29.6.07

Profissão: socialite


Os jornais costumam apresentar pessoas pelo nome e com indicação do que fazem na vida. É-se empresário, funcionário público, professor, arquitecto. É ingrediente obrigatório da forma como somos apresentados em público. Não basta saberem quem somos, através do nome; querem saber o que fazemos na vida. Por termos a mania das grandezas, tanto o respeito por quem ostenta um canudo; ou para tirar partido de um estatuto de superioridade intelectual, quando alguém é auscultado sobre assunto corrente e apresenta o canudo como cartão-de-visita onde se baseia tanta sabedoria incontestável.

As habilitações multiplicam-se, agora que têm prosperado licenciaturas obtusas, que a ciência se abastarda e surgem as mais impensáveis pós-graduações. A diversidade de ocupações profissionais é uma consequência. Surgem profissões bizarras – engenheiros do ambiente, técnicos de higiene e segurança no trabalho, cinesoterapeutas, gurus disto ou daquilo, consultores de imagem, free lancers de muita coisa. O zénite do insólito foi atingido ontem, quando uma famosa personagem do universo cor-de-rosa lisboeta era apresentada numa revista, seguindo os costumes, pelo nome e pela função: “Lili Caneças, socialite”.

Ainda não tive a oportunidade de consultar as tabelas das finanças que desfiam as imensas actividades profissionais com código numerado e tudo. Porventura lá há-de aparecer a função de socialite. A crer pelo zelo da revista, é sinal de que a função conquistou foros de emancipação no universo das artes profissionais. As feéricas figuras que desfilam pelas revistas cor-de-rosa podem adicionar ao cartão-de-visita: “socialite”. Para certos sectores, que avidamente consomem as revistas cor-de-rosa e que se ambientam ao colorido das festas sociais onde se passeiam vaidades fátuas, ser socialite ou é aspiração máxima ou sinal de genuflexão respeitosa. Lá na tribo onde todos pululam, ser socialite é atingir os píncaros da escala, colocar-se bem no topo da pirâmide.

Acho interessante que alguém, num órgão de comunicação social, caucione a qualificação. Pode sempre acontecer que o jornalista pertença à tribo, esteja habituado a frequentar círculos que consomem tempo a comentar as trocas e baldrocas do imaginado jet set, como se isso tivesse mais importância que, por amostra, a crise no Médio Oriente ou a tensão nuclear provocada pelas ameaças do Irão. Pode dar-se o caso do jornalista estar distraído. Ou também pode ter sucedido que a figurinha, desafiada a dizer o que faz na vida, tivesse respondido “socialite”. Confere-lhe respeito entre a numerosa seita que vagueia nos néons das festas onde só têm acesso personagens maiores do estrelato social.

Não tenho nada contra as pessoas que vivem de rendimentos (só uma salutar inveja…). Desconheço – e nem me interessa saber – se a autoproclamada socialite se encontra nestas condições. Suponhamos que não. E aceitemos a informação que nos é veiculada: a senhora exerce as funções de socialite. De onde vêm os rendimentos que provêm o seu sustento? Que, diga-se à margem, é um sustento de imodéstia, pois esta gente gosta de luxos e de saciar vícios acima das disponibilidades de uma certa burguesia já abastada. Por falta de conhecimentos do meio – e por assim me querer manter, por imperativos de sanidade mental – ignoro se a presença dos socialites em festas cheias de glamour é paga e a peso de ouro. Já ouvi dizer que sim. Que estas figuras abrilhantam eventos com a sua presença. Onde estão, é garantia da presença de fotógrafos ávidos em disparar a torto e a direito, com a certeza que haverá lugar avantajado em páginas das revistas da especialidade. Ora isto tem um preço, ao que consta elevado. Eis a remuneração dos socialites.

Ao início, quando punha os pensamentos em ordem sobre o assunto, o primeiro impulso foi associar socialites e parasitas. Estava errado. Eles são a antítese do parasitismo. São chamarizes da atenção alheia. Os parasitas são aqueles que os cortejam, sempre na ânsia de serem captados pela lente da máquina fotográfica, nem que seja num canto quase anónimo da enésima fotografia que mostra a socialite em causa. Mas é bizarro que alguém se faça passar por socialite. É sinal da mesquinhez inata, de que não nos conseguimos desprender, louvar o escol. O que é um dia mergulhado num pesadelo sem fim? Imaginar um acontecimento onde confluíssem socialites e a imensa corte, em alegre convívio com destacados membros da esquerda caviar. Uns e outros frequentam locais diferentes e não nutrem estima recíproca. Não sei explicar porquê, mas acho que estão bem uns para os outros, como se fossem mão e luva a preceito.

De repente vem à lembrança a resposta da tal socialite a uma pergunta qualquer. A senhora, que agora se pode rir a pulmões cheios que já não enruga a pele, dizia que estava cansada da ingratidão pátria e que ia exilar-se em Nova Iorque. Ao que eu acrescentava: e não se dê ao trabalho de regressar!

28.6.07

Os contratos são para cumprir?


A palavra vale mais que a assinatura num papel – é regra de conduta, uma espécie de código de honra que, fosse levado a sério, anunciava a desgraça dos juristas. Então seriam dispensáveis, os juristas, por deserção das suas funções. É por isso que faz algum sentido a convicção popular de que um jurista existe porque há leis para quebrar. Quando o problema se põe ao nível das pessoas comuns, os tribunais estão por aí para ajuizar conflitos. Tudo se complica quando o papel de infractor é desempenhado por entidades que se acham impunes, como se vogassem acima das normas que elas mesmas fazem gala de coagir os outros ao respeito.

Falo dos governos. E dos partidos políticos, que antes de chegarem ao ambicionado cadeirão do poder se desdobram em promessas mil. Formalmente, os eleitores escolhem entre programas eleitorais concorrentes. São seduzidos pela bondade das promessas. As eleições são precedidas por um combate sem tréguas no plano das promessas. Os concorrentes rivalizam num concurso de promessas, onde probabilidade de execução se confunde com pura demagogia. Há quem diga que a crise da democracia está muito na fase que antecede o sufrágio: no concurso de promessas eleitorais, os partidos resvalam para a fantasia e o eleitor médio cai no engodo. Daí a escolhas adulteradas por uma visão ofuscada da realidade, influenciada por promessas faraónicas que são o isco mordido pelos incautos, vai um passo só.

Cada vez mais é assim que se ganham eleições. Ao que se junta o comportamento, tão estudado pelos politólogos, de “votar com os pés”, ou seja, quando se escolhe A apenas para impedir B de continuar no poder ou de lá chegar. Como se estes ingredientes falaciosos não fossem suficientes, mascarando a escolha de quem há-de governar, os problemas prolongam-se na fase posterior à eleição. A fase da governação, que repousa no mandato conferido pelos eleitores, deve coincidir com o programa eleitoral dos vencedores. O mandato supõe uma escolha baseada na confiança da maioria. O voto é o processo de intermediação que possibilita a delegação de confiança dos eleitores naqueles que os vão governar. É um contrato. Não é preciso ser versado em leis para discernir que os contratos exigem cumprimento. Senão, os que se afastam do contrato devem ser chamados à pedra.

Por todo o lado, a democracia é demolida pela corrupção do contrato eleitoral. Promessas feitas, promessas quebradas assim que os escolhidos se instalam na casa do poder. O que suscita interrogações: o mandato quebra-se por afastamento das promessas que possibilitaram a conquista do poder? Teriam chegado ao poder caso não tivessem feito as promessas esquecidas? Saberiam à partida que o contrato firmado com os eleitores seria impossível de respeitar, caucionando um embuste de todo o tamanho? Como se sentem os eleitores ao saberem que uma, duas, três cláusulas do contrato eleitoral que tanto os seduziram são promessas vãs? Os que ainda continuam a acreditar na bondade do regime poderão replicar que a desilusão há-de ser o lenitivo para votar com os pés. Quando o contrato é esquecido, esboroa-se a confiança e os eleitores tiram o tapete aos que escolheram na eleição anterior. É uma das virtudes do sufrágio popular: a alternância no poder. Contudo, a teoria não se concilia inteiramente com a prática: no nosso caso, a alternância é sempre entre os mesmos, como se fosse uma escolha entre Dupont e Dupont.

Faz parte da retórica dos defensores da democracia: o desempenho do governo é avaliado no seguinte momento eleitoral. A inquietação que este raciocínio me traz é o longo hiato temporal em que se esvazia o poder de escrutínio dos eleitores. É então que passamos da qualidade de eleitores à condição de governados. De cidadãos activos, empossados no direito de voto, a cidadãos remetidos à passividade – nuns casos complacente, noutros casos revoltada. Ora esta democracia é uma democracia amputada. Principalmente quando a menoridade cívica dos governantes semeia no espírito uma confusão de conceitos: exercer o poder não é abusar dele. Em sítios que vegetam na infância democrática, maiorias absolutas conduzem inevitavelmente ao abuso do poder, com um rosário de exibições de autoritarismo inconsequente.

Os detentores do poder devem estar permanente sob escrutínio. Não apenas de quatro em quatro anos, no momento do sufrágio. É que, desse modo, o escrutínio se esgota no preciso instante em que depositamos o voto na urna. Só resgatamos esse poder muito mais tarde, quando formos chamados de novo a escolher quem vai governar. Faria sentido aplicar as regras que regem a convivência em sociedade. Se o incumprimento de contratos é motivo de censura social, observável pela condenação do infractor em tribunal, o afastamento do contrato eleitoral devia ter a mesma consequência. Alguns poderão torcer o nariz a esta proposta. Dirão: isso traria instabilidade política. Contraponho: pelo contrário, seria o incentivo para os governantes serem responsáveis por aquilo que prometeram. O que é mais grave: um mentiroso ou um incompetente?

O contexto: a seita socialista que prometeu, prometeu e vai governando às avessas das promessas. Dois exemplos, só dos mais graves: IVA aumentado e, o mais fresco de todos, a revisão do código do trabalho. Neste domínio, tanto se opuseram ao código quando estavam na oposição e agora propõem-se revê-lo na ousadia que o anterior governo não conseguiu ter. Sintoma de que somos uma democracia ainda infantil: a impudência compensa, como desconfio que será provado nas eleições em 2009.

27.6.07

“Fazer sexo”?!


A inspiração vem daqui: “apanhada a fazer sexo com menor dentro de carro”. Aconteceu, como sempre acontecem estas coisas bizarras, nos Estados Unidos. São uma espécie de Entroncamento em ponto grande, o país onde os fenómenos mais insólitos ocorrem com uma frequência estonteante. E aconteceu, também, haver um jornalista que leu a notícia redigida em inglês e tratou de cair no alçapão da tradução literal.

Aposto que no original devia constar a expressão “make sex”. Não sendo especialista em filologia da língua inglesa, desconheço se “make sex” reproduz com rigor o que a expressão que significar. O que sei é que traduzir para “fazer sexo” resulta em algo estranho. O problema não é apenas do jornalista que pegou na notícia e cortou a eito, pondo uma tradução à letra. “Fazer sexo” é expressão que se lê e ouve com frequência. Por vezes, convém determo-nos nas palavras, nas fórmulas que resultam da sua articulação. Acho inusitado que alguém considere que “faz sexo”. Quando leio esta expressão, imediatamente assoma à superfície uma imagem pouco condizente com o que é o sexo. Quando alguém diz “faço sexo”, é como se o sexo fosse tratado como um processo produtivo, com matérias-primas e a frieza das coisas que se fabricam numa linha de montagem. O sexo fabricado.

