No último domingo, entretido com os preparativos do almoço, fui atraiçoado pela revisitação da transmissão televisiva – que o não chegara a ser em directo, para imensa reprovação de sua excelência o presidente da república – das condecorações aos felizardos a quem calhou em sorte, este ano, as comendas da república. O primeiro impulso foi mudar de canal. Resisti. Fui espreitando pelo canto do olho, enquanto o mestre-de-cerimónias debitava os nomes dos agraciados e prosseguia o cortejo da medalhística solene da república. Nunca tinha aguentado tanto tempo a risível celebração. Houve propedêutica no exercício: se dúvidas tivesse da patética manifestação, elas esvaneceram-se.
Para o final da cerimónia estava reservado outro momento delicioso: o encerramento exigia a entoação sentida, e em uníssono, do hino nacional. Foram desencantar um coro de igreja, ou um coro de uma agremiação recreativa de bairro, acompanhado por um órgão de igreja. O hino soou diferente. Perdera o seu carácter épico, que faz exaltar as emoções dos devotos da pátria, essa coisa tão bela. O hino assim cantado e tocado ganhara, subitamente, um perfume angelical. De repente, senti que aquele hino trazia os fragmentos da pós-pós-modernidade: as virtudes da pátria entoadas noutro registo, com outro ritmo. Podiam todas as referências bélicas persistir no hino, que aquelas vozes macias trinavam a angélica face da pátria. Em vez da mão direita a repousar sobre o peito, num gesto tão sentido de como a pátria está enraizada no mais fundo de nós, o renovado registo do hino convocava a auréola sobre as cabeças de todos os lusitanos. Estremeci de tanta emoção.
Foi então que percebi que faltava desconstruir o poema de Henrique Lopes Mendonça. Ajustá-lo aos tempos modernos, senão andamos a tecer loas a uma terra que deixou de existir, a cantar um hino que apregoa virtudes que se perderam nas “brumas da memória”. Corro um risco: os blogues também andam sob fiscalização das autoridades (dois exemplos: a directora da DREN tem a mira afinada para os blogues, avisando que também aí o respeitinho é devido; e o primeiro-ministro formalizou queixa-crime contra o blogue que denunciou a patranha da sua licenciatura); e lembro-me, em tempos, do actor João Grosso ter respondido em tribunal pela recriação do hino em tons irónicos. Aceito o risco; eis a dissecação do bravo hino dos heróis que só existiram lá atrás, na embocadura do longínquo passado.
“Heróis do mar, nobre Povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!”
Nestas estrofes estão sintetizadas várias impossibilidades, enclausurados alguns traumas. Primeiro, só os do mar são heróis? Não há heróis em terra? Os que cantam o hino com tanto denodo deviam perceber que a discriminação entra no pantanoso terreno das exclusões sociais: só os marinheiros merecem distinção, o que pode motivar a revolta dos outros. Lição: o hino não fermenta o espírito de unidade nacional. É divisionista. Segundo: resisto a pronunciar-me sobre a parte que alude ao “nobre povo” (e este com maiúscula…). E não, em terceiro lugar, não somos “nação valente”, nem está provado que o dedo da criação humana possa ter pretensões de imortalidade. A valentia dos nossos contemporâneos aparece à vista desarmada: a valentia de umas forças armadas insignificantes, obsoletas, que teimam em exaurir recursos para mostrarem pouco mais que nada. Que me perdoem os antepassados, mas nem Viagra consegue levantar os resíduos de esplendor espalhados pelos livros de História.
“Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!”
Só mesmo entre as brumosas memórias, um arremedo da teoria da reminiscência de Platão, é que se resgata a grandeza de antanho. Os “egrégios avós” estão mudos na sepultura, como se lhes pode escutar a voz doída pelo triste espectáculo de uma portugalidade reduzida à exiguidade quando dantes se habituou a espalhar-se pela imensidão de um império? A exclamação final é incompreensível: que vitória? Sobre quem? Pela atenção mediática dos feitos desportivos, prenunciam-se as façanhas dos desportistas que ganham rios de dinheiro lá fora? A ver pelo orgulho pátrio nessas façanhas, e como achamos que as vitórias desses desportistas são a representação do orgulho pátrio, acho que a exclamação do hino a isso se resume. O que confirma que não há-de ser a voz dos egrégios avós a conduzir a coisa alguma: apenas o esforço individual dos tais desportistas.
“Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!”
Lamentável convocatória ao belicismo, cada vez mais fora de moda, agora que a diplomacia dos homens ganhou terreno à estupidez dos homens munidos de armas. E, ainda que o fosse, que armas? As vetustas armas herdadas da guerra colonial, mais os tanques obsoletos e as fragatas ridicularizadas por contrabandistas de meia tigela? Aqui se encerra outro anacronismo do hino: as massas patrióticas são mobilizadas para entregar o peito às balas, mas só as que vierem por terra e por mar. Nem uma palavra ao espaço aéreo. Das duas, uma: ou não há hipótese de sermos atacados pelo ar (misteriosa hipótese), ou os valentes lusitanos estão descomprometidos de defender a pátria quando as balas e morteiros choverem do ar. Como anacrónico é o hino que convida as gentes para pela pátria lutar: pois se, ó sinal dos tempos, o serviço militar deixou de ser obrigatório.
Hino lamechas. Hino descompassado do tempo. Hino que, quando entoado com tanta afeição, representa o embuste de cantar uma coisa que não existe. Fica daqui, de um iconoclasta, sugestão aos que dão tanto valor a estes símbolos que fazem a iconografia da pátria: deitem este hino ao lixo e façam um novo.
