Detestava ser juiz. Há quem estabeleça como meta de vida chegar à magistratura. São movidos pela ambição pessoal – para que conste, nada que seja censurável. E são movidos pelo prestígio da função. Os senhores juízes são colocados num pedestal: ainda domina o dever de respeitar a magistratura, ou não fossem os tribunais órgão de soberania. E depois o povo tem um respeito sepulcral pelos juízes, não vá dar-se o caso de no futuro virem a necessitar do seu julgamento num pleito.
Talvez por tudo aquilo, detestava ser juiz (e ainda porque envolve o direito). Mas acima de tudo detestava vestir a toga porque exige julgar. Com a necessidade de julgar, vem a angústia das decisões erradas. Tomar decisões erradas é um privilégio dos vivos, uma mercê de quem ousa agir. Mais covardes são os que se coíbem de agir, amedrontados com a possibilidade dos passos dados serem passos em falso, ou passos em frente no precipício inesperado. Só que é mais cómodo tomar decisões cujas consequências se esgotam na esfera pessoal. Tudo se resume à responsabilidade individual, quando é chegado o momento de arcar o peso dos efeitos. As dificuldades soam quando as consequências sobram para outros, os destinatários da decisão.
É nisto que reside o julgamento. O que incomoda é saber que por mais que o imperativo da imparcialidade vingue, sobram dúvidas sobre a justeza da decisão. De resto, podem esconder-se insondáveis veredas que toldam o discernimento de quem julga. Quando isso acontece, é a imparcialidade que fica exposta com uma brecha do tamanho do mundo. Pode dar-se o caso da parcialidade espreitar sobre o ombro do julgador, sem que ele perceba a fresta que contamina a imparcialidade. Pode o julgamento julgar-se perfeito, dentro dos condicionamentos humanos que contemplam uma aceitável dimensão de perfeição, quando o convencimento da imparcialidade se desprende das incertezas. O problema é quando o julgador está convencido da sua imparcialidade mas escapam-se-lhe uns fragmentos de parcialidade que vêm toldar o julgamento, sem que ele dê conta, ou que haja motivos mais fortes para a parcialidade gotejar.
Ultimamente, alguns juízes pediram escusa em casos que lhes estavam distribuídos. Perante as dúvidas interiores que os assaltavam, incapazes de assegurarem o exigível desprendimento, preferiram ser retirados do julgamento dos casos. É a atitude digna, quando as mortificações interiores semeiam a indecisão que é um atentado contra a justiça que se espera do julgador. O problema não está nos juízes que têm a hombridade de pedir escusa. Está nos imensos casos em que – adivinha-se – há juízes que deviam pedir o afastamento e o não fazem. É o pantanoso terreno do julgamento em causa própria. A negação da justiça. E como os juízes são humanos, que não se arvorem na condição supra-humana de não padecerem dos pecadilhos que afligem o Homem comum. Está aqui o dilema de julgar: até que ponto o julgador não se deixa contaminar por uma apreciação subjectiva?
Os juízos subjectivos prejudicam a integridade da decisão que se espera do julgador. Por exemplo, a complacência injectada pela apetência do julgador para ter (e ser) coração de manteiga pode negar a justiça. Acometido por uma pulsão piedosa, o julgador enche-se de dúvidas se deve condenar. Ainda que as provas desfilem diante de si como convite à condenação, pode a comiseração troar na consciência do julgador. A tentação pela absolvição aquieta a consciência do julgador? Só se for a consciência pessoal, não a consciência profissional.
O que é problemático na função de julgar é distinguir as duas parcelas da consciência. Melhor dizendo, fundi-las numa só, pô-las a falar em uníssono. Quando elas estão em descompasso, sobra a tortura da pessoa se sobrepor ao juiz. Com um dilema adicional: ao vestir a pele de juiz, sempre que aparecem embaraços entre a pessoa e o juiz a primeira deve ceder perante o segundo. O que fazer? Asfixiar a pessoa, a sua sensibilidade, para que a imparcialidade do julgador tenha palavra? Ou reprimir a crueza da imparcialidade e humanizar a função do julgador, ainda que se espalhem os fragmentos da justiça incerta, ou mesmo da negação da justiça que vem atrelada à pessoa que se sobrepõe ao juiz?