“Fazer sexo” arrasta a impessoalidade do acto. Implica um processo mecânico. Ora o sexo não é um processo mecânico, é um acto humano. Quando somos bombardeados com o “fazer sexo”, é como se houvesse um manual de instruções – eu sei que os há, Kamasutra e quejandos – que ensine a juntar todos os ingredientes num cozinhado bem amanhado. E tudo seria treinado, maquinal, algo que uma engenharia qualquer teria o condão de dissecar em ciência exacta. Tive a tentação de asseverar: “fazer sexo” atira o acto para uma dimensão animal. Repensei a tese: há algo de animalesco no acto sexual; e mesmo os animais não fazem sexo, como se o “sexo” pudesse ser retratado como um martelo pneumático que avança, cadenciado, transformando as matérias-primas no produto final.

E depois há uma camada mais profunda: a etimologia de “sexo”. Tanto pode valer para o acto sexual como para o órgão sexual. Se for retido o significado de órgão sexual, empregar a expressão “fazer sexo” é um equívoco. Até parece que duas pessoas (ou mais…) que estejam a “fazer sexo” são operários de uma fábrica que produz os órgãos sexuais dos seres humanos. A ideia é bizarra, bem o sei. Tão bizarra quanto o é acalentado pela idiotia da expressão “fazer sexo”.

Curiosamente, terá sido uma distracção momentânea do fazedor da notícia (ou da sua tradução para a língua portuguesa). Logo a seguir, na narração do facto, nunca mais aparece a expressão “fazer sexo”. Primeiro está escrito que a senhora terá “sido apanhada em flagrante a ter relações sexuais com um rapaz de 14 anos, num carro”. Depois informa-se que uma patrulha da polícia que fazia a ronda “viu duas pessoas em pleno acto sexual”. Fiquei sossegado. Afinal não fazemos sexo; temos relações sexuais, praticamos o acto sexual. Ou, para sermos mais eloquentes, praticamos o coito. Também podemos ser prosaicos e descambar para a brejeirice popular, usando as imensas expressões que reproduzem o acto, desde as que fazem corar senhoras decentes e militantes da Opus Dei até às mais imaginativas, que se socorrem da riqueza metafórica da língua.

Os líricos do costume, que denunciam a impiedosa materialização das pessoas causada pelo incomodativo capitalismo e o seu braço contemporâneo (a globalização), estarão preparados para diagnosticar os sintomas do frequente uso da expressão “fazer sexo”. Dirão que o sexo se vulgarizou, em mais um sintoma do terrível hedonismo que anda de braço dado com a deriva individualista (que confundem com egoísmo). Dirão que a promiscuidade alimenta a transformação do sexo nisso mesmo, em “sexo” impessoal que quase se confunde com a satisfação de uma necessidade fisiológica. Esses puristas terão nos guardiães da moral religiosa aliados preciosos. Estes hão-de continuar a batalhar pela associação necessária entre “sexo” e “amor”, apontando o dedo ao “fazer sexo” como mais um sinal de como a prática do dito se banalizou. Não haverá quem falte para denunciar a pornografia, a prostituição, o tráfico de “carne branca” como sinais de como andamos por aí a “fazer sexo”.

Por mim, deixo os impetuosos censores entregues à árdua tarefa de vigiarem a consciência alheia. Mais mundano, apenas considero que quem diz ou escreve “fazer sexo” está dominado pelo facilitismo da tradução de “make sex”. Sem elaboradas interpretações bem ao jeito dos profissionais que se afadigam em mostrar que há chifres na cabeça do cavalo.

26.6.07

Afinal também há gravatas no armário


Ontem tivemos direito a desenjoar da imagem repetitiva do “comendador Berardo”. Em vez do ar modernaço, que tão bem emparelha com o aspecto da despenteada ministra da cultura, o “comendador” aperaltou-se com camisa engomada e gravata discreta. A solenidade exigi-lo-ia, decerto, ou não fosse dia de inauguração do museu Berardo. Ou não fosse, segundo o veredicto de diversos especialistas, o dia em que Berardo lacrou com chave de ouro mais um negócio da China. Só que desta vez, ainda segundo os tais analistas, somos todos nós, contribuintes, que alimenta o lucro do “comendador”.

Berardo estava, donairoso e embevecido, ao lado do timoneiro. O protocolo exige respeito pelas hierarquias. Ao timoneiro a palavra em primeiro lugar, com o consentimento respeitoso do “comendador”. Não houve surpresas no discurso de circunstância, em resposta às perguntas da jornalista, às perguntas que pareciam estudadas com a habitual precisão cirúrgica que a imagem do primeiro-ministro impõe. Sua excelência sentenciou: Lisboa passa a pertencer ao roteiro cultural europeu, que até agora parava em Madrid. Porventura distraída – e não há-de apanhar um puxão de orelhas das chefias? – a jornalista da RTP cometeu um deslize ao informar que alguns especialistas já vieram a público anunciar que a colecção Berardo não está sequer entre as cinquenta maiores da Europa.

Os que se insurgem contra os velhacos do Restelo (categoria em que me hei-de incluir - Velhacos do Restelo, bem entendido) dirão que os abutres do costume não perdem oportunidade para tripudiar a grandeza pátria. Daqui acalmo a fúria patrioteira: não se trata de desmerecer a obra, apenas de a colocar no seu devido lugar. Se os especialistas não põem a colecção Berardo entre as cinquenta maiores da Europa, porque há-de, triunfante, o timoneiro da pátria tecer loas excessivas e engrandecer o papel cultural de Lisboa sem haver razões para tal? A menos que o timoneiro seja um conhecedor da poda.

Há alguma razão nos que se incomodam com os arautos da desgraça, que reduzem a portugalidade à expressão da insignificância? Concedo, há – e, repito, sou dos tais velhacos do Restelo com um pérfido gosto em zurzir os garbosos feitos da pátria. Mas quando vejo exultações por grandezas fátuas, por feitos que só no subconsciente dos fracos aparecem como homéricas obras, é de provincianismo que se trata. Não aprendemos a conviver com a expressão de pequenez a que fomos acantonados depois da perda do império. Queremos, à viva força, rivalizar com os grandes, quando a distância que nos separa é inalcançável. À medida que a poeira da excitação assenta e chega a introspecção da pequenez, as dores são maiores.

O “comendador” teve a palavra a seguir ao timoneiro. Jactante mas boçal, como sempre. A jornalista, no segundo deslize que perturbou a sumptuosidade da cerimónia, interrogou o mecenas: afinal, fez ou não um negócio da China com o incauto governo? O engravatado Berardo, meio atrapalhado, negou. Que tinha sido um mau negócio para ele, por ter cedido às pressões do Estado. Meio atrapalhado na resposta, sem dar para perceber se os pés pelas mãos apenas espelham a boçalidade congénita ou se havia ali uma resposta genuína. Neste caso, dir-se-ia que Berardo foi um diplomata por excelência. Como ao seu lado estava o timoneiro e a desgrenhada ministra da cultura, ficava-lhe mal anuir naquilo que os especialistas são consensuais em diagnosticar: o museu Berardo foi uma negociata para ele e um péssimo negócio para o Estado.

A gravata que apertava o pescoço do “comendador” não disfarçava a pesporrência: rematou a entrevista anunciando que condescendeu no mau negócio em homenagem à cultura. Um mecenas é um mecenas. Mas o homem de negócios não se sobrepõe à qualidade de mecenas? Por estes dias vamos estando habituados a ver Berardo cintilando uma imagem de generosidade: foi a OPA ao Benfica (para fazer do Benfica o quê, se já todos sabemos que é o “maior clube do mundo”?), agora é a jóia da coroa, com a exposição da sua colecção, que fica à disposição do grande público em vez de continuar encafuada, e a ganhar mofo, numa cave escura.

No final, foram todos à sua vida. Todos sorridentes, dando a indicação de que todos estão contentes com o negócio. Berardo terá ganho – e os analistas parecem consensuais na conclusão. Pelo ar feliz do primeiro-ministro e da despenteada ministra da cultura, o “país” também terá conquistado a sua quota triunfal. Resta saber quem é o “país”: se a imagem do país, nem que seja contra a factura elevada que daqui a dez anos será paga (mais de trezentos milhões de euros para uma das contas bancárias do “comendador”, quantia que, dizem outra vez os especialistas, sobreavalia a colecção Berardo); ou se apenas a cosmética dos actuais governantes, tão preocupados com sucessivos face lifting que garantam reeleição futura.

Por fim, soubemos que Berardo não tem no armário apenas a fardamenta do costume – fato escuro e t-shirt preta. Também há gravatas, que às vezes convém alindar a imagem com um pouco de verniz.

25.6.07

A igreja com asinhas


Já nem o insólito acomete: o Vaticano perora sobre comportamentos rodoviários. Aliás, quem não está habituado à pletórica actividade eclesiástica, que perora sobre tudo e mais alguma coisa, sempre com o direito de doutrinar aspectos que pertencem à mais profunda intimidade da pessoa? As autoridades eclesiásticas parecem ignorar que há espelhos que podem ser colocados diante das suas caras; para verem a figura ridícula de que se vestem quando teimam em condicionar as consciências. E o que é mais problemático é que a teimosia é invasiva de crentes e não crentes. As pastorais e encíclicas e oratórias de bispos e padres deviam começar assim: “esta mensagem destina-se aos católicos”.

Desta vez a igreja lembrou-se de dissertar sobre a sinistralidade rodoviária. A reboque das autoridades seculares que perseguem automobilistas em velocidade excessiva, o Vaticano embarcou na moda e decidiu dar prova de vida através de uma pastoral dirigida a quem tem um volante na mão. O habitual terrorismo intelectual, agora numa expressão que roça o risível: as autoridades eclesiásticas esgotaram o manancial de preocupações com as dores de alma que apoquentam o rebanho que apascentam? Sinal dos tempos, a igreja entra em domínios que sempre foram pertença das autoridades seculares. Faltará a estas exibir ciúme, reclamando pela intrusão em matéria que sempre lhes foi reservada.

Os ideólogos residentes no Vaticano consideram que o excesso de velocidade é um pecado. E as manobras arriscadas que põem em perigo a vida de outros automobilistas também são pecaminosas. É enternecedora esta tentativa de desenhar uma simbiose entre a moralidade católica e o dever perante a lei. Desde que modernidade trouxe a laicização do Estado – e, por arrasto, do direito – que se estabeleceu uma fronteira nítida entre direito e moral. A igreja quer agora misturar a moralidade com o respeito à lei. É uma curiosa deriva que desbrava novas investigações para teólogos e politólogos: até que ponto isto será um retrocesso da igreja, convencida que a moral católica se deve aproximar do império da lei? Ou se é apenas um tacticismo eclesiástico, atando o respeito à lei a padrões morais que entram na metafísica.

Seja o que for, as autoridades políticas que concebem impiedosas medidas de combate à sinistralidade rodoviária terão recebido com agrado este inesperado aliado. E um aliado de peso. Se a coação da lei e das penas cada vez mais graves a que se sujeitam os condutores que prevaricam não fosse suficiente – porque continuam elevados os números de acidentes e de vidas ceifadas na estrada – pode ser que agora as pessoas reconsiderem a ousadia rodoviária. Sobre elas pesa o estigma do pecado, essa lancinante espada que levará a pensar duas vezes antes de deslizarem para além da fronteira da ilegalidade.

Se o mundo fosse o lugar idílico congeminado pela moralidade asséptica de bispos e cardeais, dentro de dias seria possível ver os resultados da pastoral rodoviária: todos os automóveis a circularem na auto-estrada dentro do limite dos 120 quilómetros/hora, ninguém ultrapassaria pisando riscos contínuos, ninguém estacionaria em lugares proibidos (e Lisboa: ou desaparecia do mapa, ou se convertia a outra religião), os condutores seriam todos urbanos pois a linguagem ofensiva deixava de ser o veículo de comunicação preferido. A pastoral desce a este nível de pormenores: como o calão é lesivo da moralidade católica, franqueando o umbral do pecado, até por aí a pastoral aconselha os membros do rebanho a mudarem comportamentos, domando a linguagem indecorosa.

