12.6.07

Injusta é a velhice


Erra pelos jardins, em passo lento, demorado, como se estivesse a alongar os dias que o separam da morte. Pelos dias primaveris e soalheiros, passa as tardes sentado nos bancos do jardim a contemplar o vazio. Imerso nas memórias que resguardam os poucos sinais da felicidade que outrora viveu. Por vezes, limita-se a degustar o sabor ácido das adversidades, das muitas adversidades em que tropeçou. A vista perdida num vago horizonte recupera o sofrimento que parece eternizar-se. Os bancos do jardim depositam a autopunição do velho que se demora numa aflitiva vivência.

Outras vezes partilha a solidão com os pombos. Os pedaços de pão esmigalhados e o bando de pombos à sua volta são o único momento em que conversa com alguém. Sabe-lhe bem a generosidade. A recompensa vem na companhia dos pombos. Alguns até vêm comer à sua mão. À medida que a solidão das pessoas foi tomando conta do seu tempo, com mais um ente querido que fenecia, mais outro familiar que passou ao rol dos ausentes, refugiou-se nos pombos, nos cães e gatos vadios que passaram a ser companhia habitual.

As mãos gastas entrecruzam-se quando o sol macilento da tarde fura entre a folhagem dos ciprestes. Às vezes uma mão ampara a cabeça, amansa a trovejante tristeza que incomoda a velhice sofrida. O velho recusa-se a olhar no espelho há longos meses. Já se escanhoa de cor, receoso de encarar no espelho para não se amedrontar com o ar terrivelmente envelhecido. Receia que as dores do tempo sejam os sedimentos da velhice pungente – as rugas profundas, os olhos cansados, os cabelos grisalhos. E, no entanto, todas essas marcas confirmam que a vida foi madrasta. Percebe-se a intenção: já bastou penar tanto pelas pedras pontiagudas que ainda trazem feridas por cicatrizar. Agora que consome os derradeiros dias, quer esquecer os sinais que avivam toda uma vida.

Os dias repetem-se, iguais. As dores da velhice recrudescem com os ponteiros do relógio. As forças exauridas semeiam a resignação da velhice que toma conta dos passos, dos pensamentos, das dores que ciciam pela madrugada e furtam o sono tranquilo. O velho traz a solidão como única companhia. A dor maior da velhice não são as maleitas que o corpo envelhecido amadurece, nem as forças dobradas pela idade avançada. A dor maior da velhice é o longo tempo macerado pela solidão. É então que o velho dá conta do paradoxo que o aprisiona. Entre o temor do tempo que se consome, voraz, na adivinhada despedida da vida: é quando, dominado pelo medo da morte, convoca a piedade divina para lhe prolongar a agonia da vida, sempre mais certa que a espessa morte. E entre a solidão que parece domar o tempo, que instala um tempo que se parece eternizar, um tempo doloroso, insuportável.

O velho perdeu o rasto aos poucos familiares que se esqueceram que ele existe. Perdeu amigos consumidos pela doença, fulminante ou prolongada. A cada funeral a que ia, sentia que os fragmentos da vida se iam estilhaçando no ritual mórbido do velório, das condolências à viúva, dos passos lentos na marcha final por entre a chuva irritante que molhava os ossos, e a ladainha derradeira do sacerdote que anunciava a esperança que é a morte. Todos os dias havia mais um sedimento de solidão que vinha de braço dado com mais um pedaço de velhice. Batiam-lhe na face, em uníssono, solidão e velhice. À noite, na solidão dos lençóis, enquanto o sono teimava em demorar, havia uma lágrima furtiva que se desprendia dos olhos gastos. Vinha salgada com a tremenda amargura de uma vida desavinda com a fortuna.

O dia seguinte haveria de ser a repetição da rotina. O pequeno-almoço maquinalmente ingerido, que deixou de saber a qualquer coisa. A manhã e a tarde gastas a inventar o tempo, a consumir a solidão dilacerante. Perdido entre as memórias de antanho, entregue na dividida tarefa de não querer revisitar as dores de outrora e a necessidade de regressar ao passado como único passatempo do tempo abúlico que agora vive. E pensava: que a velhice assim, tão sofrida, é um lugar injusto para os derradeiros instantes da vida de alguém. Cada dia que se sucedia era uma insuportável dor que se adicionava aos espinhos cravejados na alma. Cada dia que se repetia só tornava a dor mais intensa, a condoída despedida da vida.

Percebeu então que a solidão que era sua única companhia era uma dádiva. Ninguém que alguma vez lhe tivesse sido querido haveria de merecer a desdita de lhe amparar as dores de uma velhice assim tão sofrida.

1 comentário:

Anónimo disse...

pa dzr a vrdade n li nd mas é so pa dzr k gosto do nome O felino