10.5.06

“São novos, não pensam…”

…sentencia o povo, sempre sapiente no que se convencionou chamar “sabedoria popular” (a negação do seu próprio postulado: “sabedoria” e “popular” são antinómicas palavras). O povo amadurecido, carnes curtidas pelo cansaço da vida, olha para os imberbes foliões e condescende: a juventude tolda o discernimento. Daí o lapidar “são jovens, não pensam”.

Vem isto a propósito da semana da queima das fitas que está a decorrer. Pela manhã, enquanto faço jogging no Parque da Cidade, sinto o perfume da queima das fitas. O recinto está paredes-meias com o Parque da Cidade. Quando lá chego, a festa está no rescaldo. Cruzo-me com os últimos resistentes, que calcorreiam os caminhos do parque a passo lento, alguns cambaleando com a ajuda etílica acumulada durante a noite. Olham para mim como se fosse o extra-terrestre. Um lunático que corre àquela hora, acompanhado pelo canídeo, fomenta a estranheza. Tenho a impressão que alguns, os mais embriagados, se interrogam se o que vêm não é uma miragem alimentada pelo álcool.

É fácil aos que já dobraram alguma idade, e que tiveram no calendário o seu tempo de folia, apontar o dedo aos foliões que exaurem energias ao longo de uma louca semana de festejos académicos. Esquecem-se que outrora foi a sua vez de arrastar o corpo pelas tropelias tão próprias da idade. Haverá excessos, lamentáveis como todos os excessos que colocam os fautores no limiar da demência. Lembro-me, ainda estudante, de histórias narradas nos jornais que me causavam uma profunda revolta: de como uns energúmenos eram assaltados por instintos mórbidos e degolavam os cisnes do Palácio de Cristal. Desvarios deste calibre serão excepções no imenso mar de festejos.

As pitonisas da moralidade e da decência insurgem-se contra o elevado consumo de álcool durante a queima das fitas. Aliás, é pretexto para os viúvos do capitalismo denunciarem a alienação das almas estudantis, que se entregam aos deleites do sumo de cevada para agrado da caixa registadora que contabiliza os lucros das empresas cervejeiras. Uns e outros, aposto, não consomem cerveja. É o que se adivinha, pela firmeza com que deploram os incontáveis barris de cerveja que, é inevitável, acabam por desaguar num mictório (ou goela fora, no regurgitamento dos compulsivos bebedores). Apraz-me ver estes arautos dos comportamentos aceitáveis, dedo erguido, acenando a cabeça com o ar de reprovação esboçado por professores no ralhete às criancinhas impertinentes. Olhassem para o seu umbigo, para logo perderem as carradas de razão moralista de quem se dizem penhores.

Os estudantes merecem esta semana de folia excessiva. Dentro de poucas semanas entram na clausura dos exames. A queima das fitas é um paradoxal estágio para o tormento que se avizinha. O stress do estudo às três pancadas, a incerteza com que saem de uma sala de exame, a angústia que os vai acometer de cada vez que se acercarem de uma pauta de exame. Os críticos das celebrações estudantis queriam uma horda de alunos bem comportados, fechados num castelo rodeado de livros, como se estivessem prometidos a um sacerdócio que renega a folia nocturna. Congeminar este protótipo de estudante é embrutecer ainda mais um tristonho povo. Nas poucas vezes que um grupo de pessoas traz para a rua a febril fobia pela pândega, logo surgem os zurzidores profissionais que gostariam de reprimir a libertação dos espíritos. Depois admiram-se quando insuspeitos observadores (estrangeiros, por norma) estranham como somos tão diferentes dos outros povos latinos – mais enfadonhos, nostálgicos, emudecidos na libertação da nossa espontaneidade.

São eles que olham para o corrupio de ambulâncias a zunir sirenes como prova da degradação dos festejos. Sentenciam os comas alcoólicos: jovens excessivos sem noção dos limites, passam a fronteira do que o organismo aguenta, têm como destino uma maca do hospital enquanto o álcool não se evapora. Eles, que nunca apanharam uma bebedeira de caixão à cova, para poderem pairar sobre os estudantes que querem beber cerveja até não aguentarem mais. Chamem-lhe alienação, chamem-lhe o que quiserem. Alguém pode censurar os outros pelas tristes figuras a que se entregam? Mesmo que os censuradores, ciosos da “boa ordem social” (coisa tão importante…), tenham uma vida asséptica e sejam paradigmas do “comportamento exemplar”.

Prefiro a vida desregrada destes espontâneos que acordam todos os dias desta semana de festejos com uma terrível cefaleia. Prefiro ver as inocentes raparigas, desabituadas a bebidas alcoólicas, a perderem o juízo com os primeiros vapores etílicos. Prefiro-os a todos, instintivos, do que os amordaçados detentores da superioridade moral. Quem o diz é alguém que teve os seus descaminhos pontuais enquanto estudante, não alguém que se entregou de corpo e alma a uma semana intensa de festejos.

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