É a fractura entre a justeza e a sua carência. O dilema que angustia quem é chamado a julgar. E a redobrada amargura de imaginar a dor causada em quem for sacrificado por um julgamento errado. Nessa altura, o julgador demitiu-se do seu papel: não produziu justiça.
Talvez por tudo aquilo, detestava ser juiz (e ainda porque envolve o direito). Mas acima de tudo detestava vestir a toga porque exige julgar. Com a necessidade de julgar, vem a angústia das decisões erradas. Tomar decisões erradas é um privilégio dos vivos, uma mercê de quem ousa agir. Mais covardes são os que se coíbem de agir, amedrontados com a possibilidade dos passos dados serem passos em falso, ou passos em frente no precipício inesperado. Só que é mais cómodo tomar decisões cujas consequências se esgotam na esfera pessoal. Tudo se resume à responsabilidade individual, quando é chegado o momento de arcar o peso dos efeitos. As dificuldades soam quando as consequências sobram para outros, os destinatários da decisão.
É nisto que reside o julgamento. O que incomoda é saber que por mais que o imperativo da imparcialidade vingue, sobram dúvidas sobre a justeza da decisão. De resto, podem esconder-se insondáveis veredas que toldam o discernimento de quem julga. Quando isso acontece, é a imparcialidade que fica exposta com uma brecha do tamanho do mundo. Pode dar-se o caso da parcialidade espreitar sobre o ombro do julgador, sem que ele perceba a fresta que contamina a imparcialidade. Pode o julgamento julgar-se perfeito, dentro dos condicionamentos humanos que contemplam uma aceitável dimensão de perfeição, quando o convencimento da imparcialidade se desprende das incertezas. O problema é quando o julgador está convencido da sua imparcialidade mas escapam-se-lhe uns fragmentos de parcialidade que vêm toldar o julgamento, sem que ele dê conta, ou que haja motivos mais fortes para a parcialidade gotejar.
Ultimamente, alguns juízes pediram escusa em casos que lhes estavam distribuídos. Perante as dúvidas interiores que os assaltavam, incapazes de assegurarem o exigível desprendimento, preferiram ser retirados do julgamento dos casos. É a atitude digna, quando as mortificações interiores semeiam a indecisão que é um atentado contra a justiça que se espera do julgador. O problema não está nos juízes que têm a hombridade de pedir escusa. Está nos imensos casos em que – adivinha-se – há juízes que deviam pedir o afastamento e o não fazem. É o pantanoso terreno do julgamento em causa própria. A negação da justiça. E como os juízes são humanos, que não se arvorem na condição supra-humana de não padecerem dos pecadilhos que afligem o Homem comum. Está aqui o dilema de julgar: até que ponto o julgador não se deixa contaminar por uma apreciação subjectiva?
Os juízos subjectivos prejudicam a integridade da decisão que se espera do julgador. Por exemplo, a complacência injectada pela apetência do julgador para ter (e ser) coração de manteiga pode negar a justiça. Acometido por uma pulsão piedosa, o julgador enche-se de dúvidas se deve condenar. Ainda que as provas desfilem diante de si como convite à condenação, pode a comiseração troar na consciência do julgador. A tentação pela absolvição aquieta a consciência do julgador? Só se for a consciência pessoal, não a consciência profissional.
O que é problemático na função de julgar é distinguir as duas parcelas da consciência. Melhor dizendo, fundi-las numa só, pô-las a falar em uníssono. Quando elas estão em descompasso, sobra a tortura da pessoa se sobrepor ao juiz. Com um dilema adicional: ao vestir a pele de juiz, sempre que aparecem embaraços entre a pessoa e o juiz a primeira deve ceder perante o segundo. O que fazer? Asfixiar a pessoa, a sua sensibilidade, para que a imparcialidade do julgador tenha palavra? Ou reprimir a crueza da imparcialidade e humanizar a função do julgador, ainda que se espalhem os fragmentos da justiça incerta, ou mesmo da negação da justiça que vem atrelada à pessoa que se sobrepõe ao juiz?
É a fractura entre a justeza e a sua carência. O dilema que angustia quem é chamado a julgar. E a redobrada amargura de imaginar a dor causada em quem for sacrificado por um julgamento errado. Nessa altura, o julgador demitiu-se do seu papel: não produziu justiça.
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