22.5.06

Das comédias românticas


O actor, compungido, olha para o firmamento. Interroga o destino. Interroga-o pelo desamor que teima em estar com ele. Algures, no mesmo momento, a actriz pena-se no sofrimento de um amor desencontrado. Vertem-se lágrimas furtivas, nos caminhos descompassados que trazem o desencontro ao amor. Lá mais para a frente, assim que o argumento se aproximar do final, um passe de magia há-de recompor os sentimentos. As duas almas hão-de afinar pelo mesmo diapasão. E se o passado foi feito de noites mal dormidas pelas chagas abertas no coração, por andar o Cupido desatento, há-de chegar o momento da reconciliação. De tudo com todos. Do argumentista para com a audiência, e entre os protagonistas da história. À saída do cinema, percebe-se que a história acabou como devia – um típico final feliz. A avaliar pelo ar de satisfação do público.

As comédias românticas não são o meu estilo preferido de cinema. Mas elas devem continuar a preencher as salas de cinema. Servem para manter a alienação do público, daquelas almas que não recebem a visita do amor, ou que andam desconsoladas pela ausência do romantismo de outrora. As comédias românticas são o sucedâneo necessário. Permitem “amar” por interposta pessoa. Preenchem o imaginário de desafortunadas donzelas, habituadas ao desamor ou aos desenganos provocados por filisteus garanhões que não cumprem ilusórias promessas de amor. As comédias românticas são o altar sagrado de uma mistificação. Da sagração do amor como ele é idealizado. De como se ensina aos incautos que amor é entrega descomprometida, como se fosse obrigatório perder o eu em nome da pessoa amada.

Se digo que as comédias românticas são um embuste – porque o amor não é aquilo que lá vem retratado – que não seja pretexto para uma interpretação errada: continuo a dizer que as comédias românticas devem existir. Eu, que aqui me confesso corrosivo crítico do género, também confesso que a espaços me apetece ver uma comédia romântica. É um exercício de oxigenação interior. Acontece mais quando ando em busca de reorientação. Ver uma comédia romântica ensina-me a antítese de amar. É propedêutico. Ser testemunha de juras de amor, que prometem a perenidade do amor, nem que a eternidade se consuma na voragem do momento. Ver a demissão do eu em nome do outro, como se fosse possível abdicar da personalidade com o fito de cativar os favores da pessoa amada.

As comédias românticas resvalam para o patético quando se entaramelam na lamechice. É quando nos tentam fazer passar a ideia de que “o amor é cego” – outro lugar comum pespegado, convocando a irracionalidade do sentimento, fazendo crer que somos capazes das coisas mais absurdas em prol do sentimento que tonifica a existência (ou será que a asfixia?). E digo: quando o amor é isto, é doença. Quando me dizem que “o amor é cego”, a irracionalidade da afirmação explica o desatino de quem vê nisto o amor. E quando as comédias românticas me trazem personagens que são capazes de abdicar de si mesmas pela pessoa amada, vejo nisso a perda de amor-próprio, como se fosse possível viver na figura da pessoa amada. Como se houvesse uma osmose, dos dois amantes emergisse um só corpo, um só espírito.

E apetece perguntar: o amor não é um acto de egoísmo? Para dar resposta, há que fugir da retórica das comédias românticas. Aí é tudo entrega, desprendimento, altruísmo, a vontade de tudo fazer para agradar à outra pessoa. Fora do casulo das comédias românticas, onde o sentimento é real, já amadurecido, não vivido com a ingenuidade própria da adolescência, não há um acto de egoísmo? Na escolha não há satisfação pessoal, critérios individuais em andamento, a consagração da plenitude do eu através do amor encontrado noutra pessoa? É uma partilha, dir-me-ão. E quando mo disserem, já estamos a caminho para destruir o mito das comédias românticas. Vou mais longe: uma partilha, decerto, onde cada um põe o que tem de bom para partilhar.
Quando há esta entrega, ela não é descomprometida. Procura algo em troca. O amor é como os mercados, uma mercantilização de afectos, em troca recíproca onde cada um dá algo de si porque em troca recebe algo que o recompensa. Neste exercício anti-lamechas do amor, o repto que fica: na troca, não sabemos que temos que pôr algo de nós para recebermos aquilo que buscamos? Isto não é entrega descomprometida. Não são as pétalas cor-de-rosa do amor idílico que só existe nas comédias românticas. E se me dizem que é possível o contrário, se me dizem que pode haver entrega total sem querer nada em troca, direi que isso é a antítese do amor. Será a cegueira – não do amor, mas de um desprendimento que leva à abdicação da pessoa.

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