Até agora, os católicos tinham variadas fontes de preocupação para fugirem da voragem pecaminosa. Só não sabiam que a partir do momento em que pegam no volante as zelosas e vigilantes divindades estão de bloco de notas aberto à espera de anotar os deslizes que contabilizam mais um pecado para o rol que pode afastar da redenção celestial. Redobram-se as dores de cabeça dos católicos. Pela parte que toca, talvez por ser ateu e por cultivar um arreigado espírito de contradição, sinto-me tomado por uma intensa pulsão pecaminosa: apetece-me pegar no carro, ir à auto-estrada mais próxima e acelerar, acelerar até aos duzentos quilómetros/hora. Para então me sentir purificado.

22.6.07

O hino reescrito


No último domingo, entretido com os preparativos do almoço, fui atraiçoado pela revisitação da transmissão televisiva – que o não chegara a ser em directo, para imensa reprovação de sua excelência o presidente da república – das condecorações aos felizardos a quem calhou em sorte, este ano, as comendas da república. O primeiro impulso foi mudar de canal. Resisti. Fui espreitando pelo canto do olho, enquanto o mestre-de-cerimónias debitava os nomes dos agraciados e prosseguia o cortejo da medalhística solene da república. Nunca tinha aguentado tanto tempo a risível celebração. Houve propedêutica no exercício: se dúvidas tivesse da patética manifestação, elas esvaneceram-se.

Para o final da cerimónia estava reservado outro momento delicioso: o encerramento exigia a entoação sentida, e em uníssono, do hino nacional. Foram desencantar um coro de igreja, ou um coro de uma agremiação recreativa de bairro, acompanhado por um órgão de igreja. O hino soou diferente. Perdera o seu carácter épico, que faz exaltar as emoções dos devotos da pátria, essa coisa tão bela. O hino assim cantado e tocado ganhara, subitamente, um perfume angelical. De repente, senti que aquele hino trazia os fragmentos da pós-pós-modernidade: as virtudes da pátria entoadas noutro registo, com outro ritmo. Podiam todas as referências bélicas persistir no hino, que aquelas vozes macias trinavam a angélica face da pátria. Em vez da mão direita a repousar sobre o peito, num gesto tão sentido de como a pátria está enraizada no mais fundo de nós, o renovado registo do hino convocava a auréola sobre as cabeças de todos os lusitanos. Estremeci de tanta emoção.

Foi então que percebi que faltava desconstruir o poema de Henrique Lopes Mendonça. Ajustá-lo aos tempos modernos, senão andamos a tecer loas a uma terra que deixou de existir, a cantar um hino que apregoa virtudes que se perderam nas “brumas da memória”. Corro um risco: os blogues também andam sob fiscalização das autoridades (dois exemplos: a directora da DREN tem a mira afinada para os blogues, avisando que também aí o respeitinho é devido; e o primeiro-ministro formalizou queixa-crime contra o blogue que denunciou a patranha da sua licenciatura); e lembro-me, em tempos, do actor João Grosso ter respondido em tribunal pela recriação do hino em tons irónicos. Aceito o risco; eis a dissecação do bravo hino dos heróis que só existiram lá atrás, na embocadura do longínquo passado.

Heróis do mar, nobre Povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!


Nestas estrofes estão sintetizadas várias impossibilidades, enclausurados alguns traumas. Primeiro, só os do mar são heróis? Não há heróis em terra? Os que cantam o hino com tanto denodo deviam perceber que a discriminação entra no pantanoso terreno das exclusões sociais: só os marinheiros merecem distinção, o que pode motivar a revolta dos outros. Lição: o hino não fermenta o espírito de unidade nacional. É divisionista. Segundo: resisto a pronunciar-me sobre a parte que alude ao “nobre povo” (e este com maiúscula…). E não, em terceiro lugar, não somos “nação valente”, nem está provado que o dedo da criação humana possa ter pretensões de imortalidade. A valentia dos nossos contemporâneos aparece à vista desarmada: a valentia de umas forças armadas insignificantes, obsoletas, que teimam em exaurir recursos para mostrarem pouco mais que nada. Que me perdoem os antepassados, mas nem Viagra consegue levantar os resíduos de esplendor espalhados pelos livros de História.

Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!


Só mesmo entre as brumosas memórias, um arremedo da teoria da reminiscência de Platão, é que se resgata a grandeza de antanho. Os “egrégios avós” estão mudos na sepultura, como se lhes pode escutar a voz doída pelo triste espectáculo de uma portugalidade reduzida à exiguidade quando dantes se habituou a espalhar-se pela imensidão de um império? A exclamação final é incompreensível: que vitória? Sobre quem? Pela atenção mediática dos feitos desportivos, prenunciam-se as façanhas dos desportistas que ganham rios de dinheiro lá fora? A ver pelo orgulho pátrio nessas façanhas, e como achamos que as vitórias desses desportistas são a representação do orgulho pátrio, acho que a exclamação do hino a isso se resume. O que confirma que não há-de ser a voz dos egrégios avós a conduzir a coisa alguma: apenas o esforço individual dos tais desportistas.

Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!


Lamentável convocatória ao belicismo, cada vez mais fora de moda, agora que a diplomacia dos homens ganhou terreno à estupidez dos homens munidos de armas. E, ainda que o fosse, que armas? As vetustas armas herdadas da guerra colonial, mais os tanques obsoletos e as fragatas ridicularizadas por contrabandistas de meia tigela? Aqui se encerra outro anacronismo do hino: as massas patrióticas são mobilizadas para entregar o peito às balas, mas só as que vierem por terra e por mar. Nem uma palavra ao espaço aéreo. Das duas, uma: ou não há hipótese de sermos atacados pelo ar (misteriosa hipótese), ou os valentes lusitanos estão descomprometidos de defender a pátria quando as balas e morteiros choverem do ar. Como anacrónico é o hino que convida as gentes para pela pátria lutar: pois se, ó sinal dos tempos, o serviço militar deixou de ser obrigatório.

Hino lamechas. Hino descompassado do tempo. Hino que, quando entoado com tanta afeição, representa o embuste de cantar uma coisa que não existe. Fica daqui, de um iconoclasta, sugestão aos que dão tanto valor a estes símbolos que fazem a iconografia da pátria: deitem este hino ao lixo e façam um novo.

21.6.07

Logro ambientalista


Tenho para mim que há nos ambientalistas assanhados um totalitarismo mal disfarçado. Se eles mandassem – de facto, que por vias travessas já conseguem exercer um poder notável – seríamos um rebanho ordeiro, pautado pelos mandamentos ambientais elevados à categoria de lei máxima. Não haveria lugar a deslizes, senão as chibatadas dos pressurosos guardiães da sanidade ambiental seriam punição severa, mas decerto ajustada (aos olhos dos adoradores do ambiente).

Esforço-me por respeitar o meio ambiente. Procuro adoptar comportamentos que sejam amigáveis do ambiente. Nesse sentido, já fui influenciado pela retórica ambientalista. Admito que há-de haver um ponto de partida, que neste caso passa pela divulgação de informação que traga alguma educação ambiental. O problema é que frequentemente a educação ambiental vai longe de mais. Não se limitar a divulgar informação; distorce factos, instala a culpabilidade como instrumento necessário para a mudança de mentalidades. Nada de novo, numa era consumida pela adulteração de valores a tal ponto que, como é sabido, muitos se vangloriam que todos os meios se justificam em função dos fins.

Acho deplorável a intrusão dos ambientalistas, a forma como fazem passar as suas verdades incontestáveis, incontornáveis. São os novos sacerdotes da moral imperativa. Nós, servos da nova agenda que colocou a protecção do ambiente à frente das prioridades. Da vida, sabemos que quem comete exageros perde discernimento, não hesita em deformar factos para os moldar ao oportunismo das suas verdades. Já nem sequer discuto o mau gosto de veicular mensagens que tocam bem fundo na consciência dos destinatários. É tão deplorável que a discussão ficava por aí. Por isso, muitas vezes me arrependo de ter consciência ambiental quando ouço os evangelizadores do ambiente a perorar as suas verdades insofismáveis. Só de os ver, impantes, apetece-me arrepender da sensibilidade ambiental que entretanto fui ganhando. Não o faço porque a natureza não tem culpa de quem se faz passar por seu advogado de defesa.

A moda do ambientalismo é mais uma manifestação de coerção, das imensas que vêm do passado e que se juntam a novas expressões que têm nascido. A prova da coerção está no sentido impositivo do discurso dos ambientalistas, espumando uma raiva doentia pelos que teimam em espezinhar a protecção da natureza, ou pela assertividade com que determinam comportamentos que só não são obrigatórios porque não têm a arma da legislação à mão de semear. Como se não bastasse, adulteram factos para inocular dores de consciência naqueles que sejam sua audiência.

Há dias fui espectador de um breve programa de televisão consagrado ao ambiente, que passa antes do telejornal das oito na RTP (“SOS Terra”). Não mais que cinco minutos. Pouco tempo mas de informação concentrada. Aprende-se muito. Por exemplo, que devemos partilhar boleias quando nos deslocamos para a cidade no ramerrame diário. Para darmos um contributo para a preservação do ambiente, emitindo menos monóxido de carbono para a muito poluída atmosfera. Como se aprende que se desligarmos o ar condicionado do automóvel gera-se uma poupança de 1,8 litros de combustível a cada cem quilómetros percorridos.

Começo por esta informação. É paradigmática do totalitarismo dos ambientalistas. Só mentes que se devotam ao totalitarismo é que distorcem dados quantificáveis. Os cultores do ambiente limpo não hesitam em pespegar-nos dados estatísticos e alindá-los com o manto do rigor científico. Não contam que alguém possa contestar os dados. Lamento desenganá-los: já tive três automóveis com ar condicionado e experimentei o consumo de combustível com o ar condicionado ligado e desligado. Em todos esses carros, havia computador de bordo que dava informação sobre o consumo de combustível. A poupança máxima que consegui foi de 0,3 litros por cem quilómetros percorridos. Muito diferente de 1,8: seis vezes menos! Entretanto, os incautos e os que vão nos modismos do politicamente correcto ouvem a informação e aceitam-na como fidedigna. Quando ela é um logro.

Uma nota final acerca das boleias partilhadas. O programa deixou um site que funciona como mercado de boleias – quem se oferece e quem procura partilhar boleias (www.deboleia.com). Logo hoje, que a sociedade está tão perigosa, cheia de psicopatas, ou de pessoas fartamente aborrecidas, quem se arrisca a entrar no quarto escuro e partilhar uma boleia com quem não conhece? A protecção do ambiente compensa os riscos que se correm na possibilidade de nos calhar em sorte, como boleia partilhada, um psicopata? Isto só vem confirmar a ideia que tenho dos exacerbados ambientalistas: curam mais da natureza do que das pessoas. Porventura o seu nirvana é um planeta despojado de humanos. Porque não começar por eles?

20.6.07

Indulgência meteorológica


Um pouco de conversa meteorológica – daquela que metemos quando não temos outro assunto: já chove há quinze dias. É tema recorrente nas mesas dos cafés: o povo denuncia o tempo louco. E está descontente, pois há semanas soltaram notícias de que este ia ser um Verão tórrido. Afinal, chove há quinze dias. Junho tem sido um mês atípico, tristonho, carrancudo, tingido com a cor plúmbea das nuvens tão carregadas. Hoje a Primavera despede-se. Com uma cara outonal.