Para o final da cerimónia estava reservado outro momento delicioso: o encerramento exigia a entoação sentida, e em uníssono, do hino nacional. Foram desencantar um coro de igreja, ou um coro de uma agremiação recreativa de bairro, acompanhado por um órgão de igreja. O hino soou diferente. Perdera o seu carácter épico, que faz exaltar as emoções dos devotos da pátria, essa coisa tão bela. O hino assim cantado e tocado ganhara, subitamente, um perfume angelical. De repente, senti que aquele hino trazia os fragmentos da pós-pós-modernidade: as virtudes da pátria entoadas noutro registo, com outro ritmo. Podiam todas as referências bélicas persistir no hino, que aquelas vozes macias trinavam a angélica face da pátria. Em vez da mão direita a repousar sobre o peito, num gesto tão sentido de como a pátria está enraizada no mais fundo de nós, o renovado registo do hino convocava a auréola sobre as cabeças de todos os lusitanos. Estremeci de tanta emoção.
Foi então que percebi que faltava desconstruir o poema de Henrique Lopes Mendonça. Ajustá-lo aos tempos modernos, senão andamos a tecer loas a uma terra que deixou de existir, a cantar um hino que apregoa virtudes que se perderam nas “brumas da memória”. Corro um risco: os blogues também andam sob fiscalização das autoridades (dois exemplos: a directora da DREN tem a mira afinada para os blogues, avisando que também aí o respeitinho é devido; e o primeiro-ministro formalizou queixa-crime contra o blogue que denunciou a patranha da sua licenciatura); e lembro-me, em tempos, do actor João Grosso ter respondido em tribunal pela recriação do hino em tons irónicos. Aceito o risco; eis a dissecação do bravo hino dos heróis que só existiram lá atrás, na embocadura do longínquo passado.
“Heróis do mar, nobre Povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!”
Nestas estrofes estão sintetizadas várias impossibilidades, enclausurados alguns traumas. Primeiro, só os do mar são heróis? Não há heróis em terra? Os que cantam o hino com tanto denodo deviam perceber que a discriminação entra no pantanoso terreno das exclusões sociais: só os marinheiros merecem distinção, o que pode motivar a revolta dos outros. Lição: o hino não fermenta o espírito de unidade nacional. É divisionista. Segundo: resisto a pronunciar-me sobre a parte que alude ao “nobre povo” (e este com maiúscula…). E não, em terceiro lugar, não somos “nação valente”, nem está provado que o dedo da criação humana possa ter pretensões de imortalidade. A valentia dos nossos contemporâneos aparece à vista desarmada: a valentia de umas forças armadas insignificantes, obsoletas, que teimam em exaurir recursos para mostrarem pouco mais que nada. Que me perdoem os antepassados, mas nem Viagra consegue levantar os resíduos de esplendor espalhados pelos livros de História.
“Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!”
Só mesmo entre as brumosas memórias, um arremedo da teoria da reminiscência de Platão, é que se resgata a grandeza de antanho. Os “egrégios avós” estão mudos na sepultura, como se lhes pode escutar a voz doída pelo triste espectáculo de uma portugalidade reduzida à exiguidade quando dantes se habituou a espalhar-se pela imensidão de um império? A exclamação final é incompreensível: que vitória? Sobre quem? Pela atenção mediática dos feitos desportivos, prenunciam-se as façanhas dos desportistas que ganham rios de dinheiro lá fora? A ver pelo orgulho pátrio nessas façanhas, e como achamos que as vitórias desses desportistas são a representação do orgulho pátrio, acho que a exclamação do hino a isso se resume. O que confirma que não há-de ser a voz dos egrégios avós a conduzir a coisa alguma: apenas o esforço individual dos tais desportistas.
“Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!”
Lamentável convocatória ao belicismo, cada vez mais fora de moda, agora que a diplomacia dos homens ganhou terreno à estupidez dos homens munidos de armas. E, ainda que o fosse, que armas? As vetustas armas herdadas da guerra colonial, mais os tanques obsoletos e as fragatas ridicularizadas por contrabandistas de meia tigela? Aqui se encerra outro anacronismo do hino: as massas patrióticas são mobilizadas para entregar o peito às balas, mas só as que vierem por terra e por mar. Nem uma palavra ao espaço aéreo. Das duas, uma: ou não há hipótese de sermos atacados pelo ar (misteriosa hipótese), ou os valentes lusitanos estão descomprometidos de defender a pátria quando as balas e morteiros choverem do ar. Como anacrónico é o hino que convida as gentes para pela pátria lutar: pois se, ó sinal dos tempos, o serviço militar deixou de ser obrigatório.
Hino lamechas. Hino descompassado do tempo. Hino que, quando entoado com tanta afeição, representa o embuste de cantar uma coisa que não existe. Fica daqui, de um iconoclasta, sugestão aos que dão tanto valor a estes símbolos que fazem a iconografia da pátria: deitem este hino ao lixo e façam um novo.
1 comentário:
Caro Paulo,
Ao preparar-me para comentar o seu post sobre o hino, louvando-o pela irónica análise (embora ache que os hinos são simbólicos e não podem estar sempre a ser actualizados, sob pena de não se chegar a fixar nenhum), dei de caras com este patusco rodrigo que se me antecipou e perdi toda a embalagem. Já me ri com gosto com este "cara", que aproveita qualquer oportunidade para vender as suas "camisetas bem maneiras". Será que o rapazinho quer propor-lhe estampar numa o hino nacional? Depois desta sensibilidade ímpar, é impossível tratar do assunto com mais seriedade.
Contra as camisetas, marchar, marchar!
AV
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