Por estes dias, a notícia de que somos cábulas congénitos. Uma significativa percentagem dos inquiridos (quase 75%) confessou que recorreu aos métodos fraudulentos, que pelo menos uma vez na vida foram cábulas. Algumas reacções foram de admiração. Não sei se pelo resultado divulgado, se pela frontalidade de quem confessou a tentação do pecadilho do copianço. A própria forma como a notícia foi apresentada deixou-me confuso: não consegui perceber se a intenção era censurar o resultado, ou passar a mensagem que a prática está enraizada com tamanha expressão que os petizes podem burilar os truques sem que nada lhes aconteça – a infracção parece compensar, é a mensagem enviada.
Copiar é uma arte. A arte de ser imaginativo ao ponto de conceber os auxiliares de memória sem que o professor os consiga descobrir. A parte sublime da arte está em iludir o professor. Copiar sem que o professor desconfie. Por isso costumo dizer aos alunos, em tom de brincadeira, quando eles correm desalmadamente para os lugares na última fila da sala, que é mais fácil copiar na primeira fila, mesmo nas barbas do professor. Nesta arte o que recompensa é a descontracção. Qualquer atitude suspeita, um gesto nervoso, fermenta a desconfiança do docente, que concentra o olhar no aluno suspeito. Este fica estático durante uns minutos, com manobras evasivas. Como se estivesse mergulhado em dúvidas profundas sobre o que é perguntado no teste. Mas apenas à espera que o professor deixe de o contemplar com o olhar assassino que o paralisa.
A arte de enganar o professor. Mas não só. É também o dom de enganar os colegas. Quantas vezes os “honestos” (aqueles que não copiaram, ou que não copiaram com tanta extensão) protestam porque o colega do lado não estudou nada, colou-se aos auxiliares de memória aproveitando a distracção do professor, e tirou melhor nota? Já soube de histórias ainda mais obtusas. Cábulas profissionais, não predestinados para o estudo, ou entregues a tarefas mais nobres (que isto do estudo é uma perda de tempo…), parasitam um colega, copiam-lhe o teste, e o acaso encarrega-se de atribuir uma classificação melhor ao parasita. O que foi parasitado reclama, sente-se injustiçado. Questiona o professor pelos critérios de avaliação. Protesta a injustiça. Raramente denuncia o parasita, pois a solidariedade corporativa fala mais alto. É um risco da actividade de cábula – neste caso, um risco para quem consente ser parasitado.
O mais curioso é que os cábulas se enganam a si mesmos, sem o perceberem. De cábula em cábula, passando os calafrios de quem se arrisca a ser apanhado a meio do exame na posse de auxiliares de memória, os cábulas profissionais vão obtendo aproveitamento sem saberem o mínimo. Servem-se de meios fraudulentos para dobrar as dificuldades de mais uma disciplina. Não é o seu conhecimento que está a ser avaliado. O problemático está na auto-ilusão que se apodera dos cábulas. Eles acham que estão a enganar o professor. Alguns fazem disso motivo de garbo, como se fossem um D. Quixote dos bancos da universidade que arrebata a Dulcineia temerosa (mais uma disciplina do plano). Quando, no fundo, se enganam a si mesmos. Não percebem que quando saírem da universidade, canudo na mão (se algum dia isso acontecer), entram na selva do trabalho e não há lugar aos expedientes a que se habituaram enquanto estudantes. Porventura confiam na capacidade de improvisação para saldarem com êxito os desafios. Entregam-se nas mãos do aleatório. Por vezes os resultados são um grande amargo de boca.
Tenho colegas que convivem pacificamente com a arte de copiar. Argumentam que copiar tem algo de pedagógico: explicam que enquanto o aluno gasta tempo a preparar os auxiliares de memória toma contacto com as matérias da disciplina. Logo, não vai virgem (de conhecimentos) para o exame. Percebo a teoria. Só me custa a aceitar que durante o exame esse aluno tire da algibeira os auxiliares de memória, os esconda algures e se sirva deles para responder a uma pergunta que é incapaz de responder sem a ajuda dos copianços. Isto é batota. Dúvidas houvesse porque nos colamos o rótulo de povo Chico-esperto, a confissão da fraude académica desfazia-as em duas penadas.
Regresso à notícia que revela a percentagem astronómica que confessa ter copiado nos tempos de estudante. Por um momento, faço de conta que este governo é a representação fiel do povo português. Portanto, três em cada quatro governantes terão copiado na escola e na universidade. São, caso ainda restassem dúvidas, uma fraude em pessoa. E deito-me a imaginar: qual a minoria que se encaixa na escassa percentagem que nunca copiou?
1 comentário:
Deve ser um exercício engraçado. Teria interesse se publicasse um post com os resultados dessa original "contagem de carneiros".
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