Quando o tempo prega destas partidas, a comunicação social vai de visita até ao Instituto Nacional de Meteorologia. Palavra aos especialistas. Há dias entrevistaram a meteorologista de serviço, para saber explicação acerca do tempo ensandecido que até ao Algarve trouxe um cocktail assassino para o turismo – nuvens e chuva e temperaturas que são promessas atraiçoadas para o turista inglês que lá chegou com a expectativa de rivalizar com as lagostas suadas. A meteorologista lá concedeu que este é um tempo fora do normal. Temperaturas anormalmente baixas e “índices de precipitação” acima da média. Mas avisou, condescendente com o tempo que se faz sentir: não é nada que já não se tenha visto em Junhos de outros anos.

Retive o ar ao mesmo tempo cândido e empertigado da meteorologista. Parecia querer desculpar o tempo que anda a ser vergastado pelo cidadão comum. Se calhar também tem escutado as conversas de café que chamam nomes feios ao tempo que teima em espalhar as bátegas de água aspergidas por um vento furioso. Desgostosa por estarem a ser tão ásperos com o seu menino querido – o tempo, o tempo seja ele soalheiro e caloroso, ou ventoso e outonal, ou de chuvas impiedosas, ou até o tempo invernal que semeia temperaturas glaciares – a técnica veio em defesa do tempo. Parecia um pai de coração ferido por estarem todos a apontar o dedo ao seu querido filho. Por um momento, parecia que o tempo tinha conquistado uma dimensão humana. A meteorologista fazia as vezes de advogada de defesa do tempo. Advertiu-nos: ó povo de memória curta, os dados estatísticos do Instituto Nacional de Meteorologia mostram que este Junho não está assim tão louco como querer fazer crer. Outros Junhos de outrora foram muito chuvosos.

O povo que quer esturricar ao sol, fazendo ouvidos moucos aos avisos dos dermatologistas que desaconselham exposição ao sol entre as onze da manhã e as seis da tarde, está-se nas tintas para os predicados técnicos da meteorologista. O povo anda de mau humor, em parelha com o tempo sombrio. O mau humor vem em crescendo porque as promessas dos meteorologistas, as promessas do bom tempo resgatado, vêm sendo adiadas. Diziam que o mau tempo se ia ficar pelo último fim-de-semana. Três dias passaram e a chuva continua a molhar as esperanças dos veraneantes adiados. Ao menos não se fala de incêndios. A ausência das praias coincide com o descanso dos bombeiros.

(Um parêntesis, literal: porque se terá convencionado chamar “bom tempo” ao bom tempo e “mau tempo” ao mau tempo? “Bom” e “mau” implicam juízos de valor. Fomos educados a olhar para a chuva como “mau tempo”, quando afinal é ela que mata a seca que seria o gérmen da morte. Há muito de bom no que se convencionou apelidar “mau tempo”. Conversamente, um prolongado estio, ou dias consecutivos de sol durante o Inverno, jamais serão sinais de “bom tempo”: a magreza da chuva traz preocupações, espalha imagens lancinantes do gado a morrer nos pastos, semeia a incerteza no abastecimento de água às populações.)

Regresso à imagem da meteorologista em defesa do “mau tempo” de Junho. Uma defesa exaltada do menino querido. Não sei se ela queria dizer algo nas entrelinhas. Adivinho que a meteorologista deve estar alistada nas fileiras de Al Gore, ou de outros ambientalistas menos oportunistas, dizendo nas entrelinhas que o povo não se pode queixar do tempo louco. Quem o faz louco é o povo sem hábitos ambientais, que comete agressões diárias ao meio ambiente. É o povo que adultera a meteorologia. Que não se queixe de, na volta, o tempo se vingar fazendo tantas caras feias, presenteando um tempo extemporâneo que causa dissabores generalizados. A meteorologista reagia, indignada, contra uma acusação injusta. O seu menino querido, que anda mal-humorado há quinze dias, tem direito aos seus maus humores.

19.6.07

Uma miríade de lugares


Há em nós os lugares que visitámos. Deles, trazemos memórias e um pedaço que se aloja na carne. Os sítios mais marcantes, a profusão de monumentos, as ruas bem esquadrinhadas, todas as pessoas diferentes e anónimas que se cruzaram. E os sítios só com uma vaga recordação, quase indeléveis na memória, ainda assim repositórios (menores) do espírito que se afeiçoa aos lugares idos.

De repente, do nada, ressaltam à cabeça imagens de um lugar visitado. Um monumento emblemático, uma avenida grandiosa, uma rua esconsa que desnuda belezas arcaicas bem conservadas, um rio caudaloso que empresta o ar resplandecente quando o sol marca visita. É por isso que os lugares que conhecemos estão entranhados em nós: são penhores do que somos no processo de crescimento para o qual foram ingredientes preciosos. As imagens que desfilam diante da tela que passa, imaginária, diante dos olhos, são sedimentos que se entranham, sedimentos do amadurecimento que passa por nós.

Valem os lugares exóticos como os lugares triviais. Os lugares tão distantes de casa como um pedaço de paisagem cheia de significado, ainda que vizinha do sítio onde moramos. Até lugares que não se distinguem pelo anonimato que transparecem podem trazer um fragmento importante, mesmo que imperceptível. Uma multidão de sítios, alguns visitados demoradamente, outros só com uma fugaz passagem. Uns com pessoas à mistura, emolduradas no álbum das recordações, emparelhando com os lugares. E outros tão significativos que se desprendem das pessoas, como se houvesse neles uma poderosa imagem que os desliga da mão humana que os edificou. Por vezes, as paisagens bucólicas, ora agrestes, ora de uma beleza plácida, ensinam que há lugares sem intervenção humana que atiram contra o peito o verbo poderoso retido até às profundezas da memória.

Os lugares ensinam. Não falo apenas de museus, ou dos edifícios imponentes que são o museu vivo da História. A pedagogia dos lugares é a das pedras que tocamos, do ar que respiramos, da nesga de luz que combina com uma esquina entre duas ruas a uma determinada hora do dia e que só cintila naquele lugar. Até pode isto não ter a representação simbólica aos olhos de outras pessoas. Aí está o apelo desarmante dos lugares que cimentam o ser: os olhos vêm coisas diferentes no mesmo lugar. Sinal de que os lugares, o mesmo lugar, jorram com intensidades diferentes consoante os olhos que os fitem.

Nos imensos lugares que ficam por visitar retenho a imagem da minha pequenez. Ainda que fôssemos nómadas em demanda de lugares incontáveis, muitos mais ficariam por conhecer. O mundo é um espaço amplo para a pequenez do tempo que nos consome. Não consigo esconder a frustração dos muitos lugares a que gostaria de ir e que hão-de ficar desconhecidos. Na impossibilidade de os visitar há um pedaço enorme de mim que fica órfão. Podia-os visitar em imagens fotografadas pelos outros. Seria o engodo de mim mesmo: faltaria respirar o ar, que é sempre diferente nos lugares a que vamos; faltaria sentir as pessoas que se cruzam no caminho; faltaria sentar à mesa de restaurantes e encomendar a refeição; faltaria, no fim do dia, entrar na recepção do hotel e trocar as palavras necessárias com o recepcionista; faltariam as gares onde aportam os comboios ou os aeroportos que desgastam tempo e paciência; e faltariam os pormenores que só a aproximação dos olhos permite captar, nas pedras gastas dos monumentos, nas árvores dos jardins, na singeleza das pedras da calçada, ou nos pormenores surpreendentes que se revelam ao olhar curioso quando espreita em demanda das coisas por conhecer.

No final, quando o tempo acalma e convida ao discernimento dos sentidos, fica a certeza que os lugares que visitámos nunca são poucos ou excessivos. São, sempre, os lugares que quisemos. Lugares bastantes, subsídios para o crescimento que o espelho revela aos sentidos. Uma panóplia de imagens armazenadas que fazem dos lugares idos património do envelhecimento pessoal. À distância, esses lugares continuam a envelhecer, as pedras expostas à impiedade dos elementos. À distância, é como se rejuvenescêssemos com o envelhecimento dos lugares que ficaram retidos na memória. Um feixe invisível que é uma dádiva só proporcionada pelo encantamento dos lugares sagrados nas lembranças que ocasionalmente despertam do torpor.

18.6.07

Pagar impostos é hedónico


Declaração de interesses: quem me der ser um terrorista fiscal. Logo, não vem de mim a afirmação de que pagar impostos é um prazer irresistível. Poderá parecer absurdo haver quem assim pense, mais a mais numa terra onde impera o sentimento de que os impostos que nos são sugados poucas vezes têm aproveitamento condizente. Há dias li a notícia no Público: “dar voluntariamente dinheiro para o bem público revelou ser uma fonte de prazer para os humanos. O mais surpreendente é que pagar impostos também”.

Fiquei aturdido. Esta foi daquelas notícias que exigiu leitura para além do título. Trata-se de um estudo feito nos Estados Unidos por dois psicólogos e um economista. A amostra foi escassa – apenas dezanove mulheres, em quem eram estudadas as ondas cerebrais quando confrontadas com vários destinos para o dinheiro que lhes era virtualmente creditado. Os cientistas concluíram que havia prazer puro na dádiva para o bem comum. Que as mulheres se sentiam recompensadas por saberem que os donativos voluntários eram associados a uma boa causa. Asseverem que “o que isto mostra aos responsáveis pelas políticas impositivas é que os impostos não são necessariamente uma coisa má. Pagar os seus impostos pode fazer os cidadãos sentir-se felizes. As pessoas são todas, em certa medida, altruístas puros.

Registe-se o optimismo antropológico da equipa de investigadores. Mas duvido da metodologia. Eles consentem que a amostra é muito reduzida. E depois, não percebi porque só tinham sido escolhidas mulheres. Porventura adivinhavam que a insensibilidade masculina pervertesse os resultados que estavam à espera de conseguir, frustrando a bombástica conclusão a que chegaram? Acresce que ou a notícia sintetiza mal o estudo, ou este busca a fama pelo mediatismo das conclusões. Há uma confusão conceptual: pagar impostos não é sinónimo de dádiva. Dos bancos da universidade regressa a noção de imposto: prestação coactiva e unilateral que não dá origem a uma contraprestação específica. Interessa reter a primeira metade: “prestação coactiva e unilateral”. Ora o que é coactivo está nos antípodas da dádiva, voluntária por natureza.

O estudo pode ter um viés geográfico. De país para país, varia a disponibilidade dos cidadãos para pagarem impostos. Porventura nos Estados Unidos a consciência fiscal dos cidadãos é mais arreigada. Tal como acontece nos países nórdicos, onde os cidadãos aceitam pacificamente um fardo fiscal que é o mais elevado da Europa. Pagam e fogem pouco, ao contrário dos povos latinos, habituados a pagar menos impostos e, ainda assim, campeões no desporto da evasão fiscal. Haverá factores culturais que explicam o comportamento variável dos povos perante a obrigação de pagar impostos. O maior sentimento de pertença do indivíduo a uma comunidade facilita o dever de pagar impostos. O maior individualismo, ou apenas a percepção da incompetência dos poderes para usarem com eficácia o bolo dos impostos, acalma o interesse na satisfação deste dever.

Misturar “altruísmo”com “pagamento de impostos” é erróneo. Mesmo que esteja diante de mim um zeloso cidadão que cumpre sem hesitar as suas obrigações fiscais, trata-se de uma obrigação. Se deixasse de ser um dever, faria sentido ver até que ponto os indivíduos exercitam o seu altruísmo em prol do bem comum: quanto estariam dispostos a contribuir, como dádiva, para o bem comum. Um imposto é a negação do altruísmo. Enquanto forem os próprios zeladores de impostos a classificarem-nos como coactivos, o altruísmo está fora dos horizontes. Tenho para mim que a persistência do imposto como “dever” é sintomático: não fosse uma imposição sobre os cidadãos, e quantos teriam o impulso do contribuir voluntariamente para o bem comum?

