro socialista (ou comunista reciclado, que a diferença não é de monta). Segundo, Lino é o ministro mais perigoso deste governo. O mentor de elefantes brancos como o aeroporto da Ota e o TGV, que nos vão custar os olhos da cara. Terei que deixar a incomodidade de lado, perplexo pelo coro de virgens ofendidas que protestam bem alto contra a heresia do ministro. Pergunto-me: então não é verdade que cultivamos a liberdade de expressão? Podemos condicionar o direito à opinião de um homem porque ele ocupa uma pasta ministerial? Acaso um ministro, por o ser, carrega a cruz da diminuição da liberdade de expressão?
Há mais interrogações a colocar: ser iberista é demoníaco? É conspirativo? Os que defendem uma união ibérica são vendilhões do templo, a soldo do imperialismo castelhano que asfixia as nacionalidades espalhadas dentro da artificial Espanha (galegos, bascos, catalães, agora até os andaluzes esboçam um fermento de nacionalismo)? Alguém acredita que os iberistas convictos querem entregar a Espanha, de mão beijada, o multissecular Portugal, para o aniquilar, para prover a decadência de quem vive nesta que seria então mais uma província de Espanha?
A história carrega os seus fantasmas. A culpa, dos pedagogos que enviesaram a história de Portugal contada às criancinhas nos bancos da escola. Uma história de Portugal que cimenta a fidelidade nacional, inculca o espírito de pertença que, junto com o culto da bandeira que volta a estar em voga, sedimenta a identificação nacional. É nessa história de Portugal que navega muito do sentimento anti-espanhol. Muitas foram as guerras com Castela. Há o “estigma” dos sessenta anos em que tivemos dois reis espanhóis. Ainda pesa muito o adágio consabido: “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. (Quem inventou este ditado nunca terá ido a Espanha. Ou teria visto como deslumbrantes são as mulheres espanholas. Logo não teria concluído que de lá não vem bom casamento…)
Não sou iberista. Mas custa-me suportar a verborreia patriótica que resvala para um chauvinismo patético – talvez só comparável ao que caracteriza os espanhóis, em rivalidade com os franceses, que se auto-retratam como povos predestinados, os eleitos entre os eleitos, incapazes de perceberem os defeitos que os distinguem como colectivos. A civilidade pós-moderna exige que se ultrapassem estes quadros mentais herméticos que constrangem. O culto do nacionalismo saloio, agora que tanto se fala de globalização (até de costumes), é uma tábua lançada para um passado que pouco dignificou a natureza humana: um passado de guerras por antagonismos nacionais.
A civilidade pós-moderna traz outro tipo de desafio. Reconhecer que há países melhores para se viver. Sem a estúpida deriva patrioteira que acredita que as idiossincrasias nacionais são virtuosas: é aí que cabe o descabido sentimento de que os nossos piores defeitos são melhores que as grandes virtudes dos outros povos. Custa alguma coisa admitir que muitos outros são melhores que nós?
5 comentários:
Não podia estar mais em desacordo. O conflito entre a resistência ao iberismo e a sua promoção é o fenómeno geopolítico mais duradouro na Península Ibérica e representa o choque entre a afirmação da autonomia das nacionalidades e um projecto imperial. É evidente que não estamos em 1580 ou em 1640, nem penso que se deva defenestrar o Ministro. Penso, no entanto, que esta proclamação nos pode deixar dúvidas acrescidas quanto ás motivações que ele coloca nos projectos da Ota e do TGV. Também não duvido que o Blogger não seja iberista. Contudo, também sei que a resistência e durabilidade dos sentimentos de nacionalidade e de pertença a um país, são o maior e mais irritante obstáculo que enfrentam aqueles que alimentam sonhos pan-europeistas.
P.S. Infelizmente foram 3 os reis espanhóis....
