15.6.07

A bomba do amor


Nem sempre os falcões guerreiam. Os falcões também podem ser pombas alvas, aspergindo com os seus magnânimos dedos um adocicado amor. Afinal os falcões guerreiros também têm coração de manteiga. Sentimentos. E, afinal, os falcões não são desapiedados espíritos entregues à insolência bélica. Os falcões também podem ser pombas:

A Força Aérea dos EUA admitiu ter-se interessado nos anos 90 por um projecto de "bomba do amor" que devia despertar um irreprimível desejo sexual nas fileiras do adversário, neutralizando a sua vontade de combater (…). O objectivo era a criação de uma arma afrodisíaca capaz de afectar os comportamentos do adversário (…).” Eis senão quando o inesperado se anuncia. Eis senão quando descobrimos que se pode fazer a guerra motivando o adversário – o “inimigo”, na retórica das armas – ao sexo. Assim se confirma que os opostos se atraem. O amor – ou melhor, os instintos sexuais – usado como poderosa arma de arremesso contra o adversário que combate do outro lado das trincheiras.

De repente, fui acometido por uns laivos de ingenuidade: apeteceu-me, uma vez na vida que fosse, aplaudir a existência de militares. Destes militares que conceberam semelhante arma. Militares que fazem detonar uma bomba que instala no inimigo o irreprimível desejo libidinoso, são militares humanos. Diria, é uma forma de humanizar a guerra. Assim como assim, os “inimigos” hão-de preferir morrer possuídos por um terrível desejo sexual do que da forma tradicional, despedaçados os corpos por um míssil ou por uma rajada de metralhadora desembestada pelos heróicos tropas dos Estados Unidos.

Tudo tem o seu reverso. A ingenuidade refreia-se com o amadurecimento trazido pelo exercício do pensamento. Logo de seguida, o necessário convite ao desengano da candura. A bomba do amor é uma bomba, tão letal como as outras, tão possuída pelo belicismo como todas as demais. Até diria que fazer a guerra usando a bomba do amor é a maior das perversões. Usar o desejo sexual para liquidar os adversários que foram emproados na condição de inimigo é uma desonra. Uma traição aos instintos sexuais, que às vezes podem ser usados como arma do amor. Das mentes retorcidas dos estrategas militares podemos esperar tudo, sobretudo o impensável – ou não fossem eles os orquestradores de uma das coisas mais absurdas que fica registada, e a negro, na história da humanidade: as guerras.

Esta arma devia entrar no rol das armas proibidas por convenções internacionais. Como há tratados internacionais que impedem a proliferação de armas nucleares, como há acordos internacionais que vedam a utilização de armas químicas. A bomba do amor é uma arma química, pois espalha uma substância que altera os comportamentos dos “inimigos”, desmotivando-os para o combate a partir do momento em que são possuídos por um súbito apetite lascivo. É a forma mais traiçoeira de liquidar o adversário. Enquanto anda desorientado à procura de saciar os apetites que a substância afrodisíaca alimentou, as tropas dos Estados Unidos têm a tarefa facilitada para esmagar o “inimigo”. Quem tem coragem de matar duas moscas em plena cópula? Só uma mente doentia.

Assim se confirma que os falcões se podem travestir de pombas. São sempre falsas pombas, mais interessadas em congeminar artefactos bélicos destinados a levar de vencida essa invenção mais absurda de que um ser humano se podia lembrar: o inimigo imaginário. E como há tratados que tentam “humanizar a guerra” – que patético eufemismo! –, há convenções internacionais que tentam garantir alguma dignidade aos actores envolvidos numa guerra (outro contra-senso). A Convenção de Genebra, que impede atrocidades a presos de guerra e lhes garante direitos mínimos, devia ser renegociada. Para proibir expressamente o uso da bomba do amor. Em homenagem ao amor, que não merece ser misturado com a obnóxia guerra.

O jornalismo banal a que temos direito puxou do lugar-comum para encontrar as reminiscências da bomba do amor na “melhor escola da expressão make love, not war, isto é, "não façam a guerra, façam amor"”. O jornalista está equivocado: a bomba do amor convoca o “make war through love”, isto é, “guerreiem-se usando o amor”.

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