4.5.06

Da política show off


Leio uma crónica de Vicente Jorge Silva, no Diário de Notícias, que me espicaça a curiosidade sobre o discurso político contemporâneo. O jornalista denuncia a vacuidade discursiva dos políticos, daqueles que dão a cara perante o eleitorado e o seduzem com a generosidade que caracteriza campanhas eleitorais. Investidos no poder depois de escolhidos pela maioria, esquecem-se de compromissos, fazem tábua rasa de promessas que cativaram o voto de quem os escolheu. Chamo a isto decepção eleitoral. Ou a diminuição da democracia que se exerce episodicamente, de quatro em quatro anos, quando cumprimos o “dever de votar”, esse emblema máximo da condição cívica de cada um.

Para mascarar a inépcia, mais visível quando a globalização diminui a margem de manobra de quem governa, emerge a espectacularidade da imagem. A retórica bem pensada, uma estratégia gizada ao milímetro que concentra a atenção na forma e marginaliza o conteúdo. Governar, fazer política, é cada vez mais uma arte do engano, uma sucessão de simulacros que levam o incauto no engodo. Todos os dias, adocicados rebuçados são passados pela nossa boca, com o espectáculo mediático montado, os pequenos nadas que parecem coisas espontâneas sendo encenações maquinalmente montadas pela entourage que cuida da imagem dos políticos. Nós, o público que consome o produto, ficamos com a boca presa no isco lançado.

Vicente Jorge Silva dá conta de um exemplo que ilustra a pestilência da fabricação de uma imagem: “daí que se procure esconder e disfarçar, através de uma estratégia de simulacros de marketing, os constrangimentos que hoje se deparam à acção política. É o que acontece quando assessores, consultores e tutti quanti decretam com a maior desenvoltura do mundo que “fazer jogging em Luanda vale mais que 30 discursos”. Mesmo que isso seja eventualmente factual – e porventura até é, segundo os códigos da lógica espectacular vigente –, não deixa de parecer obscena a celebração eufórica e cínica dessa constatação, como se o apagamento do valor da palavra, do discurso, a favor de um show-off inócuo e burlesco representasse o triunfo definitivo da pós-modernidade política e um progresso para a democracia”. Para os esquecidos, quem fez jogging na marginal de Luanda, sob os holofotes da comunicação social, foi o actual primeiro-ministro.

Tenho pena de não ser político, nem sequer de aspirar à ambiciosa condição de governante. Só por este critério tinha o sucesso garantido, com o meu jogging matinal de trinta minutos todos os dias da semana. Não apenas para “inglês ver”, no esporádico exercício encenado pelos gurus do marketing político do primeiro-ministro. O que interessa que o homem tenha corrido a passo de caracol e, mesmo assim, acabado a corrida com os bofes de fora, mostrando que aquilo não passava de uma prosápia?

Agora nem sequer é a força da palavra que conta – nem que seja a fatuidade da palavra, o discurso redondo, impregnado de clichés que soam a nada quando a mensagem é espremida. Agora contam os gestos estudados. É a corrida no calor húmido e sufocante de Luanda. É a abertura das portas da residência oficial do primeiro-ministro à populaça curiosa, com o inquilino a fazer de mestre-de-cerimónias, num mal disfarçado incómodo por ser coagido pelos fabricantes da sua imagem a conviver com a gentalha por entre salas, corredores e jardins do palácio. Um dia destes vamos almoçar em directo com Sócrates. Vamos com ele ao cinema, a osmose entre governante e governados, voyeurismo mórbido do público alimentado por quem o governa. Qualquer dia mostram-nos sinais que revelam alguns hábitos da intimidade do primeiro-ministro: a marca da espuma de barba, o champô que usa, os chinelos ordeiramente colocados ao fundo da cama. Humanize-se o homem, aproxime-se dos mortais que ele governa. Para a populaça o ver como um dos seus, ali, tão íntimo, tão próximo, com os hábitos comezinhos a entrarem lares adentro.

Pelo caminho, compõe-se a imagem e branqueia-se o que o governo vai fazendo (ou desfazendo, falando com propriedade). Não é tendência que revele idiossincrasia doméstica. É tendência que se estende a todo o mundo onde a escolha por eleições funciona, onde o espectáculo do marketing se impôs à substância da mensagem, da actuação política. São os políticos embrulhados num vistoso papel de celofane, vazios por dentro.

É-nos vendido o produto por que tanto ansiamos. Queremos a humanização das figuras políticas. Que interessa se elas são vazias de conteúdo, se governam num limbo muito próximo da ausência? Porventura, tudo isto funciona às mil maravilhas. Porque tudo isto é o émulo da nossa imagem. Chegando a esta conclusão, só mais uma pergunta: qual o mal dos que governam fabricarem uma imagem à imagem dos que são governados?

Olho para tudo isto e renovo o meu catecismo abstencionista.

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