Rui, vamos por partes:
1. Fiquei intrigado com a relação causal entre a “boutade” do ministro e a agenda escondida na Ota e no TGV. Um iberista, a sê-lo genuinamente, dava-se ao cuidado de programar obras tão faraónicas como esta? Repare: eu estou a presumi-lo keynesiano dos sete costados (Cavaco também o é…). Para um keynesiano dos sete costados, é assim que se desenvolve um país – à custa de obra pública faraónica (que, no fundo, é apenas borbulhagem de despesismo).
2. Ou será que a decisão irracional de fazer avançar estes embustes (continuamos à espera de estudos económicos credíveis que expliquem que a coisa não é irracional) desvenda um futuro Portugal empenhado no prego, sem solução, mesmo a jeito de um”takeover” espanhol?
3. Acuso o toque (do pan-europeismo). Continuo a acreditar que é a nossa salvação: sermos cada vez mais europeus e menos portugueses. Tem destas coisas, a desidentificação.
4. Agradeço a correcção do dislate histórico (mea culpa, mea culpa!).
Paulo
Bem, a sua resposta, que agradeço, parte do pressuposto que eu sou keynesiano, o que não é verdade. O facto de eu me insurgir contra a cegueira obcessiva do BCE, não me impede de pensar que o Estado deve ter um papel menos interventor na sociedade (ver os meus posts no rosa-laranja "O Tabaco e o Estado Baby Sitter" e "Os Novos Fundamentalismos"), economia incluída.
Quanto à Ota e TGV, apetece-me recorrer ao velho aforismo policial: vê a quem aproveita!
Quanto ao ponto 3, as nossas divergências saõ irreconcliáveis.
Às vezes a retórica tem laivos de oportunismo. Repare no meu oportunismo para replicar o seu comentário: Cavaco, a sua rejeição da ortodoxia do BCE, logo, keynesiano. Keynesianismo (partilhado pela sua colega de blog, para mais…), logo, promoção da economia através da obra pública, nem que seja obra inútil. E desaguamos na Ota e no TGV. Mas, repito, tratou-se de um exercício de pura retórica oportunista!
Quanto àquele ponto onde temos divergências irreconciliáveis: como irreconciliáveis que são, mantêm-se. Dou mais uma achega. O meu optimismo europeísta e desidentificação nacional (ou, como diria Lucas Pires, “inidentificação”) são produto da aversão ao Estado. Vejo a UE (e quanto mais UE melhor) como forma de reduzir a expressão do Estado que nos asfixia.
Paulo
Pois.
Um ministro da República Portuguesa não tem, nem deve ter, liberdade de expressão total.
Eu para ser português não assino um papel. Mas para assumir funções públicas com a responsabilidade do senhor Lino, tenho! Por alguma razão assinou, na tomada de posse, o que assinou. Deve respeito à constituição e a constituição menciona explicitamente o dever de defender a integridade territorial de Portugal!
Quer falar à vontade, demita-se.
Acrescente-se que não era nas academias das forças armadas portuguesas que se estudavam, até meados de noventa, os planos de invasão de Espanha...
Estou em crer que era o contrário.
Se bem que, por duas ou três vezes, tenha havido da parte de reis portugueses umas arremetidas por território espanhol.
No entanto, à conta das invasões francesas e da "Guerra das Laranjas", os castelhanos ainda nos devem algo. Se querem Gibraltar, têm de devolver Olivença.
"A minha Pátria é a Língua Portuguesa" não uma qualquer pátria dos vendidos às comodidades e aos padrões intelectuais de alguém que olha de cima para baixo para os demais. Dêem corda a esses pan-europeístas e quando derem por ela somos todos empregados de mesa de alemães, espanhóis e ingleses a servir-lhes os produtos deles (pois entretanto acabaram com os nossos, por uma qualquer directiva burocrática da UE).
O que nos vale é que temos uma retaguarda de 180 milhões de brasileiros, fora os PALOP, para repovoar esta terra que ainda é nossa. E exportar... para essa Europa velha e caduca.
Ponte Vasco da Gama
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