Da parte que me toca, não consigo imaginar actividade mais aprazível do que pagar impostos. De cada vez que visto a pele de consumidor e vejo, pela factura, quanto me é levado a título de IVA. Ou quando compro casa e tenho que pagar uma quantia absurda para impostos e taxas várias. Ou quando sinto que mais de um terço do meu salário fica do lado de lá, retido na fonte a título do imposto que, por estimativa, me há-de ser cobrado. E exulto de contentamento quando chega o momento mágico do ano em que preencho a declaração de IRS. É o zénite do hedonismo. Pelo contrário, fico contristado quando tomo conhecimento que um provento avulso vai ficar isento de impostos. Anteontem ganhei uma fortuna no totoloto: 2,53€. Entristeci-me ao saber que o fisco, generosamente, me deixa ficar com a totalidade da verba. Que fazer para doar os 25% que a lei prevê para ganhos deste género? É que eu queria mesmo depositar, à conta do fisco, 0,63€.

Sexo, música, automóveis, livros, gastronomia? Não, o que me dá prazer é pagar impostos!

15.6.07

A bomba do amor


Nem sempre os falcões guerreiam. Os falcões também podem ser pombas alvas, aspergindo com os seus magnânimos dedos um adocicado amor. Afinal os falcões guerreiros também têm coração de manteiga. Sentimentos. E, afinal, os falcões não são desapiedados espíritos entregues à insolência bélica. Os falcões também podem ser pombas:

A Força Aérea dos EUA admitiu ter-se interessado nos anos 90 por um projecto de "bomba do amor" que devia despertar um irreprimível desejo sexual nas fileiras do adversário, neutralizando a sua vontade de combater (…). O objectivo era a criação de uma arma afrodisíaca capaz de afectar os comportamentos do adversário (…).” Eis senão quando o inesperado se anuncia. Eis senão quando descobrimos que se pode fazer a guerra motivando o adversário – o “inimigo”, na retórica das armas – ao sexo. Assim se confirma que os opostos se atraem. O amor – ou melhor, os instintos sexuais – usado como poderosa arma de arremesso contra o adversário que combate do outro lado das trincheiras.

De repente, fui acometido por uns laivos de ingenuidade: apeteceu-me, uma vez na vida que fosse, aplaudir a existência de militares. Destes militares que conceberam semelhante arma. Militares que fazem detonar uma bomba que instala no inimigo o irreprimível desejo libidinoso, são militares humanos. Diria, é uma forma de humanizar a guerra. Assim como assim, os “inimigos” hão-de preferir morrer possuídos por um terrível desejo sexual do que da forma tradicional, despedaçados os corpos por um míssil ou por uma rajada de metralhadora desembestada pelos heróicos tropas dos Estados Unidos.

Tudo tem o seu reverso. A ingenuidade refreia-se com o amadurecimento trazido pelo exercício do pensamento. Logo de seguida, o necessário convite ao desengano da candura. A bomba do amor é uma bomba, tão letal como as outras, tão possuída pelo belicismo como todas as demais. Até diria que fazer a guerra usando a bomba do amor é a maior das perversões. Usar o desejo sexual para liquidar os adversários que foram emproados na condição de inimigo é uma desonra. Uma traição aos instintos sexuais, que às vezes podem ser usados como arma do amor. Das mentes retorcidas dos estrategas militares podemos esperar tudo, sobretudo o impensável – ou não fossem eles os orquestradores de uma das coisas mais absurdas que fica registada, e a negro, na história da humanidade: as guerras.

Esta arma devia entrar no rol das armas proibidas por convenções internacionais. Como há tratados internacionais que impedem a proliferação de armas nucleares, como há acordos internacionais que vedam a utilização de armas químicas. A bomba do amor é uma arma química, pois espalha uma substância que altera os comportamentos dos “inimigos”, desmotivando-os para o combate a partir do momento em que são possuídos por um súbito apetite lascivo. É a forma mais traiçoeira de liquidar o adversário. Enquanto anda desorientado à procura de saciar os apetites que a substância afrodisíaca alimentou, as tropas dos Estados Unidos têm a tarefa facilitada para esmagar o “inimigo”. Quem tem coragem de matar duas moscas em plena cópula? Só uma mente doentia.

Assim se confirma que os falcões se podem travestir de pombas. São sempre falsas pombas, mais interessadas em congeminar artefactos bélicos destinados a levar de vencida essa invenção mais absurda de que um ser humano se podia lembrar: o inimigo imaginário. E como há tratados que tentam “humanizar a guerra” – que patético eufemismo! –, há convenções internacionais que tentam garantir alguma dignidade aos actores envolvidos numa guerra (outro contra-senso). A Convenção de Genebra, que impede atrocidades a presos de guerra e lhes garante direitos mínimos, devia ser renegociada. Para proibir expressamente o uso da bomba do amor. Em homenagem ao amor, que não merece ser misturado com a obnóxia guerra.

O jornalismo banal a que temos direito puxou do lugar-comum para encontrar as reminiscências da bomba do amor na “melhor escola da expressão make love, not war, isto é, "não façam a guerra, façam amor"”. O jornalista está equivocado: a bomba do amor convoca o “make war through love”, isto é, “guerreiem-se usando o amor”.

14.6.07

É proibido tocar nas crianças


Há afectos que têm tradução em gestos, numa troca que traz contacto físico entre duas pessoas. Há afectos que se exteriorizam através de um beijo. Outras vezes, num forte abraço. Um afago na face. Ou recolher crianças no regaço, reconfortá-las junto ao nosso arfar tranquilo, como se esse arfar fosse o baloiço que adormece as crianças. Como podemos trazer as crianças de mão dada, pela rua fora, e se o fazemos não é apenas por imperativos de segurança. Os poetas avisam: há palavras que não conseguem captar a essência dos sentimentos. Há gestos singelos, afagos, beijos ternurentos que substituem as palavras já de si tão poderosas.

Certos países auto-convencidos que são as vanguardas da civilização ocidental são percorridos por uma fobia que renega o contacto físico entre adultos e crianças. Conceda-se que a pedofilia se soma às preocupações contemporâneas, tantos os casos hediondos conhecidos, tantas as crianças sumidas nos meandros das redes pedófilas. Saber que a pedofilia é uma praga que deve sem combatida sem quartel não pode motivar a confusão de diagnóstico que perpassa as mentes perturbadas. É lá onde os pais evitam os afagos em público, não vá o vizinho do transporte público ou o transeunte com que se cruzam julgar através de lentes desfocadas e problematizar onde só existe uma manifestação de genuíno afecto.

Da última vez que um louco varreu uma escola à rajada de metralhadora nos Estados Unidos, semeando a morte entre alunos e professores, só nos funerais é que alguns pais de alunos sobreviventes deram conta que nunca tinham abraçado os seus filhos. E que o privilégio de os poderem abraçar era o dom maior que lhes foi agraciado. Sobretudo quando olhavam para o lado e reparavam nos outros pais que choravam a morte dos seus filhos. Estes já não iam a tempo para dedicar os afagos merecidos aos filhos. O que me perturba é ter sabido que havia pais que só ao fim de quase vinte anos de vida dos filhos lhes tinham dado um abraço pela primeira vez.

Os usos sociais diferem de lugar para lugar. E mesmo que haja a tentação para considerar a sociedade ocidental um espaço homogéneo, essa é uma imagem adulterada que desvaloriza idiossincrasias locais. Em Inglaterra, as pessoas cumprimentam-se no dia-a-dia usando as palavras. Mesmo as pessoas que têm mais proximidade raramente se cumprimentam com um aperto de mão, muito menos com beijos. Lembro-me do incómodo de algumas pessoas com que privava todos os dias quando lhes estendia a mão num cumprimento matinal. Até que percebi, só pela observação dos comportamentos, que estão habituados a substituir a saudação que exige contacto físico por uma distante saudação verbal.

Não sei se esta repulsa pelo contacto físico esconde algum trauma colectivo. Ou se as pessoas se resguardam para os entes queridos, a quem fica reservado o privilégio dos afagos físicos, na recôndita intimidade. Há-de haver uma explicação que vá às raízes do problema. Se nem sequer com os filhos – e não estamos habituados a dizer que os filhos são a expressão maior do amor? – cultivam afectos traduzidos em contacto físico, haverá um ensimesmamento de cada um no seu corpo, sagrado altar imune ao contacto com outros corpos? Porventura a risível cientologia sulcou uma tradição ainda antes de se tornar tão popular.

Não me consigo convencer que não há nesse hábito de distanciamento físico algo de patológico. Ou porque as pessoas confundem o significado do contacto físico, achando que um beijo numa senhora é invasivo da sua intimidade, prenunciando outros intuitos que resvalam para níveis mais avançados de contacto físico. Ou porque as pessoas se acastelam em torres de marfim, num isolamento corporal que entretece o rio tão largo que impede a passagem para a outra margem, onde a naturalidade dos afagos seria cultivada. Ao saber que naquela cidade dos Estados Unidos, que tinha sido atormentada pelo ataque ensandecido do suicida, os pais descobriam como era reconfortante abraçarem os filhos que tinham escapado com vida, como era tão gratificante poderem beijá-los ao nascer de um novo dia, é que dei conta que os afagos que são para mim tão naturais são olhados com desconfiança noutros sítios com que nos identificamos culturalmente.

Mal de nós se o uso atravessar o Atlântico, como acontece com tantas coisas neste arremedo de colonização cultural. Mal de nós se nem com os filhos pudermos ser afectuosos. E com os filhos dos outros, dos nossos familiares, dos nossos amigos. Porque aí estaremos na senda da desfiguração dos sentimentos. Dupla origem tem o mal: confundir gestos, na incapacidade de perceber que afagos inocentes não têm segundo sentido; e a fobia de olhar para o lado e sentenciar os comportamentos dos outros.

13.6.07

O polícia é sacana


Às vezes, saem notícias de violência policial. Violência exercida nas esquadras, sobre pessoas detidas. Convém recordar que há esteios da civilização de que nos gabamos ser penhores. Um dos esteios do Estado de direito é a presunção de inocência. Quem está preso e é interrogado pela polícia judiciária não é, nesse momento, culpado de nada. Quando os senhores agentes sacam da violência para extrair confissões de crimes, estão a abusar da autoridade. Substituem-se a quem tem a função de julgar. De caminho, atropelam normas elementares da existência de um Estado de direito. E sobra uma interrogação: que confiança podemos ter nesta polícia?

Cansam-se as exibições de utilitarismo grotesco, daqueles que candidamente aceitam que os meios justificam os fins. O que é problemático é que este utilitarismo grotesco tem-se estendido a muitos domínios da vida. Até na polícia, que deve garantir a segurança, mas não pode ignorar regras fundamentais de convivência em sociedade. Quando se sabe que polícias torturaram suspeitos de crimes enquanto os interrogavam, descobre-se a insídia do meio que é legitimado pelos fins. Uma polícia assim – ou polícias assim, que é possível que haja que separar o trigo do joio e acantonar as ovelhas ranhosas – não é de confiar. Pior ainda: uma polícia assim, ou inquinada por polícias que agem assim, é a negação do Estado de direito, quando se esperava que fosse um dos seus esteios.

Tudo isto me traz à recordação coisas esparsas, nos tempos em que fazia tirocínio para a advocacia que nunca viria a exercer. Nesses tempos, os advogados-estagiários tinham que fazer dois plantões no tribunal de instrução criminal. Cabia-lhes a representação das pessoas que tinham acabado de ser detidas e que eram ouvidas pelo juiz de instrução, para saberem se iam esperar pelo julgamento em prisão ou se o iam aguardar em liberdade. Num dos plantões que me calhou, acompanhei dois agentes da polícia judiciária numa busca domiciliária. A casa que íamos visitar pertencia a um suspeito de violação de uma criança. Ao chegar ao pardieiro, num sítio que não me faria supor que os confins estão às portas do Porto (algures perdido na serra de Santa Justa), não estava ninguém. Na viagem de regresso, os dois polícias abriram-se. Retive que se tivessem encontrado o suspeito ele teria sido detido. E quando o depositassem nos “calabouços” – que palavra hedionda! – lhe reservavam “tratamento adequado”. Não arrisquei perguntar em que consistia o “tratamento adequado”. Mas pude imaginar.

