26.3.07

Cinquenta anos de União Europeia e a tribo do futebol: uma dança descompassada


Ontem a União Europeia celebrou o quinquagésimo aniversário. Solenidade. Discursos oficiais enaltecendo o espírito europeísta. Algum do jargão europeísta foi repisado: unidade na diversidade, legado de paz duradoura, aprendizagem para a convivência com o outro, fronteiras diluídas, prosperidade que ungiu os países mais atrasados com o selo da solidariedade dos mais ricos. Uma Europa agasalhada pelo manto da construção política em que se transformou a União Europeia, apesar das crises, dos retrocessos, dos egoísmos nacionais.

Cinquenta anos de passado em comum. Valha a verdade que o meio século é uma miragem: apenas cobre os seis países que fundaram as Comunidades Europeias. Aos outros, os que foram aderindo ao longo do tempo, participação mais recente. Não há intenção de depreciar a celebração de meio século de concórdia, nem de ofuscar os espíritos vanguardistas (Monnet, Schuman) que fermentaram o que é hoje a União Europeia. Com sucessivos alargamentos, os cinquenta anos de União Europeia são um terreno de heterogeneidade. Os países têm diferentes abordagens à integração europeia. Uns mais colaborantes, outros mais renitentes; uns, com uma tradição de cooperação arreigada pela mais antiga participação, predispostos a colocar o bem comum acima dos interesses nacionais; outros, porventura por serem neófitos na União, olham para a União com o oportunismo de quem vê nela um manancial de regalias sem reciprocidade ao nível dos deveres.

O balanço positivo não prejudica a identificação de tropeções, de percalços, de tantos momentos de egoísmo nacional que ofuscam o espírito europeísta. Por mais que vingue uma retórica europeísta, ressoando uma vanguarda de comportamentos que o cidadão comum não perfilha, são os próprios políticos dos países membros que não hesitam em colocar os interesses nacionais à frente do interesse comum da União. Nem que depois, nos momentos que convocam a solenidade das comemorações, venham proclamar os valores que sedimentam a União. Valores que remetem para o agnosia quando um passo em frente na edificação da União implica prejuízos nacionais.

Não me admira que a União Europeia continue a levantar desconfianças na maioria da população. Ao corporizar o espírito visionário de uma realidade que rompe com tradições ancestrais, a União mexe com hábitos estabelecidos. Não se pede aos povos europeus que sejam europeus e só depois nacionais. Não se pede que desviem as lealdades políticas dos respectivos países para a União, como pretexto para reforçar a legitimidade democrática da União. Nem sequer está em causa a construção da União Europeia como um super Estado europeu, um sucedâneo dos Estados Unidos da Europa.

Os que se situam na vanguarda reclamam um genuíno nacionalismo europeu. Os preconceitos enraizados impedem um passo em frente: supõe-se que implica a anulação da pertença nacional e a sublimação da entrega dos povos nacionais à União Europeia. O nacionalismo europeu encerra o equívoco da semântica: “nacionalismo” presume a construção de uma “nação”, o que está fora do horizonte da integração europeia. Neste contexto, nacionalismo desafia os cidadãos a uma pertença a valores comuns no quadro da participação dos países na União Europeia. É este o significado de nacionalismo europeu: reconhecer o que há de comum entre os povos europeus e que tanto contribui para uma caminhada que os irmanou numa paz duradoura. É esta entrega que se reivindica: das pessoas a valores, não a construções fictícias (como o são os Estados ou outras entidades de natureza semelhante). O nacionalismo europeu complementa a pertença nacional, não a destrói. Enfatiza o que nos une - que é muito, e importante - sem que sejamos levados a sobrevalorizar o que nos distingue (que é residual).

As pessoas não estão preparadas para a ruptura com o passado. Continuam enfeudadas aos dogmas da nacionalidade. Os egoísmos nacionais, o obstáculo imaginário a mais Europa, têm um sentido ascensional: vêm de baixo para cima, dos povos para os dirigentes, que são contaminados com o espírito. Acontece nas coisas mais corriqueiras, como o futebol, nas competições que colocam em campo selecções dos países. A rivalidade ancestral vem ao de cima. Por mais que o espírito europeísta flutue nos discursos oficiais, é em alturas de competições entre países que descemos à terra: esse europeísmo é uma utopia, mesmo que já tenham passado cinquenta anos de integração europeia. As rivalidades nacionais despertam o nacionalismo primário que pulsa nas veias. É nessa altura que se percebe como o cidadão médio não está preparado para conviver com o outro, para tolerar o que tem uma nacionalidade diferente.

O que se viu na semana passada, com grotescas exibições de nacionalismo primário de belgas e portugueses (que iam jogar entre si), é um exemplo disto. Da minha parte, vergonha dos laivos de nacionalismo suicida. No rescaldo, mais exibições lamentáveis: da vingança (pelas manchetes dos jornais, enaltecendo a esmagadora vitória dos portugueses) e do falso fair play – daquele fair play que se exibe porque correu tudo bem. Como é lindo o fair play quando o impomos aos derrotados! Não aprendemos nada com a História.

2 comentários:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Vejo que "caiste na real".
Não obstante, permite-me que te cite: "uns, com uma tradição de cooperação arreigada pela mais antiga participação, predispostos a colocar o bem comum acima dos interesses nacionais." Referes-te a quem? À simpática, solidária e desprendida França que até baniu a "raison d'état do seu vocabulário? Ou será à Holanda que torpedeou o Tratado Constitucional e queria limitar drasticamente as contribuições para o orçamento da UE a 1% do PIB? Talvez a errática Itália? Ou a furiosamente federalista Bélgica, tentando dissolver o seu país numa Federação Europeia, antes que ele se parta em dois?
São 6 beneméritos os fundadores da CECA.

PVM disse...

Rui, talvez fosse altura de te informares do que é a integração europeia. E de olhares para a União Europeia sem os preconceitos de um soberanista. Porventura isso acontece devido à tua formação académica…
PVM