19.5.06

Há sempre um “muro de Berlim” por erguer

Nos últimos dias, por várias vezes, o problema da imigração ilegal tem-se cruzado comigo. Em notícias de televisão, vendo o presidente dos Estados Unidos em declarações de uma dureza incompreensível. Numa carta anónima a um inquérito sobre imigração feito por um colega. Nas reacções absurdas à instalação de uma comunidade de imigrantes brasileiros para evitar a desertificação de Vila de Rei. Ou um português que foi preso pela polícia espanhola por transportar no seu barco imigrantes ilegais da África sub-sahariana, prestes a entrar em Espanha.

É convenção enraizada: o discurso xenófobo anti-imigrante é caucionado pela extrema-direita caceteira. É de lá que vêm as manifestações mais ruidosas contra a profusão de imigrantes. Só que o discurso xenófobo não é exclusivo da extrema-direita. De outros sectores chegam exibições mais discretas de repúdio pelo outro que decide vir tentar a sua sorte até nós. A diferença está no ruído dos protestos, mais notório na extrema-direita. Há que o assumir: vinga uma intolerância geral pelo outro.

Ontem tomei conhecimento de uma carta anónima que chegou à universidade em resposta a um inquérito sobre a imigração. O inquérito era do tipo fechado – perguntas que continham três ou quatro possibilidades de resposta. O covarde anónimo que decidiu escrever uma carta com uma dúzia de páginas dissertava a lógica mais bafienta acerca da imigração. Os clichés execráveis do costume: o mal do país está nos imigrantes que cá chegam, eles roubam empregos aos nossos concidadãos, são um foco de criminalidade, não manifestam vontade de se adaptarem aos usos nacionais. No fim da página um, quando li “Portugal para os portugueses”, decidi que já tinha a dose necessária para não voltar a folha, para não ler nada mais do que estava ali vomitado.

Horas mais tarde, notícia de os Estados Unidos vão construir um muro de seiscentos quilómetros que preenche a fronteira com o México. Rumsfeld advertia que o muro terá um patrulhamento intenso, que fará parte do treino de uns quaisquer militares. A imagem seguinte mostrava Bush Jr. num discurso empolado contra os imigrantes. Retive estas palavras: “aos que já cá estão, e que cá chegaram ilegalmente, têm que pagar multas, aprender a falar inglês, têm que mostrar que encontraram emprego, e dizer-lhes para irem para o fim da fila, para trás dos cidadãos americanos”. Trata-se de um país que foi construído pelos imigrantes vindos das mais variadas origens. É o mesmo país que abraça uma perseguição furiosa contra os imigrantes ilegais que já conseguiram entrar no território. O mesmo país que ergue um vergonhoso muro para estancar o fluxo diário de mexicanos que dão o salto para o eldorado que, tantas vezes, não passa de uma miragem.

Por cá, deu brado a ideia da presidente da câmara de Vila de Rei. Dando conta da progressiva desertificação do concelho, um misto de envelhecimento da população e de êxodo dos mais jovens para a grande Lisboa, apanhou o avião para o Brasil e encontrou, algures numa cidadezinha perdida no interior, algumas famílias dispostas a mudar de vida para Vila de Rei. Fez-lhes promessas de trabalho e deu-lhes habitação. A chegada das famílias brasileiras engalanou-se com o espectáculo do mediatismo.

Entretanto, lucubravam-se os que nada têm a ver com a realidade local de Vila de Rei mas se acham empossados da moralidade necessária para reprovar aquela imigração. As vozes nacionalistas condoeram-se. Denunciaram o ridículo de trazer brasileiros aos magotes para repovoação do interior que se desertifica a cada passo. Sentenciam a ameaça desta imigração maciça: qualquer dia já nem portugueses conseguimos ser, tal a osmose com tantos estrangeiros que por cá assentam vida, que há-de lançar as sementes de desidentificação de um povo. Retórica incompreensível. O que é preferível? Que desertificadas terras perdidas no interior vegetem lentamente, condenadas a uma agonia sem solução? Protestam os penhores da pureza da portugalidade: a cada imigrante que entra há um português na fila do desemprego. Gostaria que me respondessem: quantos portugueses, sobretudo dos que estão em desemprego há longo tempo, estariam dispostos a refazer a vida em Vila de Rei?

Há nesta xenofobia que cresce a olhos vistos uma retórica do esquecimento do passado. Quando éramos emigrantes, estávamos dispostos a fazer os trabalhos que os luxemburgueses, franceses, alemães e ingleses rejeitavam nas suas terras. Não nos caíam os parentes na lama. Agora que passamos de país emigrante para país imigrante, a acusação de que os imigrantes ficam com o emprego destinado aos nacionais. Esquecendo que os imigrantes fazem o que nós fazíamos quando éramos emigrantes: ficam com os empregos que restam, que agora não queremos fazer na nossa própria terra.

Perturba-me a sanha persecutória aos imigrantes, aqui como em qualquer sítio. É um definhamento mesquinho, uma intolerância para com o outro, uma reacção contra a possibilidade de pessoas pobres poderem melhorar a sua condição de vida na sociedade que somos. Um ensimesmamento egoísta. Anacrónico, quando tanto se disserta sobre a globalização de tudo e mais alguma coisa. Para os detractores da imigração, as pessoas devem ficar excluídas da globalização. Quando ouço que a fronteira entre o México e os Estados Unidos vai ficar separada por um intransponível muro de seiscentos quilómetros, pergunto-me se a vergonha do muro de Berlim serviu para alguma coisa. É curta a memória dos homens.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo post. Até o subscreveria não fosse o cruzamento entre o que entendo dever ser do domínio público, ou manter-se no domínio privado.

Rosa

Rui Miguel Ribeiro disse...

Tanto quanto sei, a política de acolhimento e integração de imigrantes que tem sido proposta pela Administração Bush é razoavelmente equilibrada. No que concerne aos Muros, há uma diferença muito grande: este que poderá vir a construir-se entre os EUA e o México, obedece ao princípio milenar de manter o terrotório a salvo de "ameaças externas", sejam qual for a sua natureza. O Muro de Berlim foi o primeiro da História construído para aprisionar aqueles que viviam dentro do Muro. A diferença não é de pormenor, é gigantesca!