No outro plantão que tive que suportar, eram quase seis da tarde, a hora em que encerra o expediente do tribunal. Foram-me chamar: “senhor doutor, não se vá já embora. Ainda vai ter trabalho para algumas horas”. Enquanto aguardava pela chamada para a audiência com o juiz, tentei saber o que me retinha para além da hora. Um polícia informou-me: dois irmãos procurados por roubo tinham-se barricado e responderam com tiros ao cerco dos polícias. Não houve feridos. Os irmãos acabaram por ser presos.

Algum tempo depois, vi-os passar no corredor ao lado. Um ia com a cabeça ligada. O outro trazia a cara ensanguentada. Pediram-me para esperar mais algum tempo, que eles ainda iam fazer uma visita à enfermaria. Inocente, perguntei o que lhes tinha acontecido. Um polícia disse-me, com cinismo: “sabe como é, senhor doutor, caíram…”. Logo de seguida, outro polícia acrescentou: “quando alguém dispara sobre nós, ao chegar aqui tem o tratamento adequado”. Não sei se seria coincidência, mas no segundo plantão que fazia ouvi agentes da polícia judiciária confessarem, com a maior das naturalidades, que dedicam um “tratamento adequado” aos suspeitos que só meses mais tarde se sentam no banco dos réus no tribunal. O tratamento adequado é sinónimo de violência policial.

A violência policial sobre pessoas detidas para interrogatório deixa-me uma perplexidade: se tanto se desaprova o povo rasteiro quando estaciona às portas do tribunal com apetite de justiça por mãos próprias em criminosos da pior espécie, os maus tratos dos polícias não são apenas justiça feita por quem não o está habilitado a fazer? Só mais esta interrogação: que diferença entre a justiça popular e a justiça policial?

12.6.07

Injusta é a velhice


Erra pelos jardins, em passo lento, demorado, como se estivesse a alongar os dias que o separam da morte. Pelos dias primaveris e soalheiros, passa as tardes sentado nos bancos do jardim a contemplar o vazio. Imerso nas memórias que resguardam os poucos sinais da felicidade que outrora viveu. Por vezes, limita-se a degustar o sabor ácido das adversidades, das muitas adversidades em que tropeçou. A vista perdida num vago horizonte recupera o sofrimento que parece eternizar-se. Os bancos do jardim depositam a autopunição do velho que se demora numa aflitiva vivência.

Outras vezes partilha a solidão com os pombos. Os pedaços de pão esmigalhados e o bando de pombos à sua volta são o único momento em que conversa com alguém. Sabe-lhe bem a generosidade. A recompensa vem na companhia dos pombos. Alguns até vêm comer à sua mão. À medida que a solidão das pessoas foi tomando conta do seu tempo, com mais um ente querido que fenecia, mais outro familiar que passou ao rol dos ausentes, refugiou-se nos pombos, nos cães e gatos vadios que passaram a ser companhia habitual.

As mãos gastas entrecruzam-se quando o sol macilento da tarde fura entre a folhagem dos ciprestes. Às vezes uma mão ampara a cabeça, amansa a trovejante tristeza que incomoda a velhice sofrida. O velho recusa-se a olhar no espelho há longos meses. Já se escanhoa de cor, receoso de encarar no espelho para não se amedrontar com o ar terrivelmente envelhecido. Receia que as dores do tempo sejam os sedimentos da velhice pungente – as rugas profundas, os olhos cansados, os cabelos grisalhos. E, no entanto, todas essas marcas confirmam que a vida foi madrasta. Percebe-se a intenção: já bastou penar tanto pelas pedras pontiagudas que ainda trazem feridas por cicatrizar. Agora que consome os derradeiros dias, quer esquecer os sinais que avivam toda uma vida.

Os dias repetem-se, iguais. As dores da velhice recrudescem com os ponteiros do relógio. As forças exauridas semeiam a resignação da velhice que toma conta dos passos, dos pensamentos, das dores que ciciam pela madrugada e furtam o sono tranquilo. O velho traz a solidão como única companhia. A dor maior da velhice não são as maleitas que o corpo envelhecido amadurece, nem as forças dobradas pela idade avançada. A dor maior da velhice é o longo tempo macerado pela solidão. É então que o velho dá conta do paradoxo que o aprisiona. Entre o temor do tempo que se consome, voraz, na adivinhada despedida da vida: é quando, dominado pelo medo da morte, convoca a piedade divina para lhe prolongar a agonia da vida, sempre mais certa que a espessa morte. E entre a solidão que parece domar o tempo, que instala um tempo que se parece eternizar, um tempo doloroso, insuportável.

O velho perdeu o rasto aos poucos familiares que se esqueceram que ele existe. Perdeu amigos consumidos pela doença, fulminante ou prolongada. A cada funeral a que ia, sentia que os fragmentos da vida se iam estilhaçando no ritual mórbido do velório, das condolências à viúva, dos passos lentos na marcha final por entre a chuva irritante que molhava os ossos, e a ladainha derradeira do sacerdote que anunciava a esperança que é a morte. Todos os dias havia mais um sedimento de solidão que vinha de braço dado com mais um pedaço de velhice. Batiam-lhe na face, em uníssono, solidão e velhice. À noite, na solidão dos lençóis, enquanto o sono teimava em demorar, havia uma lágrima furtiva que se desprendia dos olhos gastos. Vinha salgada com a tremenda amargura de uma vida desavinda com a fortuna.

O dia seguinte haveria de ser a repetição da rotina. O pequeno-almoço maquinalmente ingerido, que deixou de saber a qualquer coisa. A manhã e a tarde gastas a inventar o tempo, a consumir a solidão dilacerante. Perdido entre as memórias de antanho, entregue na dividida tarefa de não querer revisitar as dores de outrora e a necessidade de regressar ao passado como único passatempo do tempo abúlico que agora vive. E pensava: que a velhice assim, tão sofrida, é um lugar injusto para os derradeiros instantes da vida de alguém. Cada dia que se sucedia era uma insuportável dor que se adicionava aos espinhos cravejados na alma. Cada dia que se repetia só tornava a dor mais intensa, a condoída despedida da vida.

Percebeu então que a solidão que era sua única companhia era uma dádiva. Ninguém que alguma vez lhe tivesse sido querido haveria de merecer a desdita de lhe amparar as dores de uma velhice assim tão sofrida.

11.6.07

O que há para comemorar no 10 de Junho?


É recorrente: o espectáculo de decadência que vem embrulhado nas comemorações do 10 de Junho. O que há para celebrar? Um país desorientado, que navega à deriva, mergulhado numa eterna saudade do que foi e das promessas sempre adiadas para um futuro que parece nunca chegar. Os outros passam por nós, como se estivéssemos parados na gare à espera que o comboio, já atrasado, por fim abale.

Mas há os optimistas da pátria, os que consideram que devíamos ser educados para dar mais solenidade ao evento. Assim como se fosse o cimento da nacionalidade, um espírito de comunhão que teria o predicado de enaltecer o simples facto de sermos portugueses. Na edição de sexta-feira passada do Diário de Notícias, Pedro Lomba escreveu um artigo de opinião que tenta inverter o adormecimento geral perante as celebrações dos símbolos nacionais. Acusa: estamos formatados para desdenhar dos símbolos nacionais, para vituperar os sinais de pertença. Há neste desconforto uma amargura latente: se somos o que somos, devíamos ter garbo de o ser. Daqui vai um contributo para a catilinária de Pedro Lomba: do outro lado da fronteira reside um dos povos mais chauvinistas que se conhece. Descontando os excessos chauvinistas, os espanhóis são o exemplo onde nos podíamos inspirar para sermos mais orgulhosos da nacionalidade.

Lomba sente-se ferido por sermos educados para o culto do individualismo que deprecia sinais de pertença. Acha que estes sinais são fundamentais, pois os símbolos são mediadores “da relação entre os cidadãos e as estruturas políticas, fazendo com que, através da sua força sugestiva, as pessoas adiram a valores importantes”. Mas o que são “valores importantes”? Pode Lomba certificar-se que estes valores são importantes para todas as pessoas, ou para uma maioria (larga ou simples?) de pessoas, ou só o são através da sua lente particular? Estes valores encerram-se no espartilho do objectivismo? Posso partir de pressupostos diferentes, mas custa-me a aceitar que seja possível objectivar “valores importantes”. O que fertiliza o terreno do individualismo: na amálgama de preferências individuais sobre os “valores importantes”, a nação fica remetida para plano secundário.

Ninguém escolhe a nacionalidade. É atribuída de forma aleatória. O que me magoa em qualquer política de enaltecimento da nacionalidade é o culto irracional que a sedimenta. Devíamos olhar para as celebrações do 10 de Junho e perguntar: celebramos o quê? Os feitos do passado, na revisitação da História de Portugal tão repleta de feitos que é ensinada nos bancos da escola? Esse passadismo é alavanca para o emproado viver do presente? Custa-me a crer que seja possível sair do estado vegetativo que somos há longo tempo apenas com os festejos do passado que aprendemos que foi grandioso. Quanto mais seja a evocação desse passado, mais adiamos o futuro diferente do presente lamentável que somos.

Apetece glosar mais uma vez Pedro Lomba, que a certa altura se interroga: “para que serve Portugal no fim de contas?” Arrisco-me a ensaiar uma resposta. Serve para que as pessoas que cá vivem se sintam felizes. Que não se sintam esbulhadas pelos muitos impostos que pagam, ao perceberem que os impostos não têm um destino eficaz. E serve para que quem exerce o poder se deixe de truques de loquacidade e se convença que o trabalho discreto, com avaliação dos resultados, é a forma genuína de serem escrutinados pelos cidadãos. Não serve para espúrias manifestações de um exaltado sentir nacionalista, porque esses sentimentos são efémeros e não acrescentam um grama ao bem-estar individual. Essas exaltações de nacionalismo são como uma embriaguez: um arremedo de bem-estar, que logo se transforma em ressaca quando o organismo depura o álcool que circulava pelo sangue. Ressaca que ecoa um tremendo vazio.

Discordo frontalmente de Lomba: o louvor dos símbolos não acrescenta nada ao bem-estar das pessoas. Concedo a visão materialista que me conduz, pois coloco o bem-estar tangível à frente dos sentimentos que se esfumam na vacuidade da iconografia oficial. Parece que não aprendemos nada com o passado. É de lá que sobram incontáveis episódios de entrega descomprometida aos ideais da “nação”, no que isso significava de desvalorização do indivíduo. Os resultados são conhecidos: a entrega a causas colectivas foi meio caminho andado para que a prática negasse a teoria que sagrava os direitos humanos.

Pode o presidente da república convocar os cidadãos para a recusa da resignação. Pretende despertar um povo da letargia. Podia interrogar se não há, nas entrelinhas, o germe de guerrilha ao governo socialista a quem prometeu “cooperação estratégica”: pois, afinal, só a anestesia de um povo que aceita a mediocridade de Sócrates e companhia é compatível com a letargia de quem se contenta com tão pouco. Adiante. O presidente da república quer outra atitude, mais empenhada e menos derrotista. Não sei se é possível: porque se é verdade que não escolhemos a nacionalidade com que nascemos, mais me parece que ser português é uma resignação de todo o tamanho.

