26.5.06

Deslumbramentos idiomáticos (“queensdom”)

No rádio, uma música desconhecida. Chama-me a atenção o refrão, quando a intérprete repete a palavra “queensdom”. Procuro uma tradução. Não existe. Nem uma tradução literal, como tantas vezes se faz sem cuidar de verificar se a tradução faz sentido quando colocada no devido contexto; nem sequer uma tradução contextual. Uma palavra que existe em inglês não encontra correspondência no idioma português.

Dizem os adeptos da portugalidade que também temos termos que são exclusivos da língua portuguesa. Remetem-nos para a palavra “saudade”, ao que dizem insusceptível de tradução para outro idioma – pelo menos nos idiomas mais correntes. Recorro ao dicionário. Reparo que o cruzamento de dicionários – português-inglês, primeiro, e inglês-português, depois – encaminha para um desencontro. Introduzo a palavra “saudade”. Em inglês corresponde a “longing” e “homesickness”. Descarto o último termo, na verdade uma palavra compósita (“a falta que a casa nos faz”, numa tradução arrevesada). Pego em “longing” e mudo-me para o dicionário de inglês-português. O resultado é este: “anseio, desejo veemente”. Contrasto “saudade” com o dicionário de língua portuguesa: “melancolia causada por um bem de que se está privado; nostalgia; mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções; pesar”. A tentativa de arranjar sinónimo para “saudade” em inglês leva a um resultado que não coincide com o significado de saudade.

Da mesma forma que os povos que falam inglês não são acometidos por “saudade”, nos países da língua portuguesa nunca seria possível termos um “queensdom”, acaso eles regressassem ao regime monárquico. À letra, “queensdom” é o domínio da rainha, aquilo que se convencionou chamar, na língua portuguesa, “reino” (o equivalente de “kingdom”). Mesmo em países que têm uma rainha como primeira figura do Estado (o Reino Unido e a Holanda são os exemplos que me ocorrem) a língua portuguesa só encontra forma de os caracterizar como “reinos”. Ainda que o suserano seja uma rainha. O domínio não é de um rei, e ainda assim o país chama-se reino.

O exemplo ilustra o enviesamento do idioma português. Ainda está dominado pela indiferenciação de género, algo que cai no campo do politicamente incorrecto. Os linguistas deviam passar por um período de reciclagem, receber a influência dos novos ventos que forjam a igualdade de sexos – até na língua isso será de bom tom. Basta ver a moda nos estudos científicos escritos em inglês, onde os exemplos que apelam à utilização de um sujeito surgem sempre com dupla possibilidade sexual. Por exemplo, quando em português dizemos “o seu” e tanto vale para o feminino como para o masculino, em inglês está na moda escrever “her/his” para acautelar ambas as possibilidades e não destacar um sexo em detrimento do outro.

Esta abertura à diversidade de género na língua é uma riqueza que a língua inglesa comporta. No universo da língua portuguesa ainda estamos nas trevas. O artigo indefinido usado no masculino é sinal de indiferenciação de género – mas a verdade é que se usa no masculino, que tanto vale para o masculino como para o feminino. Se nos queremos referir à humanidade, a palavra “Homem” (com maiúscula) vem à superfície. É verdade que até em inglês há destas manifestações bolorentas (diria uma feminista convicta) de machismo. Humanidade é “mankind” – em tradução literal, a “espécie do Homem”. Dir-se-á que as trevas remontam às origens etimológicas, ao latim que designou o homo sapiens, o homem de Neandertal, etc.

A verdade é que “queensdom” não consta do dicionário de língua inglesa que consultei. Será um neologismo, ou a adaptação de uma palavra. Pelo menos essa adaptação é possível em inglês. Mas vedada em português. Ainda que se faça um esforço para tentar adaptar “queensdom” para a língua portuguesa, a tarefa é infrutífera. Se “reino” se decompõe em “rei” e “no” – e aqui “no” será o referencial ao domínio (do rei) – como construiríamos a palavra adaptada com rainha? Entramos no domínio da impossibilidade. Quando muito teríamos que responder: “domínio da rainha”, tradução literal de “queensdom” (“dom” para “domínio”, “queen” para “rainha”). Mas já não seria uma palavra (como “reino” é), mas três palavras.
Lição: a comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres (e esta designação não é, em si, discriminatória? O sexo masculino não tem direitos?) tem aqui a sua próxima cruzada: pressionar a academia das letras para que se estude a melhor maneira de desfazer as desigualdades de género que enxameiam o idioma português. Será altura dos discípulos de Lindley Cintra varrerem a poeira dos calhamaços e darem vivacidade à língua, de a reconciliar com os parâmetros do politicamente correcto que se impõe. Para a língua ser representativa da diversidade sexual. Para não ser uma fonte de discriminação de género.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Confesso que fiquei atónito com este post. O Paulo preocupado com alegadas discriminações de género de natureza linguística? Lembrei-me de um taxto lido há alguns anos em que organizações feministas dos EUA alegavam que se devia deixar de usar o termo "Lord" (Senhor) e utilizar o termo "God" (Deus), dado que Ele não deveria ter género. E para tal, queriam alterar a Bíblia!
Francamente, penso que as línguas evoluem ao longo dos tempos de acordo com os costumes e as necessidades das sociedades, e não de acordo com a agenda sócio-política de determinado grupo de radicais.
Quanto ao Inglês, sendo uma língua mais dinâmica e adaptável do que o Português, devo dizer que o Reino Unido, governado há mais de 50 anos por uma Rainha, continua a ter por designação "United Kingdom" e nunca ouvi falar em qualquer movimento relevante no sentido de alterar a designação. "His and her" são utilizados correntemente desde os meus bancos de escola e muito antes disso certamente. Aliás, nem os animaizinhos são discriminados no Inglês, porque também existe o "its" para designar a pertença a animais ou coisas.
Enfim, quando já me lançava neste "comment", ocorreu-me a possibilidade de o paulo estar a usar da sua conhecida ironia na abordagem deste tema. Apesar dessa esperança, resolvi deixar este comentário, mesmo correndo o risco de ter sido obtuso à sua eventual ironia.