8.6.07

Julgamento e imparcialidade


Detestava ser juiz. Há quem estabeleça como meta de vida chegar à magistratura. São movidos pela ambição pessoal – para que conste, nada que seja censurável. E são movidos pelo prestígio da função. Os senhores juízes são colocados num pedestal: ainda domina o dever de respeitar a magistratura, ou não fossem os tribunais órgão de soberania. E depois o povo tem um respeito sepulcral pelos juízes, não vá dar-se o caso de no futuro virem a necessitar do seu julgamento num pleito.

Talvez por tudo aquilo, detestava ser juiz (e ainda porque envolve o direito). Mas acima de tudo detestava vestir a toga porque exige julgar. Com a necessidade de julgar, vem a angústia das decisões erradas. Tomar decisões erradas é um privilégio dos vivos, uma mercê de quem ousa agir. Mais covardes são os que se coíbem de agir, amedrontados com a possibilidade dos passos dados serem passos em falso, ou passos em frente no precipício inesperado. Só que é mais cómodo tomar decisões cujas consequências se esgotam na esfera pessoal. Tudo se resume à responsabilidade individual, quando é chegado o momento de arcar o peso dos efeitos. As dificuldades soam quando as consequências sobram para outros, os destinatários da decisão.

É nisto que reside o julgamento. O que incomoda é saber que por mais que o imperativo da imparcialidade vingue, sobram dúvidas sobre a justeza da decisão. De resto, podem esconder-se insondáveis veredas que toldam o discernimento de quem julga. Quando isso acontece, é a imparcialidade que fica exposta com uma brecha do tamanho do mundo. Pode dar-se o caso da parcialidade espreitar sobre o ombro do julgador, sem que ele perceba a fresta que contamina a imparcialidade. Pode o julgamento julgar-se perfeito, dentro dos condicionamentos humanos que contemplam uma aceitável dimensão de perfeição, quando o convencimento da imparcialidade se desprende das incertezas. O problema é quando o julgador está convencido da sua imparcialidade mas escapam-se-lhe uns fragmentos de parcialidade que vêm toldar o julgamento, sem que ele dê conta, ou que haja motivos mais fortes para a parcialidade gotejar.

Ultimamente, alguns juízes pediram escusa em casos que lhes estavam distribuídos. Perante as dúvidas interiores que os assaltavam, incapazes de assegurarem o exigível desprendimento, preferiram ser retirados do julgamento dos casos. É a atitude digna, quando as mortificações interiores semeiam a indecisão que é um atentado contra a justiça que se espera do julgador. O problema não está nos juízes que têm a hombridade de pedir escusa. Está nos imensos casos em que – adivinha-se – há juízes que deviam pedir o afastamento e o não fazem. É o pantanoso terreno do julgamento em causa própria. A negação da justiça. E como os juízes são humanos, que não se arvorem na condição supra-humana de não padecerem dos pecadilhos que afligem o Homem comum. Está aqui o dilema de julgar: até que ponto o julgador não se deixa contaminar por uma apreciação subjectiva?

Os juízos subjectivos prejudicam a integridade da decisão que se espera do julgador. Por exemplo, a complacência injectada pela apetência do julgador para ter (e ser) coração de manteiga pode negar a justiça. Acometido por uma pulsão piedosa, o julgador enche-se de dúvidas se deve condenar. Ainda que as provas desfilem diante de si como convite à condenação, pode a comiseração troar na consciência do julgador. A tentação pela absolvição aquieta a consciência do julgador? Só se for a consciência pessoal, não a consciência profissional.

O que é problemático na função de julgar é distinguir as duas parcelas da consciência. Melhor dizendo, fundi-las numa só, pô-las a falar em uníssono. Quando elas estão em descompasso, sobra a tortura da pessoa se sobrepor ao juiz. Com um dilema adicional: ao vestir a pele de juiz, sempre que aparecem embaraços entre a pessoa e o juiz a primeira deve ceder perante o segundo. O que fazer? Asfixiar a pessoa, a sua sensibilidade, para que a imparcialidade do julgador tenha palavra? Ou reprimir a crueza da imparcialidade e humanizar a função do julgador, ainda que se espalhem os fragmentos da justiça incerta, ou mesmo da negação da justiça que vem atrelada à pessoa que se sobrepõe ao juiz?

É a fractura entre a justeza e a sua carência. O dilema que angustia quem é chamado a julgar. E a redobrada amargura de imaginar a dor causada em quem for sacrificado por um julgamento errado. Nessa altura, o julgador demitiu-se do seu papel: não produziu justiça.

7.6.07

A assertividade das razões certas


Trago sintonizada no carro a Rádio Universitária do Minho (RUM). É a única estação que me permite ouvir a música de que gosto e que escasseia no éter. Costumo dizer, em jeito de brincadeira, que a RUM só devia passar os acordes e não as palavras dos inteligentes animadores de serviço. Há-os no registo intelectual, sempre prontos a disparar aquelas tiradas só ao alcance da compreensão dos que quase furam a escala do QI. Outros destilam descrições ininteligíveis da música que vamos ouvir, desfiando um discurso hermético e insondável. Um registo ao jeito dos intelectuais que embrulham a mensagem no indecifrável, cientes que a turba que os reverencia se fia na sua inteligência superior e, ainda que não perceba duas frases seguidas do que acabou de escutar, aplaude excitadamente o brilho plumitivo.

Há uma rubrica matinal que abre as janelas da opinião a cronistas que se sucedem a cada dia da semana. O altar da opinião arrebatadora. Onde nascem as verdades axiomáticas, misturadas com um moralismo contra-sistémico que caracteriza os desalinhados do “insidioso” capitalismo. Sempre mais do mesmo, com as cambiantes próprias dos assuntos que vão sendo desfolhados. Às vezes, entra no domínio do risível. Anteontem fui apresentado a Manuela Barreto Nunes. Começou, placidamente, por falar de cidades. Das cidades vazias, as cidades despersonalizadas, contra o urbanismo selvático que devia ser criminalizado, denunciando a materialização das relações humanas, estigmatizando o capitalismo e os seus sinais típicos (o preconceito contra as marcas da moda e a surdez da matilha que se apinha nos cafés para ver os jogos de futebol reservados ao “canal dos ricos”; enfim, um ódio visceral aos ricos). Dessas cidades que vão gerando uma casta de excluídos, abandonados ao orfanato pelas políticas públicas que sempre foram tão pródigas com eles. E, num ápice, contra as cidades dos novos descamisados, para tudo se por a jeito para a bastonada em Sarkozy – oh, ignaro povo francês que o escolheste, maldita democracia que é sempre tenebrosa quando ganham os que não deviam ganhar.

A cronista lamenta a França adulterada. Chora-se pela vitória do que, pela sua lente, escorraçou os excluídos, lhes chamou “canalha” e incendiou a fogueira de mais violência. Acusa o comodismo dos instalados quando acusam a violência e a adjectivam como intolerável. Acha que a culpa da violência está no abandono a que os excluídos sociais foram votados. A tese é gratificante para uma certa contracultura que desespera por visibilidade. Estes sectores vivem mortificados com o “grotesco” capitalismo e a “perversa” globalização que alimentam desigualdades. Ah, e a direita devia ser riscada do mapa. A certa altura percebi a intenção da cronista: de mansinho, as cidades que deixam de representar alguma coisa a não ser um aglomerado de amansadas criaturas que querem que os dias passem céleres uns atrás dos outros; de mansinho, mas como atalho para o cerne: chorar uma França que perdeu o rasto à tradição revolucionária que nos legou o tríptico iconoclasta – liberdade, igualdade, fraternidade.

Manuela Barreto Nunes terá desvalorizado a liberdade. Só assim consegue legitimar a violência dos violentos. Aí reside o abastardamento da liberdade. A não ser que a sua concepção de liberdade seja dicotómica: só merece liberdade quem ela gosta, os outros submetem-se à sua douta opinião. Sabemos, da História, os graves desvios que o princípio acautelou. Para memória futura fica a azia e o que ela revelou: a incapacidade para aceitar as regras do jogo eleitoral. Já os eleitores austríacos foram, em 2000, declarados oficialmente ignorantes (pela Internacional Socialista, esse penhor indeclinável) por terem, com o voto, caucionado o segundo lugar dos neonazis e a sua ascensão à coligação governamental. É assim que gosto da democracia: o povo é presenteado com um roteiro quando é convocado a votar. O desvio do roteiro tem uma factura dolorosa: tratado como uma indiferenciada massa de asnos.

A crónica acaba em beleza, na sua esforçada tentativa para legitimar a violência dos excluídos e culpabilizar aquele que foi escolhido pela maioria dos eleitores franceses. Puxa lustro a Brecht (who else…), e ora: “primeiro são sempre os outros. E nós não vemos, não ouvimos, não falamos. Só quando chega a nossa vez, à nossa porta, é que compreendemos que os outros, afinal, somos nós”. Eu profetizo o mesmo, endereçando a profecia a Manuela Barreto Nunes: fosse vítima da violência gratuita, teria o mesmo impulso de legitimar o indesculpável? Talvez nessa altura, na condição de “outro” (vítima), revisse algumas das teses tão fáceis de escrever com a distância do conforto e o preconceito da ideologia.

A RUM há-de continuar a ecoar enquanto conduzo. Preciso de retemperar o espírito consumindo a assertividade das razões tão certas, tão politicamente convenientes. E bebo a música que me conforta.

6.6.07

Eu não sou do CDS não sou do CDS não sou do CDS não sou do CDS não sou do CDS


Palavra de honra que pouco me importo com as ideias que os outros têm de mim. Só fico perplexo quando me colam rótulos, ou me aconchegam a sectores, nos quais não me identifico nem um pouco. Há dias soube que sou visto como próximo do CDS (ou do PP, ou do CDS-PP, ou lá o que isso seja). Numa resposta a um comentário num blogue de um amigo, tomei conhecimento da “(…) proximidade que amiudadas vezes (me) fazem com o CDS.

Há quem se deixe levar pela tentação da rotulagem fácil. Tira-se a pinta, ouve-se umas palavras esparsas e está produzido o retrato estereotipado. E depois há sempre o devaneio das conotações forçadas. Se não somos disto ou daquilo ou daqueloutro, então somos necessariamente daquele que não se revê nos anteriores. Ora há dissidências desta forma de estar. E há quem não se reveja em nenhum dos actores principais que desfilam em cena, ou sequer gravite nas suas imediações. Decifrando: causam-me espécie todas as esquerdas; tenho o PSD como um partido de centro-esquerda; mas não, isso não me conota com o CDS.

Aliás, o CDS (em todas as suas variedades sazonais – de CDS-PP a PP ou apenas CDS) é um moribundo que me provoca abundante riso. Há ali o que de pior encerra a direita lusitana. Um misto de catolicismo de sacristia, conservadorismo bacoco, empedernido intervencionismo do Estado, uns laivos de autoritarismo que descerram algum saudosismo do passado enterrado com a revolução de 1974. São adeptos das touradas, feitores do marialvismo anacrónico, ainda penhores de uma visão retrógrada da sociedade. Tudo isto me coloca nos seus antípodas.

Ora não compreendo como me situam no limiar deste partido. Porventura por andar frequentemente de fato e gravata. Porventura por até ter um fato azul às riscas, como o líder Portas gosta de envergar. Ou pelas gravatas. E um pouco pela urticária que as esquerdas me provocam. Ou por tudo isto junto. Mas não valem mais as ideias do que os ares a que nos damos? Mal de nós se fosse vedado um adereço (o fato e a gravata) só porque está convencionado que se os usarmos lá vem a colagem a uma determinada pessoa ou a uma determinada facção. Curiosamente, também visto t-shirts pretas. O que me faz transitar de uma extremidade à outra, pois a esquerda caviar está habituada a envergar esse tipo de vestuário. Serei à semana do CDS e ao fim-de-semana do Bloco de Esquerda?

Outro exemplo de como os estereótipos são um perigoso alçapão para quem os edifica: a música que ouço é pouco conhecida dos circuitos comerciais – a dita “música alternativa”, para quem gostar de engavetar estilos. A direita beata e beta do CDS não ouve esta música. Por este prisma, estou no oposto da direita trauliteira. Acrescento outro ingrediente de desidentificação: nas raras vezes que saio à noite, na listagem de locais preferidos figuram alguns bares do roteiro underground, que têm uma fauna onde nidificam adeptos da extrema-esquerda. Não me incomoda. Não frequento esses locais pelas pessoas que lá estacionam. Nem para ser visto, ou com receio de, lá sendo visto, arrostar com o rótulo de “esquerda caviar” (ou extrema-esquerda, sinónimo).

Talvez o erro de análise esteja no hábito de colocar as pessoas dentro de categorias herméticas. Temos que pertencer a algo, ou pelo menos estar nas suas franjas. Revejo agora a provocação: “(…) a proximidade que amiudadas vezes (me) fazem com o CDS.” Trata-se de proximidade, não de militância ou sequer de simpatia. Lá está, a proximidade que remete para as cercanias de um sector. Devo dizê-lo: não há a mínima proximidade. A mínima identificação. Aliás, quando vejo e escuto destacados militantes deste partido a falar, apetece-me ir a correr para os braços da esquerda caviar. (Sossego-me logo de seguida: imaginar-me nos braços da esquerda caviar é um pesadelo oportunista.)

Seria mais acertado acusar-me de ser de direita. Ainda que a acusação encerrasse alguma falta de rigor: da mesma forma que tenho o cuidado de referir “as esquerdas” – porque elas são um arco plural, basta ver como se desentendem com uma espectacularidade autofágica – também há “direitas”. Se há assim tanta urgência em pôr-me num cabide qualquer, que seja na direita – desde que essa direita não seja a direita trauliteira, nacionalista, conservadora, tresandando ao catolicismo bafiento, ambígua na defesa da iniciativa privada mas logo de seguida de mão estendida à generosidade dos negócios com o Estado, a direita que apregoa a moral e os bons costumes. Será tão provável figurar nas adjacências do CDS (ou do PP ou do CDS-PP, ou noutro alter-ego que ainda venha a ser inventado, nesta esquizofrénica deriva de personalidade) como ir a um concerto de David Fonseca, ou comer enguias, ou considerar Mário Soares um herói com pertença no panteão nacional quando fenecer.

Mantenho a teimosia de dizer o seguinte: não sou de esquerda nem direita. Antes pelo contrário.

5.6.07

O elixir do envelhecimento


De cada vez que vou cortar o cabelo trago histórias para contar. Como prometido, mudei de sítio para não ter que aguentar o mesmo cabeleireiro com tiques efeminados e que falava pelos cotovelos. Uma espécie de taxista com tesoura na mão. Calhou-me uma senhora. Discreta e silenciosa. É assim que gosto que me desbastem os excessos capilares: em silêncio.

Já ia quase no final da função quando desviei o olhar para a direita. No balcão do lado, em frente ao espelho, um cartaz publicitário de uma tinta para cabelos masculinos. O slogan, em inglês, rezava algo como isto: “agora, a qualquer altura pode pôr os seus cabelos grisalhos”. A provar o milagre da química, uma fotografia de um homem amadurecido, no crepúsculo da terceira década de vida. Aliás, duas fotografias: um antes e um depois, da aplicação da milagrosa tinta. Com a particularidade de, no depois, o homem aparecer com uma cabeça fartamente prateada, como se tivesse envelhecido num ápice.

O que mais me atrai nos tempos que correm é o mar de ambivalências em que navegamos. Ora se faz a apologia da eterna juventude, ora de supetão entram imagens que sugerem que o envelhecimento deixou de ser o enigma que amedrontava. E ora somos bombardeados com personalidades que escondem as rugas detrás de cirurgias estéticas, como se a velhice fosse um pecado que urge adiar; ora percebemos que os homens se envaidecem quando os cabelos acinzentam. O sintoma do envelhecimento está transformado em sinal de charme que é cultivado como modo alternativo de estar.

A verdade é que o restaurador Olex é uma página dobrada pelo tempo. Se dantes os homens receosos dos sinais de velhice trazidos pela cabeleira grisalha iam, como diz o meu amigo A., “à Robbialac”, agora continuam a frequentar a artificialidade dos químicos que tingem o cabelo, só que o fazem por motivos diferentes. O que dantes era asfixiado com o recurso às tintas que procuravam restaurar a tonalidade juvenil dos cabelos, é agora utensílio para apressar os sinais de velhice. Eis porque me agrada a modernidade: cultivamos tudo e o seu contrário. Compraz-me a abertura de espírito que se nos inocula ao sermos convidados a tolerar um estilo de vida e o seu oposto. Tanto está na moda a eterna juventude – ainda que seja um embuste que tenta iludir os ponteiros do relógio que não cessam a sua marcha – como a urgência em semear o elixir do envelhecimento. O desassombro dos que olham de frente para o tempo que se encurta.

Já se sabia que os políticos às vezes antecipam o sentir popular. Moldam as modas. De outras vezes, limitam-se a saltar para o rio e deixam-se levar pela caudalosa corrente. Parece-me que nisto da moda grisalha que amadurece precocemente o sexo masculino, os políticos estiveram na vanguarda. A imagem fabricada está repleta de truques que plantam cabelos grisalhos na cabeça de políticos, a necessária chancela da respeitabilidade que traz votos. Até me lembro do patético exemplo de um ex-autarca portuense que exibia o milagre de cabelos acinzentados nascidos do seu capachinho. Está instituído: uma cabeça repleta de tufos capilares grisalhos é garantia de credibilidade. As pessoas olham para esses homens e sentem reputação de mão dada com a tranquilidade que uma experiência de vida autoriza. Por isso há um primeiro-ministro que é pródigo na cavalgada de cabelos grisalhos, multiplicados exponencialmente desde que tomou posse. É só virtudes, numa simbiose dos modelos enaltecidos pela ambivalência da modernidade: ora cultiva a imagem de seriedade legada pela cabeleira grisalha, ora ostenta a imagem fresca da juventude que não perde fio à meada, quando monta nas sapatilhas e faz o jogging estrangeiro.

Se os políticos arrepiaram caminho à moda grisalha, alguns actores do imaginário hollywoodesco popularizaram o registo. As mulheres mostram a sua preferência pelos homens que expõem a imagem amadurecida pelos cabelos grisalhos que as deixam com um suspiro ao canto da boca. É nesta altura que o ultraliberal aproveita o ensejo para tecer loas ao capitalismo: afinal o mercado está de olhos bem abertos às oportunidades, lê os sinais que lhe chegam das modas instituídas e adapta-se a elas. Quem imaginava, há uns anos atrás, que haveríamos de encontrar nas montras da especialidade tinta para espalhar um tom grisalho nas cabeças masculinas?

Quando a cabeleireira acabou de adelgaçar as guedelhas, e quando as raízes capilares ficaram mais à mostra, percebi que não careço do adereço publicitado no mostruário ao lado.

4.6.07

Os delírios (dos intérpretes) da arte


Contribuí para as garbosas estatísticas que esfregam o sucesso do “open day” de Serralves. Ponho-me a pensar: que raio de incoerência me guia, eu que abomino multidões, a ir a Serralves logo no dia em que o museu e os jardins são invadidos pela turba. Será a efusiva celebração das artes, num evento que aproxima a cultura do povo que anda dela divorciado? É verdade: é gente a mais. E é verdade, também, não me parece que o povo se deixe sensibilizar pelas manifestações de arte que apenas são apelativas para as elites. Já é o terceiro ano que a Fundação de Serralves organiza as 40 horas non stop. Pela terceira vez que lá vou, regresso com a sensação que se os frequentadores fossem a amostra representativa do povo, o Bloco de Esquerda ganhava as eleições. O povo, esse continua a preferir as romarias e a “cultura pimba”.

Depois do almoço fui espreitar as exposições no museu. À entrada estava um grupo, umas vinte pessoas que ostentavam à lapela um autocolante azul garrido com letras brancas bem visíveis dizendo “13 horas”. Era o grupo que estava agendado para a visita guiada das treze horas. O cicerone dava as primeiras indicações sobre o museu quando entrei e comecei a ver uma curiosa exposição de Katharina Grosse, “The atom outside the egg”. Ovos gigantes e esferas, estas fazendo as vezes do átomo – presumo – numa policromia incendiária, as cores atiradas por esguichos de spray de tinta para cima dos ovos e das esferas, deitando-se sobre o chão de madeira e as paredes.

O que me prendeu a atenção foi a faceta invasiva da obra. Estamos habituados a ver quadros que se alojam hermeticamente no espaço dedicado nas paredes das galerias, ou esculturas que repousam no meio da sala, num espaço que lhes foi reservado. A obra de Grosse invadia o cenário, com a tinta arrojada para as ripas de madeira do solo, esbarrando-se contra as paredes que ficavam salpicadas dos jactos de tinta de tantas cores. Quando a exposição for retirada, o espaço vai exigir uma intervenção que o reponha na alvura original. A obra não respeita o espaço contíguo. Invade-o, funde-se com ele; os vómitos de tinta que bordejam os ovos e as esferas tomaram conta do chão e das paredes. Há nesta fusão espacial o traço de originalidade da exposição. Que convoca a atenção dos sentidos, daí que os seguranças estivessem com uma atenção de sete olhos impedindo os mais curiosos de “verem com as mãos”.

Não sou um habitué das galerias de arte. Quando vou, gosto de deter o olhar nos quadros. E tentar perceber a mensagem transmitida – quando ela é dada a perceber. Às vezes torna-se difícil discernir o elo comunicacional entre o quadro, o artista e a audiência. Outras vezes as imagens falam com a persuasão das palavras, conduzem até ao destinatário a leitura que as imagens poderosas sugerem. Com a obra de Grosse fiquei com a ideia do aleatório: na escolha dos locais onde assentavam os ovos e as esferas; e na escolha da paleta de cores que pintava os ovos e as esferas. A imagem de conjunto era apelativa. Sintomático, a admiração ecoava das faces dos visitantes. As crianças eram espectadoras embevecidas.

Quando, alguns minutos mais tarde, abandonava a sala o grupo tinha acabado de entrar. A guia introduzia o grupo à obra de Katharina Grosse. O prolegómeno deixou-me aturdido: o cicerone falou em “sinfonia pictórica” para rotular a obra de Grosse. Sinfonia pictórica! Os críticos de arte usam lentes que levam à seguinte interrogação: estarão eles a ver a mesma coisa que os meus olhos acabaram de ver? A especialidade da função permite observar bem além do que estou habituado. Todavia, o exagero na adjectivação leva à adulteração da obra. A arte é um templo subjectividade – duas pessoas podem fazer leituras tão diferentes do mesmo quadro, como se estivessem a olhar para quadros diferentes. Nos intérpretes profissionais da arte há elucubrações que tocam a fronteira da fantasia. Cavalgam na onda da subjectividade. Só me interrogo o que diriam os próprios artistas ao verem os delírios interpretativos dos experts: que estão a olhar para a obra errada?

À saída do museu, dobrando à direita e seguindo por um corredor lateral, vi sobre a esquerda uma árvore isolada que parecia oxigenar as ideias de quem abandonava o museu. A magnólia, esplendorosa no alto da sua idade já adulta, vociferava os devaneios com o verde refrescante das folhas vistosas. Não sei se seria da época, se a sazonalidade é pranto das magnólias, pois o verde das folhas dominava a árvore. Só no alto, uma nascente magnólia. Uns palmos abaixo, uma flor senescente exibida no branco que empalidecera.

Se esta magnólia fosse retratada em quadro, haveria quem a visse com uma profusão de lentes?